Bruno Maia. “Todos os meses recebemos doentes do privado por ter acabado o plafond”

Tem 40 anos, é neurologista no S. José e foi um dos rostos da luta pelo direito à eutanásia. Está na corrida a bastonário dos Médicos. Quer criar uma frente de defesa do SNS e abrir caminho a uma nova geração. 

Bruno Maia anunciou este mês a candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos. É o quarto nome na corrida e confessa que também ele, no passado, nunca o teria imaginado. O objetivo: dar representação a uma nova geração de médicos, diz.

Nasceu no Porto, tem 40 anos e é intensivista na Unidade de Cuidados Intensivos Neurocríticos do Hospital de São José, integrado no Centro Hospitalar de Lisboa Central. Dirigente do Bloco de Esquerda, candidato nas últimas autárquicas a Gondomar, bateu-se pela despenalização da morte assistida, com um percurso de intervenção cívica marcado pela defesa dos direitos LGBTI+ e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Assumiu publicamente a homossexualidade e quer ajudar a pôr fim à discriminação de doentes e de profissionais.

Diz que a sentiu e se sente diariamente, mesmo quando é velada, em conversas de corredor ou nos blocos operatórios. No centro do manifesto da campanha que vai lançar em setembro coloca a defesa do SNS, nos últimos anos predado pelo privado, acusa, vítima em primeiro lugar do desinvestimento. Um SNS onde sente a corda a esticar e o receio crescente que um dia rebente. 

Apresentou a sua candidatura como uma pedrada no charco. Já está a sentir as águas a mover?

Sim, tenho tido reações sobretudo de médicos e médicas mais jovens, que têm reforçado o motivo desta candidatura. O que eu gostava com esta candidatura era que a Ordem deixasse de ser este bastião de conservadorismo e elitismo, que tem sido ao longo dos últimos anos, e passasse a ser uma ordem preocupada com todas e com todos os utentes, não só com alguns. E que com isso passasse também a ser uma plataforma de defesa dos direitos humanos, em todas as vertentes e áreas. Ao mesmo tempo, gostava de trazer para a Ordem uma nova geração de médicos.

Tem 40 anos. Sentiu-se afastado da vida da Ordem nos últimos anos?

Não me senti afastado, senti-me por momentos e por vezes pouco representado e por essa característica de ser um reduto do conservadorismo e do elitismo, alheada da evolução da sociedade.

É a Ordem que é elitista ou são os médicos que são uma classe elitista?

É quem tem estado na Ordem e tem representado os médicos. Candidato-me porque acho que há um grande desfasamento entre aquilo que é a Ordem e os seus órgãos eleitos e aquilo que são as novas gerações de médicos, que olham para os grandes temas que atravessam a profissão com um olhar muito diferente.

Em que vê esse conservadorismo e elitismo?

Em várias coisas e nos grandes temas. A Ordem foi contra a despenalização da interrupção voluntária da gravidez apesar de haver uma maioria na sociedade que o queria. Ainda hoje tem uma voz ativa contra a despenalização da morte assistida, quando sabe que há uma maioria da sociedade e provavelmente dos próprios médicos que é a favor dessa despenalização.

Ao contrário da IVG, não foi feito um referendo nem à população nem aos médicos. Acha que devia ter sido?

Não foi feito um referendo mas foi feito um questionário na Secção Regional do Norte pelo professor Miguel Ricou da Faculdade de Medicina do Porto cujos primeiros resultados indicam que havia uma maioria dos médicos que apoiavam a despenalização da morte assistida. Esse questionário não foi aplicado no resto do país.

Não sei se foi por medo dos resultados, desconfio que assim tenha sido. Portanto, de acordo com aquilo que foi este inquérito, acho que há uma maioria de médicos a favor da despenalização da morte assistida, tal como acho que existe uma geração de médicos, sobretudo os mais novos, que vê por exemplo os problemas da discriminação nas suas várias vertentes como um problema da saúde que deve ser abordado pela Ordem.

