O aviso da Tavistock

Não só as crianças e jovens com disforia de género enfrentam grandes desafios e merecem um acompanhamento atento e complexo que não deve procurar uma solução imediata e fácil, também ela imberbe; como outras vivem confusões e angústias próprias do desenvolvimento, que deverão ser ouvidas e trabalhadas. 

É com preocupação que vejo o nome da Clínica Tavistock– onde cheguei a fazer uma formação e com ao qual colaborei em alguns seminários realizados em Lisboa – nas bocas do mundo pelas piores razões: o seu serviço dedicado à identidade de género (Gids) está a enfrentar uma ação legal em massa pela prescrição precipitada de bloqueadores de puberdade a crianças e jovens. 

Desconhecida para a maioria das pessoas em Portugal, a Clínica Tavistock, sedeada em Londres, é uma referência para quem trabalha em saúde mental. Nasceu em 1920 para tratar as neuroses de guerra de soldados ingleses e ao longo da sua história contou com os mais notáveis nomes da psicanálise, como John Bowlby, Michael Balint, Wilfred Bion, Donald Meltzer ou Donald Winnicott. Sigmund Freud e Gustav Jung chegaram a ser vice-presidentes desta clínica. 

Como uma das entidades de excelência da clínica psicanalítica, diria que a Tavistock jamais passaria por uma situação destas. Qualquer tipo de acompanhamento a crianças e jovens deve ter não só uma sólida base teórica, como deve desenrolar-se numa valsa lenta – através de um relacionamento longo, próximo e sério, que implica sentimentos, dinâmicas e pensamentos implícitos e explícitos – que leva a um conhecimento profundo do paciente. 

No início de 2020 já teria sido movido um processo contra esta clínica com a argumentação de que seria ilegal receitar bloqueadores de puberdade a menores de idade, ao que em resposta a Tavistock garantiu ter uma abordagem cautelosa.

O que não se verificou quando o serviço se viu sobrecarregado e conduziu um número preocupante de crianças e jovens a tomar decisões precipitadas e irreversíveis, recorrendo a tratamentos controversos e pouco estudados.

Podemos concluir com este triste capítulo que na correria cega da igualdade e da inclusão corre-se o risco, como aconteceu, de medir todos pela mesma bitola, acabando por, paradoxalmente, não respeitar nem dar espaço às necessidades específicas de cada um.

Não só as crianças e jovens com disforia de género enfrentam grandes desafios e merecem um acompanhamento atento e complexo que não deve procurar uma solução imediata e fácil, também ela imberbe; como outras vivem confusões e angústias próprias do desenvolvimento, que deverão ser ouvidas e trabalhadas. É importante que não se coloquem todos no mesmo saco e, acima de tudo, que em ambos os casos não se precipite um diagnóstico, nem se avance sem cautela para uma ‘solução’ que poderá ter consequências graves, irreversíveis e imprevisíveis. 

Ao cometer estas precipitações, a sociedade atua de forma muita idêntica à de alguns adolescentes quando passam ao ato e agem impulsivamente em vez de darem espaço ao pensamento. A sociedade tem de ter um papel muito mais responsável e adulto, protegendo com consciência os mais novos, compreendendo e respeitando o seu desenvolvimento, que pode trazer conflitos internos e sofrimento, que conta com certezas que mudam com facilidade, ajudando a que se compreendam, com calma e ponderação, não se deixando embarcar em ideologias ou interesses políticos ou sociais. É imperdoável a facilidade com que foram tomadas decisões erradas com consequências tão graves e irreversíveis.

Não nos podemos deixar levar por esta cegueira traiçoeira que começa a matar a lucidez, o pensamento e o bom senso.

Há que permitir que as crianças sejam livres, física e emocionalmente, deixá-las viver e crescer sem constrangimentos, permitir que tenham dúvidas, vacilem, avancem e recuem, oferecendo um apoio e ajuda sérios e reais, para que se compreendam e amadureçam em segurança, independentemente do tipo de problemática. Para que, a seu tempo, possam tomar decisões de forma informada e consciente.