Hospital de Faro. Doente que se suicidou ainda não teve direito a funeral

Luís Manuel Labiza, doente de 68 anos que se suicidou no Hospital de Faro, está numa câmara frigorífica no Cemitério de Albufeira há quase uma semana. Ao i, a viúva garante que o marido nunca teve ideação suicida e responsabiliza o hospital.

Por Felícia Cabrita e Maria Moreira Rato

As cerimónias fúnebres do doente que se suicidou no Hospital de Faro, a 9 de agosto, ainda não se realizaram porque a Câmara Municipal de Albufeira não tem funcionários para assegurar o enterro. “Nunca pensei que se suicidasse, nunca tinha dado um sinal. Não havia nada que apontasse nesse sentido”, explica ao i a viúva, Maria do Carmo Labiza. “Isto tudo, se a Câmara tivesse coveiro, podia ter terminado no sábado. Mas a espera continua e eu ainda sinto que o meu marido está vivo, não começámos a fazer o luto”, adianta. “Estou muito revoltada com a Câmara Municipal”, revela.

Neste momento, Maria do Carmo não tem uma única razão que a leve a diferenciar a realidade da ficção. As tragédias não precisam que se lhes acrescente mais um ponto. Este não é o caso. Sofrendo de ansiedade e insónia, Luís Manuel Labiza estava devidamente medicado para ambos os distúrbios e devia ter sido vigiado atentamente. Como o i já tinha noticiado, na semana passada, a 31 de julho, o homem de 68 anos, nado em Ferreiras, no concelho de Albufeira, deu entrada no Hospital de Faro depois de aparentemente ter caído de uma árvore – enquanto fazia a apanha da alfarroba – e apresentava múltiplas fraturas.

Na véspera de os acontecimentos se precipitarem, 8 de agosto, Maria do Carmo visitou o marido e notou-o confuso. Perdera a noção de que estava no hospital: “Se estou em casa do meu avô, porque é que estou amarrado?”, perguntou. No entanto, Maria do Carmo achou o estado psicológico do marido próprio de quem estava a ser medicado com morfina. Estava esperançosa: “Um médico que o acompanhava disse que ele até estava a melhorar e ia reduzir-lhe a medicação”. O médico mencionado, Francisco Soto Antelo, tranquilizou-a e terá sido muito atencioso.

Estes sinais eram claros no diário clínico do doente. Os medicamentos para a depressão e a insónia constam na informação, bem como a sua desorientação. Com graves problemas de audição, agravados pelo uso de máscaras por parte dos profissionais de saúde, acabava por não ouvir bem os médicos nem enfermeiros. E, como o i já havia noticiado na semana passada, na área dos antecedentes pessoais, começamos por ler: “Doente não consegue especificar”, sendo no final mencionado o “seguimento em consulta de Psiquiatria por ansiedade e insónia”. 

As “dificuldades de comunicação com o doente por hipoacusia e alguma confusão”, assim como o facto de a esposa ter deixado claro que “parte da confusão no discurso se deve às máscaras, pois está habituado a fazer leitura labial”, ainda que parecesse ter “um discurso ligeiramente incoerente em alguns momentos”, também foram mencionados, ilustrando o estado em que Luís Manuel se encontrava. Mas, antes de mostrar estar confuso, Luís Manuel chegava a mandar cumprimentos aos vizinhos e a perguntar se Maria do Carmo tinha regado as tomateiras e laranjeiras.

“É suposto as pessoas entrarem mal e saírem melhor” Além de estar deprimido, o paciente não teve visitas na terça-feira. As regras existentes no âmbito da pandemia de covid-19 assim o impõem. Na segunda-feira, Maria do Carmo esteve com ele pelas 19h e já foi por “especial favor”. Era a última vez que o via. Na quinta-feira anterior, durante uma visita, devido a um episódio de alguma agressividade, encontrou Luís Manuel amarrado à cama. A enfermeira pediu-lhe que administrasse os comprimidos ao marido porque este os tinha deitado fora.

“Uma pessoa, com este historial, ao cuidado de uma instituição hospitalar, não se pode suicidar lá! Se ele estava confuso, devia ter ficado amarrado à cama para não se mexer”, comenta uma fonte hospitalar. “É suposto as pessoas entrarem mal e saírem melhor, a não ser quando é inevitável”, indica.

Luís Manuel ficou, assim, entregue à sua sorte. Com ele, dois colegas de quarto: havia um doente entubado, naquela enfermaria, e outro que seria submetido a uma intervenção cirúrgica. Pelas 22h30, ocorreu a mudança de turno da equipa de enfermagem. O homem libertou-se dos drenos e da algália, ainda que tivesse várias fraturas, conseguiu passar por cima das grades de proteção da cama e dirigiu-se à janela sem que, entretanto, os enfermeiros se tivessem apercebido daquilo que fizera. Um dos colegas era seu amigo e vizinho e gritou, mas ninguém acudiu. Luís Manuel abriu a janela, que tinha puxador – ao contrário do que é suposto -, e atirou-se. 

“De momento, estou muito fragilizada e não vou fazer nada”, diz a viúva em relação à instauração de um eventual processo contra o hospital. “A minha filha também diz que agora precisamos é de paz”, declara, revelando que o marido estava ansioso por ser avô pela primeira vez, pois apenas têm uma filha que está grávida de três meses – a quem o hospital telefonou, por volta da meia-noite de quarta-feira, a dar a notícia do falecimento do pai. Como o i já tinha noticiado, o último médico a escrever na ficha de José Manuel foi o único profissional que efetivamente anotou que o homem tinha caído do quarto andar, sendo que, antes dessa observação, existiam apenas dados referentes à manhã desse mesmo dia. “Queda do 4º andar. Encontrado em respiração agónica que evolui para PCR em AESP, manobras de SAV 20min com recuperação da circulação espontânea. Estabilização na SE. Fluidos, epinefrina, ácido tranexâmico. ECO FAST sem sinais da hemorragia. Peço TC CE, pescoço, tórax, abdómen pélvico. Na sala de TC novamente PCR em AESP. Verificado óbito às 23:30h”, lê-se no documento. 

Perguntas por responder Continuam a subsistir muitos pontos de interrogação nesta história. Será que Luís Manuel se suicidou porque pretendia, deliberadamente, pôr termo à vida ou terá desejado sair da enfermaria tal como os restantes doentes que pensam no regresso a casa? Do lado do Centro Hospitalar do Algarve, o silêncio mantém-se. O acontecimento foi comunicado à Polícia Judiciária de Faro, que está a investigar o caso e a autópsia foi realizada. Desde sexta-feira, o corpo está numa câmara frigorífica no Cemitério de Albufeira à espera da sua vez.

Quando, nessa madrugada, Maria do Carmo recebeu a notícia da morte do marido, não acreditou que havia sido um suicídio. “Há muitos anos que o meu marido estava deprimido, era seguido por um psiquiatra e nunca teve ideias suicidas”, lembra Maria do Carmo. “Aquilo que penso é que ele apenas queria fugir dali”, desabafa. Confrontada com a informação de que na ficha de José Manuel somente consta que terá caído do 4.º andar, é assertiva: “Claro, o hospital quer salvaguardar-se”.