Dou um exemplo: a ANEM – Associação Nacional de Estudantes de Medicina – já há vários anos que produz materiais, entre os quais um guia contra a discriminação, que aborda questões do racismo, da misoginia e sexismo, as questões LGBTI+, procurando desfazer mitos e combater a discriminação e preconceito, não só em relação aos utentes mas em relação aos próprios médicos. A Ordem nunca o fez.

É um dos combates que coloca no seu manifesto. O Bruno assumiu publicamente a homossexualidade. Sentiu na pele essa discriminação?

Todos os dias.

No hospital?

É evidente que eu, na posição em que estou neste momento, em que já sou médico especialista, já tenho tido algumas funções de chefia, sendo conhecido e abertamente conhecido como gay, sofro menos essa discriminação direta, mas continuam a existir em vários setores dos hospitais e dos centros de saúde – nas consultas, no bloco operatório muito – conversas, comentários e atitudes dos médicos que têm poder dentro do hospital e aos quais os mais jovens assistem.

Tenho feito muitos workshops e sessões de esclarecimento em várias universidades de Medicina e todos os jovens e as jovens me relatam isso, que já se depararam com situações de discriminação, não direta ou assumida, mas através de conversas que fazem com que as pessoas não se sintam à vontade no seu serviço ou no hospital. Não estão à vontade para serem quem são, sejam mulheres, sejam LGBTI+. No fundo é estarem em situações em que lhes é dito que não podem ser quem são dentro do hospital e do serviço.

É uma pressão psicológica ou que se materializa em obstáculos na progressão na carreira, sabendo-se que tem sido limitada para todos os médicos no geral.

Claro que há obstáculos. Todos os estudos têm dito logo à partida que ser mulher é um obstáculo. Se é em todos os setores da sociedade, também o é na medicina, onde se colocam entraves para se chegar à chefia de um serviço ou à coordenação de um hospital. O mesmo acontece para as pessoas racializadas e as pessoas LGBTI+.

Se isto é um obstáculo, se existe em todos os setores da sociedade, existe nos serviços de saúde, no Serviço Nacional de Saúde e no setor privado, tem de ser combatido e portanto também é responsabilidade da Ordem criar condições para que todos os seus membros, independentemente de quem sejam, tenham as mesmas oportunidades na sua carreira.

Se for eleito, será o primeiro bastonário pró-eutanásia. O juramento de Hipócrates foi alterado há uns anos reforçando a questão da autonomia do doente, mas a responsabilidade na salvaguarda da vida tem sido o argumento dos bastonários para se oporem. Para si foi sempre pacífico que é eticamente aceitável um médico ajudar alguém a morrer?

Foi sempre pacífico porque o respeito pela autonomia do doente é um dos princípios fundamentais e esse respeito tem de ser consagrado em todas as suas vertentes, não podemos escolher aleatoriamente quais são os tratamentos que podem ou não podem escolher e depois os médicos decidem os restantes ou a sociedade impõe as restantes decisões. O respeito pela autonomia do doente, quando está consciente e informado sobre a sua situação clínica, tem de ser basilar.

Respeitar um doente, que em sofrimento e numa situação clínica que consideramos que não tem solução, quer antecipar a sua morte é respeitar a sua autonomia, ponto final. É mais do que compatível esta minha posição com todos os princípios éticos consagrados.

Mas aceita a objeção de consciência dos colegas?

Aceito a objeção de consciência em todos os tratamentos e em todas as áreas. Está consagrada no código deontológico dos médicos e deve continuar a ser assim, aplicando-se aqui como se aplica em qualquer outra área da medicina. Ainda sobre o código deontológico, recordo que em 2007 era incompatível com a prática da interrupção voluntária da gravidez. A sociedade decidiu que a IVG devia estar legalmente consagrada e o código deontológico mudou. Provavelmente é este o caminho que vamos fazer.

Está dentro do serviço de saúde. Um dos argumentos contra a despenalização da morte assistida neste momento é a falta de acesso a cuidados paliativos e que o Estado vai investir recursos na eutanásia antes de o fazer de forma suficiente noutras áreas. Sendo duas perspetivas, considera prioritário investir na eutanásia antes de garantir resposta total de cuidados paliativos?

