“O sonho de Putin é reerguer a União Soviética”

Em entrevista exclusiva ao Nascer do SOL, Wesley Clark defende que só é possível a paz na Ucrânia quando as tropas russas abandonarem a Crimeia e o Donbass. E anteve mais conflitos no mundo caso isso não aconteça.

Após 6 meses de guerra na Ucrânia, qual a sua avaliação atual da situação no terreno?

A Ucrânia mostrou com os seus esforços militares que pode enfraquecer a máquina militar da Rússia. Ambos os lados sofreram grandes perdas. A Rússia não pode conquistar a Ucrânia enquanto o Ocidente continuar a fornecer assistência militar, mas a Ucrânia precisa de mais assistência militar para lhe dar a força para expulsar as forças russas da Ucrânia. A única base para um acordo diplomático é que todas as forças russas devem abandonar a Ucrânia, incluindo a Crimeia e o Donbass. Quando a Rússia fizer isso, então a paz pode ser acordada.

Esta guerra pode ter uma resolução rápida?

A guerra só terminará quando o presidente Putin desistir do seu sonho de destruir e erradicar a Ucrânia. No mundo moderno, não podemos permitir a agressão. É inadmissível. Além disso, o genocídio que está a ser perpetrado na Ucrânia pelas forças russas é abominável.

A Ucrânia sobreviverá à guerra sem um acordo negociado sob os termos do Kremlin? Ou terá que renunciar a parte do seu território?

Acho que a Ucrânia não vai renunciar ao seu território. Lutará até o fim e está a lutar não apenas por si, mas pelos princípios ocidentais de estado de Direito em assuntos internacionais. Se for permitido à Rússia invadir um país soberano independente, como a Ucrânia, a Rússia, a China, o Irão, o mundo, como o conhecemos, será muito instável e as perturbações económicas que temos vindo a assistir, com custos crescentes de combustível e escassez de alimentos em lugares como a África Oriental, vão ser muito piores. Esses conflitos resultarão na morte de milhões de pessoas se eles não forem parados. E onde isso tem que ser parado desde já é na Ucrânia.

De que forma pode a Ucrânia recuperar a Crimeia?

A Ucrânia precisa de mais assistência militar para continuar a recuperar o seu território. Precisa de mais artilharia, de tanques, de aeronaves. Esta é uma guerra moderna mecanizada, não é o Afeganistão.

E a NATO pode ajudar?

A NATO é apenas uma aliança de nações independentes soberanas. Essa não é a missão da NATO. Cabe aos Estados Unidos, à Alemanha, França, Itália, Espanha, ou a Portugal oferecer a assistência necessária para a Ucrânia, porque a Ucrânia está a lutar por todos nós.

A posição da Turquia em relação à Ucrânia e à Rússia é bastante complexa e ambígua. Por um lado, a Turquia tem fornecido drones Bayraktar à Ucrânia, ao mesmo tempo em que se posiciona como mediador. Por outro lado, não está a impor sanções à Rússia. Como é que o Presidente Erdogan consegue fazer isso?
O Presidente Erdogan está nos dois lados da barricada. Pode ser útil para acabar com a guerra se  der mais assistência militar à Ucrânia. E ao mesmo tempo se continuar a conversar com o presidente Putin. E não há problema nenhum com isso, porque a guerra só terminará quando Putin estiver convencido de que não pode vencer.

Até que ponto o Presidente Erdogan está a agir de forma independente no confronto entre Rússia e Ucrânia? A abordagem turca é coordenada com os Estados Unidos?
Há muita coordenação entre todos os países, mas os países soberanos fazem o que precisam de fazer.

