Crise no Líbano. Homem faz reféns num banco para ter o seu dinheiro

Vive-se o desespero no Líbano, onde levantamentos foram restritos há anos, enquanto poupanças são devoradas pela inflação. “As pessoas estão a dar em doidas”, conta uma professora libanesa ao i. 

Ao saber que um homem armado entrou de rompante num banco em Beirute, fazendo reféns, esta quinta-feira, poderíamos pensar que se tratava de um assalto. No entanto, não era exatamente isso que se sucedia. Bassam al-Sheikh Hussein, de 42 anos, só tentava levantar 210 mil dólares das suas próprias poupanças, brandindo uma caçadeira de canos cerrados e carregando bidons de combustível, ameaçando imolar-se.

Estava desesperado para pagar as contas médicas do pai, avançou a National News Agency, a agência noticiosa do Líbano, um país onde desde 2019 foram impostos controlos aos levantamentos para evitar uma corrida aos bancos. Enquanto a inflação vai devorando poupanças dos libaneses, tendo chegado a uns incríveis 211% em maio, comparativamente ao mesmo período do ano passado.

Apesar de terem sido disparados três tiros de aviso dentro desta filial do Banco Federal, no bairro de Hamra, uma das mais agitadas áreas comerciais de Beirute, reputada pela sua vida noturna, lá fora juntara-se uma multidão, em apoio ao sequestrador.

“Abaixo com o domínio dos bancos”, cantavam muitos. “Somos depositantes e queremos o nosso dinheiro”, chegou a gritar um homem, escutado pela Associated Press. “Estamos com ele e até estamos prontos para o ajudar”. 

Não espanta o desespero com a brutal crise no Líbano, que precedeu a guerra na Ucrânia, mas foi agravada ainda mais por esta, devido à subida do preço dos cereais. Falamos de uma catástrofe financeira que “provavelmente estará no top 10, possivelmente no top três das mais graves crises desde meados do século XIX, a nível global”, avisara o Banco Mundial, em junho de 2021. 

Não são só os limites nas quantias que se podem levantar dos bancos que enfurecem tantos depositários do Líbano, onde agora quase todos têm de guardar os seus dólares debaixo da cama – ou num esconderijo equivalente – e dependem da economia paralela.

Estando a libra libanesa em queda livre, “todos estamos a ter cortes nas contas bancárias, porque não conseguimos levantar o dinheiro como queremos, em dólares americanos”, explica Maria Sfeir, professora numa escola católica, que vive a uns vinte minutos de Beirute, à conversa com o i. “Temos de levantar em libras libanesas, com taxas de câmbio inferiores às do mercado negro, por isso na prática estamos a perder dinheiro”, lamenta. “Mas precisamos de levantar dinheiro dessas poupanças para sobreviver”.

“As pessoas estão a dar em doidas”, alerta Sfeir, preocupada com o sequestro no Banco Federal. “Os empregados do banco também são vítimas, não têm nada a ver com o assunto, mas estão a sofrer com isso”, salienta. Lembrando que provavelmente muitos deles, incluindo os sequestrados, provavelmente têm as suas próprias poupanças congeladas. 

Desespero e vidas congeladas Felizmente, o sequestro no Banco Federal acabou com a rendição de Hussein, após horas de negociações, com a libertação dos seis reféns, sem nenhum ferido. Um irmão do sequestrador, Atef al-Sheikh Hussein, contou ao National que a condição imposta fora que o banco apoiasse as contas médicas do pai.

“Nós tivemos de pedir um empréstimo de seis mil dólares para a sua hospitalização quando tínhamos o nosso próprio dinheiro parado no banco”, queixou-se. Como tal, o sequestrador “fez o que tinha de fazer”, concordou a mulher de Hussein, Mariam Chehadi, falando à Al Jazeera à porta do banco.

“Ele quer viver, quer pagar a sua conta da eletricidade, alimentar os seus filhos e tratar do seu pai no hospital”, salientou Hassan Mughnieh, líder da Associação de Depositários do Líbano, que contactou Hussein após este invadir o banco, à Reuters. Já nas redes sociais assistia-se a uma onda de apoio ao sequestrador. Mostrando como o Líbano, marcado por décadas de guerra civil entre sunitas, cristãos, xiitas e drusos, que nem sequer recuperou da gigantesca explosão que devastou o porto de Beirute, há dois anos, tornou-se um barril de pólvora. 

O Estado libanês – que segue um sistema confessionalista, onde o poder é dividido entre religiões, ficando a presidência para os maronitas, o posto de primeiro-ministro para os sunitas e de presidente do Parlamento para os xiitas, sendo isso parte do acordo de paz – há muito que é conhecido pela ineficiência e corrupção. Havendo senhores da guerra, narcotraficantes ou milícias religiosas – algumas comparáveis às forças armadas a nível de poder militar, como é o caso do Hezbollah – que aproveitam para desviar fundos, distribuindo parte para manter a lealdade de porções da população.

Após as legislativas de 15 de maio, a imprensa internacional apontava para “resultados promissores”, com o crescimento de partidos não-sectários e a perda da maioria parlamentar do Hezbollah e dos seus aliados. Havendo alguma esperança que “após anos de impasse político, o país possa começar a livrar-se da sua classe dominante”, como descreveu a Foreign Policy. No entanto, não parece que tal tenha ocorrido, tendo o homem mais rico do Líbano, Najib Mikati, com uma fortuna avaliada em 2,5 mil milhões de dólares pela Forbes, sido chamado para primeiro-ministro, continuando incapaz de montar um Executivo estável devido a continuas disputas políticas entre as elites libanesas. 

Entretanto, as poucas ajudas que chegam não vêm da parte do Governo. “As empresas estrangeiras estão a ajustar os salários dos funcionários. Estão a oferecer uma parte em dólares americanos, para que se possa manter algum poder de compra”, relata Maria Sfeir, cujo salário inteiro, apesar de trabalhar de sol a sol, dando aulas e depois explicações, agora vale o equivalente ao preço de 80 litros de gasolina. E “os que estão a sofrer mais com a crise são os que trabalham no setor público, os militares, os professores. Essas pessoas não estão a receber quaisquer aumentos”, explica.

Não surpreende que centenas de milhares de funcionários públicos estejam em greve há semanas, obrigando a que casos judiciais fossem adiados, seja impossível renovar documentos ou que o controlo aéreo esteja paralisado. Afinal, se o salário médio de um funcionário público libanês em tempos equivaleu a cerca 1300 dólares, segundo dados de sindicatos do setor avançados pela Associated Press, agora vale menos de 70 dólares. 

Naturalmente, muitos jovens já não vêm maneira de viver no Líbano, recorrendo cada vez mais a emigrar. “Ninguém quer sair do Líbano, adoramos o Líbano, é um país lindo”, salienta Sfeir, que pondera ela mesma emigrar. “Temos as nossas famílias aqui, a nossa cultura. Mas somos obrigados a fazê-lo. As nossas oportunidades não correspondem às nossas habilitações. Os jovens do Líbano são muito qualificados, têm diplomas, cursos”, desabafa.

Para os que ficam no Líbano, o risco é o caos. “Onde há pobreza vai haver violência, não vai haver segurança”, avisa a professora. Como se viu esta quinta-feira, nas instalações do Banco Federal em Beirute. “Não o apoiamos, mas compreendemos que quem o fez estava muito desesperado”, admite. “E ele estava desesperado por causa do Governo, dos líderes. A culpa não é dele. Às vezes somos obrigados a fazer coisas que não imaginávamos ser capazes”.