Acho que as duas questões são prioritárias: é prioritário investir nos cuidados paliativos e dar autonomia para o doente decidir sobre a sua própria vida. As duas coisas não são incompatíveis, nunca foram. Um estudo feito na Bélgica, onde há cuidados paliativos e dos melhores no mundo, onde a população toda tem acesso, quando perguntaram às pessoas que decidiram antecipar a sua morte se tinham tido acesso a cuidados paliativos, 75% das pessoas tinha tido acesso e mesmo assim continuava a pedir a antecipação da sua morte. Apesar de a cobertura dos cuidados paliativos dever ser total e não ser, mesmo nessa situação haverá sempre doentes que querem antecipar a morte e é para essas pessoas que estamos a legislar, para permitir que de facto haja capacidade para respeitar a sua autonomia.

No movimento têm lidado com doentes concretos que manifestam esta vontade. Como sente que tem sido para eles verem os avanços e recuos neste processo legislativo?

Tem sido de sofrimento. A situação já é de sofrimento, mas não poder escolher é um sofrimento adicional. Numa situação de sofrimento intolerável, na fase final da vida de alguém, dizermos a essa pessoa que há uma opção que não pode tomar acrescenta-lhes sofrimento, mesmo em pessoas que, numa situação em que fosse legal, não optassem por isso. 

Quem pode, vai ao estrangeiro. 

Sim, sabemos que quem tem dinheiro pode ir ao estrangeiro, pode ir à Suíça ou a outro sítio. E, pior do que isso, têm acontecido situações, raras felizmente, de pessoas que o têm feito sem apoio médico.

Suicídios?

Sim e esse é um dos grandes problemas desta questão. Pessoas que por não terem a opção de morte assistida, fazem-no sozinhas. Muitas das vezes conseguem substâncias e medicamentos que compram através da internet e mercado negro e isso significa correr riscos de ainda maior sofrimento, de não conseguirem concretizar o suicídio e ficar num estado vegetativo.

Chegam-lhe casos desses ao hospital?

Muito poucos. E devo dizer que em Portugal e eu pessoalmente conheço muito poucos casos de pessoas que querem ativamente antecipar a sua morte face a uma doença degenerativa por exemplo e por isso digo que, regulamentando a lei, vamos ter poucos casos de pedido de antecipação da morte em Portugal, porque a maioria das pessoas quer viver.

Na maioria das situações de pessoas com uma doença fatal e sofrimento hoje a medicina consegue mitigar esse sofrimento de uma maneira eficaz, foi um longo caminho mas conseguiu-se que as pessoas fiquem na sua fase final mais confortáveis. Mas há sempre um grupo de pessoas que não está confortável, que está em sofrimento intolerável e deseja antecipar a sua morte. 

Um dos receios é a “rampa deslizante” por exemplo para casos de depressão.

A lei que foi aprovada, que é o reflexo de todos os projetos-lei apresentados, é muito clara e traça uma fronteira inultrapassável entre aquilo que é uma doença fatal, incurável e sofrimento intolerável e a doença psiquiátrica. As pessoas com doença psiquiátrica não podem pedir eutanásia. As pessoas com doença psiquiátrica controlada e outra doença fatal ou incurável, podem pedi-lo, mas a doença psiquiátrica por si só está excluída desta lei, que na minha opinião por isso é muito equilibrada.

No centro do seu manifesto está a defesa do SNS. Sendo intensivista, pode dizer-se que o SNS está ligado às máquinas?

O SNS ainda é o serviço preferido dos portugueses. Com todos os problemas que nós temos, ainda é o local onde as pessoas preferem ser atendidas e onde preferem recorrer havendo possibilidade de o fazer. O problema do SNS é que neste momento temos 1,4 milhões de portugueses sem médico de família.

No final de julho, antes da entrada dos novos médicos, quase 1,5 milhões.

