América dividida, Europa desorientada

Governar com coligações negativas não permite tomar decisões de fundo, porque não são aceites pelo ‘outro lado’ – veja-se como os últimos primeiro-ministro portugueses conseguiram juntar forças suficientes para governar, mas foram incapazes de reformar.

Por Francisco Gonçalves 

Todas as sociedades têm os seus demónios e os seus medos. Perante tais demónios e tais medos, formam-se interesses de grupo. Os EUA têm os seus demónios e os seus medos, estes não são de hoje.

Os líderes políticos podem trazer ao de cima o melhor das sociedades, e ser recordados enquanto tal, ou manipularem os demónios e libertarem as forças negativas que existem. Se Obama fez uma coligação alargada positiva (pelo menos internamente), Trump fez uma coligação alargada dos demónios e dos medos.

Obama procurava juntar as peças de um puzzle complexo, num país que se constitui de muitos países, procurando encontrar o mínimo múltiplo comum. Trump, como qualquer populista, fala para pequenos grupos à vez, sem intenção de juntá-los, dividindo para reinar.

Governar com coligações negativas não permite tomar decisões de fundo, porque não são aceites pelo ‘outro lado’ – veja-se como os últimos primeiro-ministro portugueses conseguiram juntar forças suficientes para governar, mas foram incapazes de reformar.

As divisões que estas lideranças provocam não são apenas para o tempo que os líderes ficam no poder, perduram depois do mesmo. Deixam rasto. Impossibilitando, durante muito tempo, o regresso à ‘normalidade funcional’ democrática, como, até há pouco, conhecíamos.

A ‘paciência’ dos sistemas para com os populistas tem, porém, prazo – normalmente até estes porem em causa demasiados grupos, que se aliam, para a sua própria preservação.

Quando Dick Cheney, a quem George W. Bush ‘pediu’ para ser seu vice-presidente, tendo-se tornado no ‘vice’ mais poderoso da história dos EUA, chamou a Donald Trump, num anúncio da campanha da sua filha para o Congresso, «o maior perigo para a nossa República», estava dada a ‘permissão’ do antigo partido republicano (hoje quase todo engolido pela fação populista) para que o ex-presidente sofresse todo o peso do Estado.

Na mesma semana, soube-se, de outra força profunda daquela ‘República’, que o chefe de estado maior das forças armadas, o general Mark Milley, apenas não se demitiu durante o consulado de Trump, por entender ser mais importante combater o então Presidente do lado de dentro do sistema, considerando que Trump era um perigo para o país. 

No mesmo dia, o impensável aconteceu: o FBI fez buscas à residência do ex-Presidente. Estas buscas, criticadas pelos apoiantes de Trump, foram autorizadas por um juiz federal e tiveram, pelo menos, a anuência da liderança daquela força policial (nomeada ainda por Trump).

Neste sentido, ou os EUA se estão a transformar num regime frágil, no qual um juiz pode prender um ex-governante sem indícios claros, ou há, efetivamente, indícios fortes de crime, que justificam a preocupação do ‘poder profundo’ dos EUA com um possível regresso de Trump.

O que já é certo é que os EUA são, hoje, um país dividido, e que o partido republicano que já não é o de Lincoln, Eisenhower ou Reagan, mas o de um populista sem perceção da grande estratégia norte-americana e sem preocupação com tais questões. Torna-se cada vez mais normal ver ascender gente sem livros, mundo ou pensamento a cargos públicos, como se a intelectualidade fosse defeito e não virtude.

Num mundo em transição sistémica, no qual todas as grandes potências são revisionistas, não é boa notícia a fratura exposta dos EUA. 

Com uma Europa sem poder militar, energeticamente dependente e industrialmente frágil, e com a única potência democrática tão dividida, estamos desarmados e de mãos atadas.

Se tudo isto é conhecido, será que sabemos o que andamos aqui a fazer?