3:18. A hora do fogo na Serra da Estrela

Mais de um em cada cinco incêndios florestais registados este ano em Portugal começaram à noite. Voltou a acontecer na Serra da Estrela: o alerta foi dado às 3h18 da madrugada. Liga Portuguesa dos Bombeiros defende ‘operações stop’ para dissuadir atos quase sempre intencionais.

O grande incêndio que já consumiu mais de 15 mil hectares no coração da Serra Estrela, destruindo quilómetros de área protegida e até parte da pista de ski e mobilizando há dias sucessivos mais de mil homens, começou às 3 da madrugada: 3:18, refere a página da Proteção Civil, a hora do alerta. O primeiro despacho foi dado às 3:24 e os primeiros meios chegaram à zona de Garrocho, concelho da Covilhã, às 3:52, meia hora de depois. A maior parte do país dormiria, nas horas mais frescas do dia. Estranho? Muito. Mas os dados da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), a que o Nascer do SOL teve acesso, mostram que esta é uma realidade dos fogos que não muda: todos os anos, uma parte significativa das ignições começam à noite. Este ano não foi diferente: em 9 064 ocorrências registadas pela ANEPC desde o início do ano, a maioria no último mês e meio, 2010 começaram entre as 21h e as 8h da manhã, 22%. Ontem o primeiro-ministro assumiu que o incêndio da Serra da Estrela deverá ser estudado, o que abre caminho a um novo estudo pedido pelo Governo, o que fez logo nas tragédias de junho e outubro de 2017. A PJ também já está a investigar suspeitas de fogo posto.

É o cenário mais expectável quando um fogo começa à noite, diz ao Nascer do SOL António Nunes, presidente da Liga Portuguesa dos Bombeiros que, confrontado com o histórico deste ano de ignições noturnas, diz não ser muito diferente de anos anteriores mas um motivo de preocupação que poderia, na visão dos bombeiros, ser melhor prevenido. «Em qualquer catástrofe, e no caso dos incêndios, há três momentos distintos. O primeiro é o momento da preparação e prevenção: temos de ter a nossa floresta tratada e organizada, por forma a que seja possível fazermos intervenções em qualquer momento que ocorra um incêndio, voluntário ou involuntário», diz. «Depois temos uma segunda fase, que é nos períodos críticos termos uma vigilância sobre os espaços mais críticos, o que compete à GNR, quer a monitorização através de torres de vigia, quer de câmaras de vigilância, quer de patrulhamentos terrestres ou aéreos. Este momento é fundamental para, nas zonas críticas, termos capacidade de persuasão: se houver uma boa vigilância, com patrulhas motorizadas, se ocuparmos a floresta em vigilância, temos momentos dissuasores de comportamentos negligentes ou criminais. Quando essa situação falha, temos então a terceira fase que é a resposta, onde os bombeiros intervêm, muitas vezes com dificuldade».

Indo às ocorrências noturnas, como foi esta, António Nunes não têm dúvidas de que a maioria são incêndios provocados intencionalmente: «Poderá haver um caso ou outro que resulte de reacendimento de um fogo que lavrou durante o dia, ficou um braseiro [de uma queimada] que com o vento da noite reativou e a pessoa não disse nada. Pode haver alguns casos de negligência, mas estou convencido que a maioria dos fogos durante a noite são incêndios provocados», diz. «Para os fazer decrescer só temos uma hipótese: ou identificamos previamente os potenciais incendiários e exercemos sobre eles um mecanismo qualquer de controlo ou então temos de ocupar o espaço», continua, o que lhe parece que podia ser mais eficaz, com uma proposta concreta: «Tal como temos ‘operações stop’ para dissuadir o consumo de álcool em excesso, se calhar devíamos também fazer algumas operações nas estradas e locais de maior risco para saber porque é que algumas viaturas e indivíduos circulam», defende.

O presidente da Liga Portuguesa dos Bombeiros salienta, no entanto, que se este foi o momento zero deste fogo,  as proporções que atinge resultam depois de outros fatores. Houve falhas como têm acusado autarcas e civis? «Temos de ter algumas reservas porque precisamos de dados concretos antes de fazer uma crítica. Agora sabemos o seguinte: Não é normal ocorrências deste tipo. Este ano sabemos que face à meteorologia e seca e à eventual falta de preparação da nossa floresta e parques naturais por parte de quem o devia fazer, sejam os privados, sejam o  Estado e a Conservação da Natureza, há mais dificuldade em fazer o combate, que cabe aos bombeiros. Se a floresta estivesse melhor preparada, a velocidade de propagação era menor, a intensidade de calor era menor e a possibilidade de êxito nas primeiras horas era maior. O que não quer dizer que não possa ter havido uma ou duas janelas de oportunidade neste incêndio que possam ter escapado. Quando escapam, podemos correr um bocadinho atrás do prejuízo mas não temos o mesmo sucesso».

E é essa a leitura neste momento para o representante das corporações de bombeiros: «Achamos que este combate está a ser feito reativamente e não preventivamente. Provavelmente, numa primeira fase, achávamos que devia ter sido mobilizado um maior número de meios. Mais valia ter excesso numa primeira fase do que defeito na fase seguinte», afirma António Nunes, que insiste na defesa de que os bombeiros deviam ter um comando nacional autónomo, deixando para a coordenação da Proteção Civil a gestão global do teatro de operações e não a gestão do ataque ao fogo. «Estamos convencidos que a forma de combate seria totalmente diferente. Quando tenho um corpo que vai para um determinado local e está uma ou duas horas a aguardar que lhe seja indicado qual é a frente de fogo onde deve atuar, essa responsabilidade não é dos bombeiros, é de quem está a dirigir as operações, que é a Proteção Civil», afirma o dirigente. «Compreende-se que se a Proteção Civil tiver de decidir, num mesmo momento, a evacuação de uma aldeia e distribuir os meios pelo combate, provavelmente dá prioridade à aldeia, mas é por isso mesmo que dizemos que isto deve ser separado. Tal como a GNR e o INEM têm o seu comando e a sua estrutura diretiva, os bombeiros têm de ter o seu comando e a Proteção Civil deve estar acima de todos os agentes na maximização da resposta mas não a comandar o combate. Aí os bombeiros serão responsabilizados pelo que fazem bem e mal, não podem é ser responsabilizados quando não são eles quem determina o tempo de intervenção e a mobilização».

As contas e rescaldos serão, mais uma vez, feitos no fim de um fogo que ontem, no último balanço da Proteção Civil, estava «estabilizado mas não dominado». Já fez mais de uma dezena de feridos. Completou esta madrugada, às 3:18, sete dias.