Sim e isso é uma enorme barreira à entrada das pessoas e um problema gigante não só para o acesso dessas pessoas mas para o funcionamento de todos os serviços a jusante dos cuidados primários, nomeadamente das urgências hospitalares, o que explica a enorme afluência que vemos. Há problemas graves que temos de resolver no SNS.

A falta de médicos de família é um deles e a capacidade para fixarmos médicos especialistas é outro e que vemos agravar-se, porque têm vindo a abrir concursos para contratar médicos e todos os anos aumentam as vagas que ficam por preencher. Significa que não estamos a oferecer aos médicos condições de carreira suficientemente atrativas para eles quererem ficar no SNS e que é um problema que tem de ser resolvido na urgência.

Como se resolve? Os sindicatos conseguiram incluir agora a revisão das grelhas salariais nas negociações com o Ministério. O Governo quer avançar com contratos de dedicação plena. Defende na sua candidatura a exclusividade. É mais que uma questão semântica?

Não é uma questão semântica. Aquilo que o Governo fez foi um truque, basicamente. Decidiu trocar exclusividade por dedicação plena e, ao mesmo tempo, tornar a dedicação plena uma coisa que não tem nada a ver com a exclusividade, procurando confundir e passar a dedicação plena por exclusividade. A dedicação plena é um acréscimo no horário dos médicos, que eventualmente será remunerado, mas que não os obriga a ficar a trabalhar única e exclusivamente no SNS, portanto não tem nada a ver com exclusividade. Quando falamos de exclusividade, trata-se de oferecer aos médicos que voluntariamente o aceitem a possibilidade de ficarem só no SNS e isso ser majorado em termos de salário e condições de carreira. A dedicação plena é um engano criado pelo Governo.

Vai ser difícil de implementar na prática nas equipas, com médicos com e sem estes objetivos a trabalhar lado a lado?

Já existem compromissos assistenciais e objetivos definitivos, já é possível inclui-los nos contratos individuais de trabalho. O que o Governo faz é um rebranding do que já existe, chama-lhe dedicação plena e diz que vai aplicá-la obrigatoriamente aos chefes de serviço mas depois também permite que estes chefes de serviço façam trabalho no privado durante um determinado número de horas.

É um engano quando a própria lei de Bases da Saúde, aprovada em 2019, falava de exclusividade e não disto, de termos médicos que se dedicam mesmo ao serviço nacional de saúde.

Qual é a consequência hoje de não haver contratos em exclusividade? O que sente no dia-a-dia?

Um médico em exclusividade tem muito mais disponibilidade de tempo e horário para dedicar ao serviço. 

Não trabalha no privado. Tem de fazer mais turnos ou os mais incómodos?

Sim. E além disso, muitos médicos que trabalham no privado o que dizem é que gostavam de não o fazer e de estar só no SNS, porque trabalhar nos dois lados rouba tempo que as pessoas gostavam de ter para as suas vidas, para outras atividades, mas fazem-no por questões salariais. Se tivessem um salário majorado para estar só no público não se importavam até de perder dinheiro para deixar toda a atividade privada.

Além de salários majorados, uma questão importante é haver condições de carreira que hoje os médicos sentem que não têm no SNS. A maioria dos médicos tem contratos individuais de trabalho em que podem ficar no fundo da tabela salarial a vida toda.

O dinheiro e o salário não são o ponto fundamental, o fundamental seria poderem ter uma carreira com progressão e avaliação ao longo da vida, assumindo mais responsabilidades na gestão dos serviços ou mesmo no ensino, seja dos estudantes, seja dos internos de Medicina; a possibilidade de terem uma atividade de investigação paralela e participarem na gestão do hospital ou do centro de saúde do qual fazem parte. Quando falamos de carreira é isto tudo: é ensino, é formação, é investigação, é progressão ao longo da vida, também é salário mas o salário é apenas uma componente.

Voltando à pergunta de há pouco sobre o estado real do SNS, como está a vida no hospital para lá do que é noticiado?