Serviu como Comandante Supremo Aliado da NATO na Europa durante a guerra no Kosovo. Como reage às recentes declarações do presidente sérvio Aleksandar Vucic, pedindo à NATO para agir e ameaçando uma intervenção, após o colapso das negociações mediadas pela UE entre a Sérvia e Kosovo?
Em primeiro lugar, a NATO já está no Kosovo com o KFOR. Em segundo lugar, o Presidente Vucic terá que aceitar o Kosovo como um país independente. Por razões políticas internas na Sérvia, isso é muito difícil, mas está na hora de deixar o passado para trás. Nos Estados Unidos, as pessoas esquecem o passado muito rapidamente. Na Europa, lembram-se disso para sempre. E isso é especialmente verdade nos Balcãs.

Acha que a Rússia poderá encorajar a Sérvia a uma intervenção armada no norte de Kosovo que desestabilizasse ainda mais os Balcãs e desviasse as atenções da invasão da Ucrânia pela Rússia?
A Rússia está a fazer cócegas nesses limites procurando desestabilizar os Balcãs, mas tenta fazê-lo com um toque muito leve.

De que maneira pode a guerra na Ucrânia afetar a geopolítica e os planos da China, Coreia do Norte, Paquistão, Índia, Irão e Estados árabes, Turquia e outras grandes potências militares como Israel e Egipto?
Todos os países estão a assistir a este conflito na Ucrânia. O que estão a ver é a liderança do Presidente Biden, a coragem e a força da resistência da Ucrânia. E estão a ver a relativa incompetência militar da Rússia, que tem uma tecnologia militar relativamente pobre. Depois estão a ver a NATO cada vez mais resolvida e relevante nos dias de hoje. Mas muitos países não se comprometem com nenhum dos lados enquanto assistem ao conflito. Isso é um erro porque esta luta é sobre o sistema internacional de que desfrutamos, incluindo o sistema financeiro internacional, as Nações Unidas, o Banco Mundial, o desenvolvimento internacional e as relações pacíficas entre as nações de todo o mundo. Então, um lado está a lutar por esses princípios; o outro lado apoia-se nos princípios da regra da força do século XIX. Isso não é produtivo no mundo moderno. Os que estão sentados em cima do muro têm de estar do lado certo dessas questões.

E esses países não tomam partido porquê?
Esses países não querem pôr em causa as relações com a Rússia. Alguns deles compram armas russas. Outros estão a lucrar com o petróleo russo. Outros têm residentes nascidos na Rússia. E também estão à espera para ver o que acontece nas próximas eleições presidenciais norte-americanas.

O que pensa sobre a expansão da NATO e os recentes desenvolvimentos no processo de adesão da Finlândia e da Suécia à Aliança?
Acho que o facto de a Finlândia e a Suécia terem aderido à NATO fortalece a Aliança, e dissuade e reduz a probabilidade de uma guerra mais ampla na Europa.

O alargamento da NATO não provocará mais reações hostis da Rússia?
Não, porque isto nunca foi sobre a NATO. Trata-se do sonho de Putin de reerguer a União Soviética. O Kremlin sabe que a NATO não é uma ameaça para a Rússia. Eles sabem disso muito bem. Conversei pessoalmente com ministros russos que admitiram isso sorridentemente. É apenas o que dizem, mas sabem que a NATO não é uma ameaça.

