Mundial 2022 – Odisseia num pequeno espaço

A pouco mais de quatro meses do início do Campeonato do Mundo o minúsculo Qatar (11.437km2) está com graves problemas para receber os milhares de visitantes esperados. Despejos, rendas que sobem até 35%, hotéis a cobrarem mais de 40 mil dólares por um mês de estada.

A última vez que estive em Doha, a construção dos estádios para a próxima fase final do Campeonato do Mundo de futebol estava no seu início. Com o meu camarada e amigo Daffralah Mouadhen, que conheci em 1994, na Tunísia, aquando de uma Taça de África, um jornalista que tem feito mais do que ninguém pela divulgação do futebol naquele que se chamava antigamente Golfo Pérsico, que por causa dos rififis políticos passou a chamar-se Golfo da Arábia, e que tem inequívocas responsabilidades na forma como a organização do próximo Mundial foi entregue ao Qatar, engolimos areia e pó, enfrentando trinta e muitos/quarenta graus centígrados para visitarmos os locais das obras dos oito estádios que vão receber os jogos: Lusail (que receberá o jogo de abertura – Qatar-Equador – e a final), Al Bayt (situado na cidade de Al Khor e construído em forma de tenda beduína), Ras Abu Aboud (construído à base de contentores reciclados e que será desmontado mal termine a competição e transferido para a Austrália, que o comprou), Al Thumama (erguido nos arredores da capital e com uma imagem absolutamente branca), Al Wakrah (com o interior todo coberto a madeira), Al Rayyan (em pleno deserto), Qatar Foundation (que fica na zona universitária) e Khalifa (construído em 1976 e agora reformado). 

Já se sabe que Portugal se estreia no Ras Abu Boud – entretanto já mais conhecido por 974 Stadium por ser esse o número de contentores utilizado na sua construção – contra o Gana, no dia 24 de Novembro. Em seguida, irá ao Lusail para defrontar o Uruguai, no dia 28, e finalmente fecha a fase de grupos no Qatar Foundation, encontrando a Coreia do Sul de Paulo Bento no dia 2 de Dezembro.

Depois de termos tido um Mundial no maior país do Mundo (Rússia 2018) estamos à beira de outro num dos mais pequenos. Na verdade, o Qatar reduz-se a 11.437 km2 o que, para fazerem uma ideia mais concreta, vale praticamente um terço do Alentejo, com os seus 31 551 km2. Vamos estar no mais moderno e espectacular – em termos arquitectónicos – Mundial de  todos os tempos, não tenham dúvidas, escreve quem já esteve no local e testemunhou o crescimento das infraestruturas, sobretudo da rede de metropolitano que liga todos os estádios uns aos outros e ao centro de Doha e  que vai permitir que, em muitos casos, seja possívela aos espectadores assistirem a dois (ou mesmo a três) jogos por dia, tão curtas são as distâncias e tão rápidos os percursos. Aliás, essa tem sido uma das palavras de ordem do Mundial do Qatar – aproveitar um país pequeno para ver todo o futebol que quiser. Encham a pança de bola, senhoras e senhores, por nunca mais haverá outro assim – se pensarmos que 2026 será uma competição dividida por três países gigantes, Estados Unidos, Canadá e México, é fácil acreditar no slogan qatari. Não haverá uma competição tão gigantesca num pedaço de terra tão minúsculo per omnia saecula saeculorum. E não temos de ter artes de adivinhação para o garantir…

‘Small is beautiful?’
Foi uma frase publicitária que fez furor no seu tempo. Bem gostariam os organizadores deste Mundial que encaixasse nas suas pretensões. Claro que acenar aos visitantes com a possibilidade de verem dois ou três jogos por dia é algo de bastante atractivo. Mas há, pelo meio, um pormenor terrível para este país de cerca de dois milhões e trezentos mil habitantes: mais gente e lugares onde encaixar essa gente. Falamos, obviamente, dos adeptos que irão acompanhar as suas selecções.

Neste momento, uma restrição parece confirmar-se: ninguém vai conseguir comprar uma viagem para o Qatar entre Novembro e Dezembro se não provar que tem hotel marcado ou, pelo menos, lugar onde dormir. Apesar da abertura do governo do primeiro-ministro Khalid ibn Khalifa ibn Abdul Aziz Al Thani já ter prometido que vão existir zonas demarcadas para que os adeptos quebrem a proibição de ingerir álcool, por exemplo, o emir Tamim bin Hamad Al Thani (sim, sim, são da mesma família) já se mostrou pública e frontalmente contra a possiblidade de ver peregrinos do futebol a dormirem nas entradas de prédios ou noutros espaços públicos de Doha – a capital, com uma população total de 2 milhões e 300 pessoas acaba, naturalmente, por confundir-se com o país.