Está difícil. Os mais jovens saem ou não chegam a ficar no SNS depois da especialidade. A minha geração, a dos médicos nos 40/50 anos, tem muito pouca gente, fruto de erros do passado em que abriram poucas vagas para Medicina e para a especialidade e depois temos uma geração mais velha, próxima da reforma, que também está muito desmotivada e se sente desmoralizada.

E que, sendo mais velha, já deixou de fazer noites ou de fazer fins de semana, ou pode deixar de fazê-lo a partir do momento em que sente que já não aguenta mais. A corda vai esticando, o que nos deixa a todos com muito medo que esta corda rebente um dia.

Já esteve mais otimista em relação à resiliência do SNS?

Quando comecei a ser médico há 15 anos as expectativas eram muito diferentes. Apesar de na altura já haver algum grau de degradação, com muitos contratos individuais de trabalho, havia ainda uma expectativa de futuro. O meu problema é que as gerações mais novas não têm expectativas no SNS e eu tinha-as, tinha muitas expectativas de que as coisas mudassem. Levá-los a perder as expectativas no futuro é o pior que podemos fazer a uma nova geração de médicos.

O Governo garante que está a trabalhar para resolver problemas estruturais e que não é tempo de atirar a toalha ao chão, ou seja acredita que é possível salvar o SNS, o mote lançado à esquerda há uns anos. Quanto tempo de vida tem o SNS?

Não sei responder. Ainda temos 30 mil médicos no SNS, significa que há muitas pessoas que podiam ter optado por sair e ainda não o fizeram. Falava da esquerda, mas uma coisa que é muito curiosa é que se olharmos para a história, a aposta nas carreiras médicas não foi uma coisa de esquerda ou direita.

Quando foram criadas no seio da Ordem dos Médicos ainda antes da criação do SNS, os médicos que se juntaram para trabalhar no relatório das carreiras médicas eram de esquerda e de direita, Miller Guerra, que foi deputado do PS, Gentil Martins, Gonçalves Ferreira, Albino Aroso. Mesmo depois da criação do SNS temos Paulo Mendo, que era um homem do PSD, a defender com unhas e dentes carreiras médicas e todas estas pessoas foram muito importantes no reconhecimento da necessidade de carreiras com progressão, avaliação.

Infelizmente temos tido governos de direita e do próprio Partido Socialista que têm contribuído para a desestruturação das carreiras. Não sei responder, mas acredito que há a possibilidade de os médicos, conjuntamente com os restantes profissionais de saúde, enfermeiros, técnicos, auxiliares, criarem uma frente de defesa do SNS e das carreiras que ultrapassa muito as fronteiras habituais da direita e da esquerda.

Investigou o crescimento do setor privado da saúde em Portugal, que culminou no livro O Negócio da Saúde, publicado no ano passado. A que conclusões chegou e o que impressionou mais?

O que me impressiona mais é o estado de dependência que o SNS tem em relação aos grandes grupos económicos privados.

Saíram há pouco tempo dados que indicavam que os hospitais privados representam 4% da despesa do Estado com saúde, a partir da conta satélite.

Dados apresentados de uma maneira especial. O seu colega Pedro Tadeu fez um estudo comparativo de como os dados foram apresentados agora e como tinham sido apresentados há uns anos e a perspetiva é totalmente diferente. O que sabemos é que as convenções que o SNS precisa de estabelecer com o setor privado têm vindo a aumentar e andam à volta dos 500 milhões de euros em 2021. Isso é um reflexo da perda da capacidade do SNS, que tem ficado cada vez mais dependente.

Uma privatização silenciosa?

Uma relação de predação em que o setor privado está a crescer à custa da perda de serviços do SNS. O problema aqui é o privado? Não, é esta dependência entre os dois setores que não é saudável para um. O setor privado sempre existiu, já existia antes do SNS, está protegido na Constituição para desenvolver a sua atividade. Não há uma questão com existir privado, a questão é esta relação de predação. O que é preciso fazer é investir no SNS, dotá-lo de autonomia suficiente para não estar dependente de outros setores e para que haja uma relação saudável e uma competição entre setores. Neste momento, com uma dependência tão grande, com 500 milhões em convenções, essa concorrência não existe.