A NATO está obsoleta ou a Aliança ainda é essencial para a manutenção da paz mundial?
A Aliança é essencial para a paz mundial. No século XX, vimos grandes guerras na Europa. Primeiro, houve as guerras associadas à dissolução do império otomano nos Balcãs. Isso  originou a Primeira Guerra Mundial, que matou milhões e resultou no fim da Rússia czarista. E, então, vimos a ascensão da Alemanha nazi e assistimos à Segunda Guerra Mundial. Após a Segunda Guerra e as horrendas atividades criminosas, o genocídio contra o povo judeu em toda a Europa, decidimos que nunca mais isso aconteceria. Construímos as Nações Unidas. Criamos o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para promover o desenvolvimento. Tentamos estabelecer um sistema de governação pelo Estado de Direito com a força nuclear dos Estados Unidos, como o último impedimento ao comportamento prepotente de potenciais agressores. Lutamos na Coreia, no Vietnam. Enfrentamos a Rússia na União Soviética. Participamos nas guerras anticoloniais em África. Portugal sabe muito bem disso. Travamos uma guerra perdida no Afeganistão. No final da Guerra Fria, tínhamos esperanças de uma Europa livre, em paz e unida.  O que aconteceu foi que a guerra eclodiu na Jugoslávia. Então percebemos que a paz e a estabilidade na Europa são indivisíveis. Não se pode ter guerra num canto da Europa e achar que não vai afetar o resto da Europa. Sendo assim, a NATO agiu durante a década de 1990 para resolver o conflito nos Balcãs.  Embora tenha sido oferecida à Rússia a oportunidade de participar ao lado da NATO nos Balcãs, o presidente Putin e a Rússia insistiram em ver a NATO e os Estados Unidos como adversários, porque queriam acabar com a liberdade e a independência das nações da Europa Oriental. Queriam reerguer a União Soviética e talvez até um pouco mais além dessas fronteiras, como os generais russos me disseram na década de 1990: ‘Estão a entrar na nossa parte da Europa. Estes países são nossos’. E estavam a referir-se à Polónia, Eslováquia, Hungria, etc. Já não se fala assim no século XXI. Isso é conversa do passado, da agressão e isso é o que está a acontecer agora. Portanto, a NATO é o único dissuasor para essa agressão.

Em 2018, o ex-Presidente Donald Trump acusou a Europa de estar a explorar os Estados Unidos, uma vez que a maioria dos países da NATO gasta menos de 2% de seu PIB em defesa. Os EUA estão a ser explorados?
Durante muito tempo, os europeus apoiaram-se demasiado nos investimentos militares dos Estados Unidos. Esta é uma questão que é chamada partilha de encargos, um termo específico da NATO. Esta é uma discussão em curso na Aliança há 70 anos. Quando o general Eisenhower foi o primeiro comandante da NATO, a primeira carta que escreveu ao presidente dos Estados Unidos dizia que o Reino Unido e a França não estavam a cumprir com as suas obrigações. Este sempre foi um problema.

Como se resolve esse problema?
Os países membros da NATO na Europa deviam gastar mais em defesa. E vão ter que o fazer, porque o que a Rússia está a fazer na Ucrânia vai obrigar a que as nações da NATO tenham que reinvestir nas suas indústrias de defesa.

Há eleições presidenciais dos EUA em 2024. Quais são as maiores conquistas da Administração Biden?
Geralmente, não gosto de falar sobre política interna fora do país. Mas cada Presidente tem um estilo único e a democracia norte-americana move-se em ciclos. Houve três grandes ciclos desde a guerra civil. Tivemos a Era Dourada, a Era Progressista e depois a Era de Reagan, com o setor privado. Nos últimos 40 anos trabalhamos para reduzir o papel do Estado. Isso fez crescer o descontentamento na esquerda norte-americana que exigia maiores investimentos em infra-estrutura, melhores escolas públicas, o perdão da dívida aos estudantes, seguros de saúde. Estas são todas as manifestações que dizem que o ciclo vai mudar. Esta é a genialidade das democracias. O problema com as ditaduras é que não se autocorrigem. Nas democracias, o senso comum, eventualmente, chega ao sistema eleitoral e resulta em mudanças nas políticas. Pode levar 10 anos, 20 anos, 30 anos, mas eventualmente as pessoas expressam os seus desejos nas urnas e as políticas refletem isso.

Os Presidentes não são colecionadores de informações secretas. Por que razão Trump manteve documentos confidenciais numa casa na Flórida que era insegura e potencialmente vulnerável a agências de inteligência estrangeiras?
Há muita especulação sobre o assunto na imprensa. Não há nada a acrescentar. O caso já seguiu para os tribunais. Talvez Trump compre um campo de golfe em Portugal e depois esteja disponível para uma entrevista.