Assentemos nesta premissa: a pouco mais de quatro meses do seu início, o Mundial do Qatar ameaça ser um pesadelos para os adeptos que anseiem por ver os jogos ao vivo. O meu querido companheiro Daffralah, que fez parte de uma secção internacional de A Bola de que fui editor vários anos – com o auxílio indispensável de um mestre chamado Viriato Mourão -, nosso correspondente para todos os países do Golfo Pérsico ( Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Bahrain, Koweit, Iraque e Irão) – um de uma lista de mais de 150 que cobriam todo o mundo desde a Bolívia à Papua Nova-Guiné, tem vindo a estudar com atenção o fenómeno do albergamento no Qatar durante o período que durará  a prova – 21 de Novembro a 19 de Dezembro. Um verdadeiro quebra-cabeças para a FIFA e para o comité organizador que se encontram com as caixas de correio entupidas por todos os milhares de pessoas que querem estar presente in loco no Campeonato do Mundo – recorde-se que a FIFAtem, no seu site, um link que permite obter informações sobre hotéis e outros lugares de  permanência no Qatar. Se querem a minha opinião sincera – não funciona com grande rapidez.

Problema grave!
Para já, surgiram novas probabilidades de alojamento: quartos a bordo de barcos de cruzeiro e dormidas em dows (típicos barcos de madeira da zona) passaram de possiblidade a facto. Um avanço muito aceitável num mundo de burocracia como é o Qatar.

Voltemos à questão a população local: quando colocámos sobre a mesa o número de dois milhões e trezentos mil habitantes, esquecemo-nos de acrescentar que apenas um milhão é de qataris. Todos os outros são emigrantes ou trabalhadores a contrato, o que faz da população do Qatar algo de extremamente volúvel. Agora, por cima destes números, apontemos para mais um milhão e trezentos mil visitantes em Novembro e Dezembro. Parece algo de louco e é mesmo! Mas talvez ninguém tenha levado o assunto muito a sério na hora de entregar o Mundial de 2022 ao Qatar.
Mais números oficiais e indiscutíveis: a capacidade hoteleira de Doha não vai além dos 400 mil quartos. Isto é, praticamente um terço da malta que é esperada neste momento. Talvez, com o tempo que ainda falta, exista uma capacidade dissuasora que faça diminuir a terrível onda humana que se apresta a invadir o país. A assim não ser, outras medidas irão ser tomadas pela certa.

O Qatar tem vivido anos de um projecto colossal de modernização, de construção e de instalação de espaços verdes numa cidade dominada pela poeira deserto vizinho. A factura destes últimos dez anos de esforços brutais ultrapassou largamente o orçamento inicial de 229 milhões de dólares e, neste preciso momento, os estrangeiros que decidiram instalar-se a trabalhar no país estão a suportar uma espécia de desastre financeiro. Nas últimas semanas temos assistido ao esforço dos expatriados para obrigarem os hotéis e restantes gestores imobiliários a controlarem os aumentos exponenciais de rendas e de juros sobre empréstimos para compra de casas.Do outro lado encontram ouvidos moucos. Portanto, toda a pressão tem sido feita, recentemente, através das insistências em contactos telefónicos ou pela intervenção nas redes sociais. Mas, vamos e venhamos: perante o afluxo de gente que está para chegar, na sua maioria disposta a gastar o seu dinheiro com prodigaalidade, qual o proprietário que não quer ver o seu inquilino, de renda banal, pelas costas, recebendo de braços abertos outro que está disposto, mesmo que por apenas um mês,  a pagar quatro ou cinco vezes mais? Ora tubérculos! Nem no Qatar, nem no Tibete, nem nas faldas das Montanhas do Pamir.

«Vivemos um período de absoluta ansiedade», confessa um inglês que há seis meses trabalha em Doha. «Todos os proprietários de casas estão, nesta altura, a fazer os possíveis para nos despejarem. O Campeonato do Mundo brilha-lhes nos olhos como cifrões. Todos eles pensam aquilo que podem vir a facturar durante esse mês que vai ser louco, louco aqui em Doha. As rendas vão disparar em direcção ao céu!»