São 500 milhões num orçamento na Saúde superior a 13 mil milhões.

É verdade, mas há muitas outras formas de dependência que não são quantificadas e que o setor privado estabelece em relação ao público. O próprio trabalho em pluriemprego dos médicos é uma forma de transferir doentes e serviços entre público e privado e de criar mais entropia no sistema e isto tem aumentado.

Pode dar exemplos? Médicos passaram os doentes do público para o consultório privado quando não há resposta?

Doentes ou serviços. É tão simples quanto isto: quando não consigo fixar um médico especialista no SNS, não lhe ofereço a exclusividade, ele vai prestar serviços no privado, quando podia eventualmente fazê-lo no público. Ao não criar condições no SNS estamos a fortalecer o serviço privado, a aumentar a necessidade de recorrer a convenções e a retirar condições para que o setor privado retire mais médicos do setor público. Este é o fulcro da questão: o privado fica com cada vez mais condições para tirar médicos do SNS.

Num estudo publicado na Lancet há pouco tempo sobre o impacto da privatização do NHS no aumento de mortalidade evitável fala-se de um possível fenómeno de desnatação: os serviços públicos concentram casos mais complexos, seja porque não há cobertura de seguro por exemplo, mas com menos recursos técnicos. Vê-o no dia-a-dia?

Sim. Todos os meses recebemos transferências de doentes dos hospitais privados por ter acabado o plafond [do seguro]. É preciso regulamentar isto. É preciso criar regras para que os doentes atendidos nos hospitais privados terminem os tratamentos nos hospitais privados. Quando temos pessoas a meio de tratamentos e são forçadas a ser transferidas por falta de dinheiro, algo não está bem. 

Tratamentos oncológicos sobretudo?

Todo o tipo de tratamentos. 

É um problema que tem sido levantado nos últimos anos. Houve um esclarecimento do regulador da Saúde a indicar que os doentes devem ser informados dos planos de tratamento e custos. A pedagogia não tem sido dissuasora destas situações?

Parece-me que não podemos colocar a pressão do lado dos doentes. As pessoas fazem escolhas e muitas vezes são condicionadas nessas escolhas, até quando recorrem a um hospital privado porque sentem que não têm resposta no público. Não me parece que a solução seja responsabilizar as pessoas, mas regulamentar esta relação.

Como? Da mesma forma que o SNS trata e depois faz as contas com seguradoras em caso de acidentes?

Sim, criar normas que garantam que concluem os tratamentos e só depois transferem eventualmente os doentes e acertam contas. E em termos de regulamentação, uma das coisas que neste momento temos de exigir é que os resultados dos hospitais privados sejam publicados. Temos resultados do SNS publicados ao dia, pelo menos alguns.

Resultados quantitativos, a chamada produção, não uma avaliação qualitativa.

Sim, dados de produção mas além disso há uma série de equipas que publicam os seus resultados. Para haver equilíbrio e igualdade entre os dois serviços, e para que os doentes saibam a que serviços estão a recorrer, penso que temos de exigir que mais indicadores e resultados do setor privado sejam publicados.

Há uns anos em Inglaterra discutia-se publicar a mortalidade por exemplo associada a cirurgias por cirurgião. 

Acho que todos os resultados devem estar disponíveis, independente de ser público ou privado. Provavelmente não a mortalidade por cirurgião, mas poderia ser a mortalidade por serviço. Defendo que as avaliações devem ser feitas sempre por equipa, ninguém trabalha isolado. O que me interessa é avaliar os resultados de determinada equipa em determinado serviço, hospital ou centro de saúde e disponibilizar isso aos utentes, do público e do privado, em igualdade de circunstâncias.

Metade dos médicos em Portugal não trabalha no SNS. Não tem receio de estar a antagonizar à partida metade da classe?

O problema não está de forma nenhuma nos médicos, está na forma como o sistema está desenhado. Os médicos têm de trabalhar e precisam de ganhar a sua vida como todas as outras pessoas. Tenho vários colegas que dizem que precisam de fazer trabalho no privado para pagar o colégio dos filhos, a casa, o lar ou residência dos pais, etc.

