A armadilha das ideias feitas

A nossa democracia tem 48 anos de idade, mas continua a viver em casa dos pais e a ser um adulto em busca da emancipação, caindo assim frequentemente na armadilha das ideias feitas. 

Por Pedro Neves de Sousa, Advogado Associado Sénior na Cerejeira Namora, Marinho Falcão

Fugindo da teoria platónica, a conceptualização da ideia resulta de um processo de pensamento crítico e de uma recolha de informação que nos faz criar uma convicção. Contudo, na era digital, esse processo é acelerado e até desvirtuado pela infinita informação que nos invade no quotidiano e que contamina inevitavelmente o pensamento próprio e individual. O que só nos empobrece enquanto sociedade.

Ora, os perigos de uma democracia nascem a partir de ideias feitas ou preconcebidas que vão envenenando as virtudes de um regime que assenta em princípios da igualdade e de justo tratamento e num estado de Direito que respeite os direitos dos cidadãos e das instituições. 

Daí que a discussão acerca de questões relevantes para o nosso regime tenha de ir para além das conversas de café (nas quais grassam verdades insofismáveis), sob pena de nos rendermos e subjugarmos a discursos populistas e maniqueístas, num filme a preto e branco com os ‘bons’ e os ‘maus’, os ‘poderosos’ e os ‘descamisados’, os ‘ricos’ e os ‘pobres’, onde a ignorância generalizada é servida num banquete para gáudio de uns poucos opinion makers. 

Falando da justiça em particular, existem inúmeros exemplos de ideias feitas, acolhidas pela comunidade e já integradoras do círculo do senso comum, que são perversas, erradas e geradoras de convicções que empeçonham a perceção do cidadão, como seja a apreciação da nossa justiça penal com base em meia dúzia de processos que a comunicação social mediatiza, na qual um arguido na fase da investigação criminal surge a maioria das vezes já com uma condenação transitada em julgado. 

Ou aprisionar o nosso pensamento crítico até em conceitos que, só por si, aparentam representar algo negativo. O caso paradigmático do procedimento de ajuste direto na contratação pública, que é amiúde apelidado de ‘esquema’ aos olhos dos cidadãos, ignorando-se olimpicamente que as entidades adjudicantes devem obediência à lei e são frequentemente sujeitas a inspeções e auditorias.

Mas outro caso que tem dado que falar (e escrever) relaciona-se com a arbitragem, nomeadamente com a arbitragem administrativa e fiscal, isto é, sempre que uma das partes é uma entidade pública e existem milhões de euros envolvidos.

Os meios alternativos de resolução de litígios, onde encontramos, por exemplo, a arbitragem e a mediação, surgiram para combater as manifestas insuficiências dos tribunais estaduais. Se um cidadão ou uma empresa tem uma determinada questão para dirimir com a Autoridade Tributária pode dirigir-se aos tribunais tributários ou a um tribunal arbitral (se essa questão for legalmente subsumível ao centro de arbitragem competente). E irá certamente encontrar duas diferenças marcantes: a justiça arbitral é mais cara, mas substancialmente mais célere; a justiça estadual fiscal é mais barata, mas substancialmente mais lenta. Concretizando: por vezes, trata-se de obter uma decisão judicial de 1.ª instância em 6 meses ou em 6 anos. E essa diferença temporal é muito relevante para os cidadãos e para as empresas e, em última análise e numa visão macro, para a própria economia portuguesa.

É evidente que almas mais puristas crucificam a justiça arbitral, porquanto a mesma não é resultado de uma decisão proferida por um magistrado de carreira, mas antes por juristas de reconhecido mérito naquela área de Direito. Podem até ser construídas ideias relativas à imparcialidade ou à falta dela, mas a verdade é que a justiça arbitral está inscrita na Constituição e nas leis da República.  

Mas caso se entenda que tal modelo não é profícuo para a justiça portuguesa (há países que não admitem a arbitragem administrativa e fiscal) ou que compromete a sua seriedade ou solenidade, então altere-se a lei e a Constituição, ao invés de destratar uma justiça arbitral, diabolizando uma alternativa legítima a que os cidadãos e as empresas podem recorrer para que se faça justiça de forma mais célere.

A nossa democracia tem 48 anos de idade, mas continua a viver em casa dos pais e a ser um adulto em busca da emancipação, caindo assim frequentemente na armadilha das ideias feitas.