Muitos outros residentes têm surgido a público declarando que, desde o passado mês de Setembro, estão a receber cartas dos donos dos imóveis que habitam dando conta da alteração de contratos. Pela lei, no Qatar, os senhorios podem aplicar um aumento de renda na ordem dos 10% no final de cada contrato. Pelo que se pode ouvir pela boca dos descontentes, há agora senhorios a impor aumentos na base dos 20 a 35%. E não julguem que isto só abrange a classe média, habitualmente a vítima preferida de todas as convulsões financeiras. Até os habitantes da zona mais final da capital, The Pearl-Qatar, uma ilha artificial e o local onde estão instaladas as lojas da Versace, da Hermès ou da Ferrari, por exemplo, e que pagan por um T2  algo entre 1 600 e 2 500 dólares por mês estão a ser vítimas deste bullying de arrendatários. Toca a todos.

O medo…
Os residentes de Doha, na sua grande maioria, são de opinião que, se este bullying der resultado, os proprietários de apartamentos irão duplicar o volume de rendas entre Outubro e Dezembro. Só nos chamados Airbnb (os alojamentos locais) prevê-se que passarão da actuaal receita de 31. 200 dólares/mês para mais de 300.000 (na zona do The Pearl), contabilizando os 28 dias de jogos. Enfim, não há quem não viva o terror de se ver muito, muito atrapalhado para pagar ios aumentos de renda que aí vêm.

Os próprios analistas imobiliários não têm dúvidas sobre aquilo que está à acontecer. Johnny Archer, responsável pelo rastreio e consultor da Cushman & Wakefield, uma sociedade internacional de imobiliário comercial, reuniu a imprensa há uns dias para uma declaração sobre a matéria: «Estamos à espera de uma enorme pressão suplementar que irá cair sobre os inquilinos que arrendam apartamentos e que se irá reflectir neste tempo que antecede o Campeonato do Mundo de futebol Os proprietários estão cada vez mais decididos a renovarem os contratos apenas por dois anos de forma a não serem abalados pela inflação que aí vem, por mais temporária que ela seja. Não nos restam dúvidas que, no ano de 2023, as rendas irão voltar a descer de forma muito significativa».

Lá está: uma questão de espaço. Quem o tem, num país onde ele escasseia, procura fazer o negócio da sua vida. Nunca mais haverá tanta gente a querer estar no Qatar ao mesmo tempo. Há quem se disponha a arrendar até um despensa se houver quem se sujeite  a querer lá dormir.

«Toda a gente já sabia que o Mundial vinha aí e todos nós tínhamos consciência da escassez de alojamento que existe no Qatar», diz-nos uma senhora que vive, precisamente, em The Pearl. «Por isso, todos os proprietários desta zona vão exigir, pelo menos, mais 20% sobre a verba de arrendamento. Não há que espantar. É o custo de vivermos num país pequenino e ter-nos sido entregue um acontecimento gigante, a nível universal. Mal acabe o Campeonato doMundo as rendas vão por aí abaixo. Neste momento o meu senhorio está preocupado é com o que pode vir a ganhar nestes próximos três ou quatro meses. É uma oportunidade única. Não posso acusá-lo de nada. Percebo. Talvez se estivesse no lugar dele fizesse o mesmo».

A prioridade, agora, é receber os adeptos do futebol! Muito projectos acabados de construir ficaram desde logo reservados para eles. Estamos a falar de unidades hoteleiras que, no seu total, atingem os 64 mil quartos. Serão estreados no Mundial. Mas também há gente mais remendada que está a colocar na internet quartos nos seus apartamentos por 500 dólares por noite. Cabinas pré-fabricadas de 2 m2 custavam, ontem, 250 dólares por noite; os hotéis reservados pela FIFA para jornalistas e delegados variam entre os 300 e os 350 dólares. 

Não são só os ricos a ficarem encantados por esta febre do ouro fácil. A cupidez é uma doença nacional nos dias que correm. A empresa finlandesa Admares assinou um protocolo com o grupo Katara Hospitality e contruíram 16 hotéis flutuantes em Lusail. Quatro andares, 72 metros de comprimento e 16 de largura com funcionamento à base de energia solar. Tudo desmontável e pronto a levar para um país que os queira comprar. Qetaifan Island, também em Lusail, estende-se por 38 km² e poderá albergar 450 000 visitantes. Preços? Exorbitantes!!! 40.000 dólares por um mês. Já o Kempenski (5 estrelas) publicou no seu site: quarto simples durante 30 noires – 158.000 reais. Ou seja, algo como 45.000 dólares!!! Bem vindos aos países do ouro negro. As portas estão abertas para quem trouxer dinheiro no bolso.