O problema não é o privado nem são os médicos, é o desinvestimento que tem sido feito no SNS e que tem criado esta relação de dependência e de predação. E mais uma vez insisto: o que era importante era separar os dois setores para haver uma concorrência saudável e para que o utente possa livremente escolher, sem estar condicionado pela falta de condições de um dos sistemas.

É membro da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda. Se for eleito bastonário vai manter funções partidárias?

Se for eleito a minha atividade principal será a Ordem dos Médicos.

Deixará de exercer medicina?

Os bastonários têm tradicionalmente deixado de exercer a maioria das suas funções. Podem manter um dia de consulta, um dia de cirurgia. Não pensei muito mas a partir do momento em que sou eleito a prioridade passa a ser a Ordem dos médico.

Houve no passado críticas em relação a alguns bastonários, nomeadamente Ana Rita Cavaco, pela ligação ao PSD. Antecipa críticas pela sua ligação partidária?

A maioria dos bastonários da Ordem dos Médicos passados tem uma ligação partidária conhecida. O bastonário anterior a Miguel Guimarães hoje é presidente da Câmara do PSD em Coimbra. Se essa crítica me for apontada, tem de ser apontada a todos os outros.

Foi no entanto algo que a esquerda usou no debate.

Eu nunca usei essa arma e acho que as pessoas têm direito a ter a sua filiação partidária independentemente da sua representação. A minha filiação partidária é igual à dos outros bastonários e candidatos, não sou nem mais nem menos.

Imaginava-se um dia a concorrer a bastonário?

Não, nunca imaginei, agora sinto que esta candidatura cumpre uma função que é precisamente representar uma geração de médicos mais novos e abrir caminho a que essa geração se sinta representada e se sinta sobretudo validada para ela própria, no futuro, se fazer representar na ordem dos Médicos, nos sindicatos, na política, seja onde for. É esse o objetivo principal: abrir caminho a uma nova geração.

De onde lhe vem esse lado, a participação cívica que tem desde jovem, na medicina e para lá dela?

Não sei, foi sendo construído.

Já na escola era assim?

Sim, fiz ativismo de rua, política partidária. Ao longo da vida vamo-nos percebendo que há tarefas e compromissos que devemos assumir, que no fundo da rua há um objetivo e neste momento o objetivo é representar uma geração que não está a sentir-se representada.

Escreve na página da sua candidatura que é filho de um carpinteiro e de uma costureira. Sentiu-se um óvni quando entrou no curso de Medicina?

Não porque havia muitos e muitas como eu. Há uma ideia errada na sociedade de que há uma endogamia no grupo profissional dos médicos, que os médicos continuam a ser os filhos de médicos e hoje em dia não existe essa endogamia.

E por isso é que digo claramente que sou filho de um carpinteiro e de uma costureira, para mostrar que há toda uma geração que chegou à Medicina por vocação própria.

A estudar na escola pública e a ter 19 para entrar.

Sim, escola pública, faculdade pública.

Num bairro bom ou num bairro mau?

Num bairro mau. Cresci nos arredores do Porto, numa freguesia problemática, São Pedro da Cova, Gondomar, com níveis de abandono escolar enormes e que nos anos 90, quando eu andava na escola, tinha um problema de toxicodependência gigante. Não sei se hoje em dia é considerado um território de exclusão, mas era este o cenário.

Ser médico foi sempre o plano?

Sim, desde que me lembro.

Porquê?

Não sei. Havia livros em casa sobre muita coisa e sobre geografia e compêndios de saúde e bem-estar.

A geração do Círculo de Leitores a bater à porta.

[Risos] Exatamente e os livros que eu mais gostava de folhear eram aqueles. Foi por aí talvez, não sei dizer exatamente. Não tenho ninguém na família que seja médico nem nunca tive contacto com médicos quando era criança, nem com filhos de médicos. Surgiu essa vontade desde miúdo e foi possível, porque havia uma escola pública e depois porque havia um SNS.

