Jesualdo. O último dos faraós

Jesualdo Ferreira acaba de ser campeão do Egito com o Zamalek. E garante: ‘Quero continuar a ganhar!!!’.

O Cairo! Com ponto de exclamação. Ah! É indispensável conhecer o Cairo. Quase dez milhões de pessoas se concentram naquele lugar da beira Nilo que ganhou o nome de al-Qahira, que quer dizer Conquistador. Talvez por isso recordo sempre aquele momento irónico do livro de Verne, A Volta ao Mundo em 80 Dias, em que Philleas Fogg (esquire) envia o seu valete, Passepartout, à procura de um hotel tranquilo onde passar a noite. E a resposta é inequivocamente a mesma: «Um hotel sossegado?! No Cairo?!!!».

O Cairo tem um novo conquistador português, Jesualdo Ferreira, que aos 76 anos ainda teve a vontade e a garra de aceitar levar o Zamalek ao título de campeão egípcio. Há seis anos, junto à baía de Doha, no Qatar, enquanto jantávamos sob um céu sereno e um calor constante, disse-me: «Algum dia tenho de acabar, de pôr um ponto final na carreira. Já tenho 70 anos, é altura de viver coisas que o futebol, que me deu tanto, não conseguiu dar. Se calhar é agora. Quando acabar o meu atual contrato, quero dizer. Ainda tenho mais ano e meio. Estranhei mas foi mesmo assim: contrataram-me por duas épocas. Pode ser que esta seja a minha última aventura». 

Conheço o Prof., como por vezes lhe chamamos, há tempo suficiente para conhecer a sua paixão pela sua função de treinador. Ainda me lembro dele no Torreense, na Académica, no meu tempo de jovem jornalista, quando abrimos as portas para uma relação de mútuo respeito e amizade sem alardes. E melhor me lembro ainda no Torneio de Toulon, em 1992, conquistado por Portugal pela primeira vez – eu era um dos dois únicos jornalistas presentes. O outro era o saudoso Carlos Arsénio.

Agora, campeão outra vez. «Em 2019, no Al-Sadd, no Qatar, disse que não queria abandonar o futebol sem ganhar mais um título. Acabei por continuar, por diversas razões, veio a pandemia, fui para o Brasil onde não correu muito bem, surgiu o Boavista, e esta vinda para oEgito e para o Zamalek foi como que uma repetição da última passagem por cá, voltando a ganhar o campeonato e a Taça. Portanto, tenho aqui duas questões. A emotiva, porque os adeptos queriam muito que eu regressasse e, depois, ficou visível que as vitórias de há sete anos não foi algo de isolado porque voltámos a repetir os triunfos». Depois, responde de imediato à minha questão seguinte: «Este título deixou em aberto a possibilidade de continuar no Zamalek por mais uma época. 76 anos, 48 de futebol. É algo que só é verdadeiramente especial porque tenho uma paixão enorme pelo futebol e quero continuar a ganhar. Por isso, enquanto puder e me deixarem fazer, e enquanto me sentir útil naquilo que faço vou continuar!».

‘Vou festejar!’
Continua Jesualdo Ferreira, num tom de entusiasmo inconfundível: «No fundo, nunca anunciei verdadeiramente que ia acabar. Claro que algum dia terá de ser. Mas, agora, vou festejar, estou a festejar. Mas isto ainda não acabou. Faltam duas jornadas para o final do campeonato, temos uma Supertaça para disputar, frente ao Al-Hilal, no Qatar, e isto aqui não para. Nunca para!».

Depois conclui: «Basicamente aquilo que queria deixar-te como mensagem minha neste momento é que foi um prazer enorme ganhar este título. É assim que eu sei viver! Já lá vão catorze títulos na minha carreira e quero continuar a ganhar mais!».

Uma vez chamei-lhe ‘O Homem que Viveu Vinte Vezes’. O rapaz que veio de Angola, para onde foi com os pais, ainda criança, e estudou em Chaves e em Aveiro antes de se instalar em Lisboa para concluir o curso de técnico, quer «continuar a correr», para usar uma expressão que utilizou certa vez numa das muitas entrevistas que lhe fiz. O seu sangue transmontano, de Mirandela, fê-lo firme de convicções. Nunca dobrou, nunca torceu. Foi ele, virtudes e defeitos, e o seu desígnio.

Dos 14 títulos de campeão do Egito do Zamalek, dois têm a marca de Jesualdo Ferreira. E não está contente. A vida, para ele, foi feita para se viver até ao tutano e não se deixem enganar pelo seu ar sisudo de sorriso difícil. Por detrás deles, há um coração do tamanho do Cairo…