Uma tragédia legal

A clínica Tavistock foi acusada de «prescrever bloqueadores hormonais a muitas crianças sem analisar os efeitos a longo prazo deste tratamento».

Em 2020, a opinião pública inglesa foi agitada pelo ‘caso Keira Bell’. Uma mulher acusava a clínica Tavistock & Portman, do serviço público de saúde do Reino Unido (NHS), especializada em tratamentos de ‘transição sexual’, de ter iniciado o seu processo de mudança de mulher para homem sem exames aprofundados.

«Quanto mais a transição avançava, mais eu percebia que não era homem, e que jamais o seria», afirmou Keira Bell, oito anos após o início do tratamento, conforme publicou a National Review. «À medida que amadurecia, fui percebendo que a disforia de género era um sintoma da minha tristeza em geral, e não a causa», explicou. 

E os advogados de Bell defenderam que jovens menores de idade não estão aptos a decidir sobre a ‘transição de género’ e a consentir um tratamento que inclui bloqueadores hormonais – que restringem as hormonas ligadas a mudanças no corpo durante a puberdade, como a menstruação ou o surgimento de pelos faciais – ou alterações físicas, como as mastectomias (a que Keira também foi sujeita). 

A queixa de Keira Bell poderia não passar de um expediente oportunista para sacar uns milhões de dólares de indemnização à clínica Tavistock, por comportamento negligente. Só que, agora, o Governo britânico decidiu mesmo encerrar a clínica. 

Esta decisão segue-se a um relatório arrasador da pediatra Hilary Cass, publicado em março, segundo o qual a clínica «prescreveu bloqueadores a muitas crianças sem analisar os efeitos a longo prazo deste tratamento». E a revista The Week, de 6 de agosto, adianta que a instituição terá sido ‘tomada de assalto’ por ativistas ‘trans’, que aceitam sem questionar declarações de crianças dizendo que «nasceram no género errado, ignorando outras possíveis explicações».

Perante tudo isto, o jornal The Times conclui: «Os estragos feitos são aterradores».

Já me pronunciei em textos anteriores sobre estes processos de mudança de sexo, que me parecem aberrantes. De qualquer forma, era suposto que essas decisões fossem tomadas pelos médicos após longos processos de observação dos pacientes, com estudos psicológicos aprofundados e cuidadosas análises de comportamento. E mesmo assim, o grau de subjetividade das análises permitiria muitos erros.

Mas não é isso que se passa. No caso de Keira, tudo foi decidido após três consultas de uma hora cada, quando ela tinha apenas 15 anos! Decidiram mudar o sexo a um jovem ser humano após três horas de consulta! 

 E uma ex-enfermeira da clínica Tavistock afirmou à Justiça britânica que bloqueadores de puberdade teriam sido receitados a crianças muito novas, de 12 anos, sem avaliações psicológicas «adequadas».

Ou seja, em idade infantil ou no início da adolescência, numa altura em que os jovens começam a ter dúvidas de toda a ordem – em relação ao que são, ao que querem ser, à relação com os outros, aos seus afetos, aos seus medos… -, os médicos aceitam como definitivos os seus testemunhos e, com base neles, iniciam processos brutalmente invasivos, que vão provocar mudanças radicais no seu corpo. 

Parece ficção científica, mas é a realidade em que já vivemos.

 E de ano para ano a questão agrava-se. A clínica Tavistock começou com umas centenas de casos e já vai em milhares por ano. Como se mudar de sexo se tivesse tornado uma ‘moda’ – que as redes sociais irresponsavelmente propagandeiam.

 

Entretanto, apesar do seu óbvio interesse público, a discussão deste tema é tabu. Tudo se discute hoje, da política à religião. Tudo se pode pôr em causa, a começar pelo Presidente da República. Mas nestes assuntos o debate é interdito; só são permitidas as campanhas a favor.

Há uns anos fui processado por um organismo do Governo – num processo que um juiz mais lúcido acabou por arquivar – por publicar um artigo em que fazia a seguinte pergunta: se um indivíduo que nasce num corpo de homem quer ser mulher, ou vice-versa, o que fará mais sentido: dar-lhe apoio psicológico no sentido de tentar adequar a mente ao corpo que tem, ou procurar transformar o corpo para ficar de acordo com a mente?

Com uma certeza: a ideia que cada um tem acerca da sua identidade pode mudar com o tempo, mas o corpo mantém-se inalterado: um homem não se transforma ‘naturalmente’ em mulher e vice-versa. 

E isto ainda é mais verdade em crianças e adolescentes, que não têm a personalidade formada, e em que as certezas de hoje poderão ser renegadas com o mesmo vigor amanhã.

Mas neste assunto quem impõe a sua lei são os ativistas ‘trans’. Estamos num tempo em que a ideologia dominante é estabelecida pelas minorias. 

As minorias começaram por ser reprimidas, depois foram toleradas, a seguir protegidas, e hoje são dominantes – tendo-se tornado agressivas e repressoras.

A imensa maioria acanha-se, com medo de ser insultada, amesquinhada, ridicularizada, apelidada de ignorante, negacionista, reacionária – ou mesmo processada. Mas os ativistas não se acanham: avançam sempre, são voluntaristas, combativos e acabam por impor a sua vontade.

Conseguem levar o serviço público de um país a iniciar processos de mudança de sexo em meninos de 12 anos, como se fosse possível estes terem opiniões definitivas sobre se querem ser rapazes ou raparigas. 

Mais: como se fosse possível criar corpos de rapazes a partir de meninas ou o contrário. 

Tudo isto é uma burla, um faz de conta, porque destas operações sairão sempre seres híbridos, que não serão nem homens nem mulheres, muitas vezes carregados de problemas superiores àqueles que tinham antes.