E o pai e a mãe disseram “o meu rico filho, vai ser médico” ou já não havia essa ideia?

Sim, claro. Estamos a falar de um meio de classe trabalhadora. Sei que represento um bocadinho aquilo que é a ascensão social, o elevador social. E por isso é que falo da importância da escola pública e do SNS. Só a escola pública e o SNS é que permitem uma ascensão social. Se optarmos por outros caminhos, temos a certeza, porque olhamos para outros países, que essa escada fica estragada, não é para todos. Ou reforçamos a escola pública e o Serviço Nacional de Saúde ou estragamos o elevador social, aquele que ainda existe e neste momento está muito fragilizado.

Defende mudanças no acesso ao Ensino Superior e a Medicina em particular? Que tenham mais em conta a vocação que as notas por exemplo?

Aceito que haja mudanças no sentido de se aferir outras qualidades dos candidatos mas sinceramente acho que o sistema que temos hoje consegue alguma justeza no acesso ao curso de Medicina. Acho que tem de haver uma seleção mas não tenho ideias concretas sobre como criar um sistema mais justo. Evidente que na sociedade ideal penso que seria possível acabar com numerus clausus e permitir que quem quer ser Médico possa pelo menos estudar Medicina, mas nas condições atuais é impossível.

Não concorda então, como tem defendido o Governo com oposição da Ordem e faculdades, que seja possível abrir mais vagas para Medicina e para a especialidade.

É um engano. Neste momento não temos ao nível do ensino condições para formar mais estudantes de Medicina. Se queremos mais estudantes de Medicina temos de fixar mais médicos de especialistas no SNS, que são as pessoas que vão conseguir formar os estudantes de Medicina e os próprios internos. Neste momento as faculdades de Medicina têm condições muito precárias para o ensino e aumentar o número de vagas só iria agravar essas condições.

Trabalha com doentes neurocríticos, uma das áreas onde se vê mais diretamente a fragilidade da vida. O que lhe tem dado essa experiência?

É muito desafiante, é muito difícil mas é o que gosto de fazer.

É preciso resistência emocional.

A resistência aprende-se. Aprendemos tudo na vida e aprendemos a ser médicos em áreas delicadas.

As últimas semanas foram marcadas pelo caso do menino que morreu no Reino Unido, com a família revoltada, sem compreender a decisão de desligar as máquinas. Como se lida com uma situação destas?

Penso que a chave está na comunicação. Muitos problemas até de erro médico e negligência muitas vezes resultam de uma má comunicação com os utentes e com a família. É preciso trabalhar muito essa comunicação e esse caso provavelmente terá sido um exemplo de uma comunicação que não correu bem. Tinha de ficar claro desde o início para aquela família que a partir do momento em que a criança entrou em morte cerebral estava morta. Morte cerebral significa morte, não há outro significado, aliás é redundante.

Aquela criança estava morta há muito tempo e a família tinha de saber e ter a certeza disso. Expor isto a uma família exige uma grande capacidade de comunicação. É muito difícil mas tem de ser feito. São conversas que implicam tempo e isso às vezes é muito difícil nos serviços e nas condições que temos mas não pode ser visto como perder tempo. E acontece na minha área mas tem de ser feito em todas, nos cuidados obstétricos e ginecologia, nos cuidados primários. Com mais treino de comunicação resolver-se-iam possivelmente muitos conflitos na saúde.

Que problemas o irritam mais no dia-a-dia?

A falta de condições materiais e estruturais para que os médicos e os outros profissionais consigam exercer a sua profissão. Sistemas informáticos que não funcionam, material velho e ultrapassado em hospitais que têm mais de 400 anos como o meu.

Foi agora adjudicado o futuro Hospital de Lisboa Oriental. Há luz ao fundo do túnel?

Já tinha havido um concurso anterior, foi impugnado, demorou mais de 10 anos. Não sei. O que eu sei foi que o Marquês de Pombal quando pôs o hospital no convento disse: isto é provisório. E já passaram mais de 200 anos.