Saúde. Os pecados capitais dos 1414 dias de governação de Marta Temido

Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, aponta pecados como “uma permanente dissociação da realidade” ou o facto de ter dito “que tinha contratado milhares de profissionais de saúde”.

A menos de dois anos do início da pandemia, Marta Temido tomou posse como ministra da Saúde. Sucedendo a Adalberto Campos Fernandes, a doutora em Saúde Internacional ficou com uma pasta complexa. O que aconteceu nestes mais de 1000 dias de governação para que a mesma terminasse na madrugada desta terça-feira? Quais foram os “pecados capitais” da dirigente que tinha exercido cargos de relevo, como o de subdiretora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical e de presidente não executiva do conselho de administração do Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa?

“A verdade é que o senhor primeiro-ministro diz que foi surpreendido pela decisão… Se ele foi surpreendido, é normal que tenhamos sido todos ainda mais surpreendidos! E por ele ter aceite o pedido. Esse facto resulta de várias circunstâncias que se adivinhavam que poderiam contribuir para isto. Desde logo, uma permanente dissociação da realidade: ainda este fim de semana passado, a ministra voltou a dizer que tinha contratado milhares de profissionais de saúde quando a Direção-Geral da Saúde (DGS), recentemente, referiu a necessidade objetiva de contratação quando estão um milhão e 500 mil portugueses sem médico de família”, começa por explicar Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), em declarações ao i.

“Sabemos as dificuldades das urgências um pouco por todo o país: Lisboa é mais reportada, mas a constituição de escalas é um problema geral. Ao mesmo tempo, havia a dificuldade de criação de condições de fixação dos médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e ainda temos de prestar atenção às reformas que têm vindo a acontecer e acontecerão! O facto de não ter valorizado os oito milhões de horas extraordinárias… Persistentemente, preferiu prestadores de serviços aos médicos do Serviço Nacional de Saúde…”, reflete o médico de família em Camarate.

“Isto, com a contestação de uma proposta da Ordem dos Médicos acerca da constituição de uma escala de médicos que garantisse quantidade e qualidade, a questão dos médicos poucos resilientes – havia pouca consideração, não interagiu connosco na anterior legislatura; não tivemos nenhuma reunião negocial. No fundo, tudo isto levou a que a senhora ministra tivesse em sua consciência que não tinha condições para continuar a desempenhar o cargo”, clarifica o profissional de saúde que, em dezembro de 2021, volvido um dia do fecho das urgências de pediatria do Hospital Garcia de Orta, em Almada, garantiu: “Ao preferir investir na TAP e nos bancos, este Governo mostra que não tem como prioridade o SNS. Não recebemos lições de resiliência de quem quer que seja nem desculpas não sentidas”.

Roque da Cunha referia-se às declarações que Marta Temido proferira na quarta-feira da semana anterior, durante a Comissão de Saúde, abordando o trabalho nos serviços de urgência dos hospitais: “Estes profissionais são, de facto, chamados a profissões extraordinariamente exigentes. E também é bom que todos nós, como sociedade e isto envolve várias áreas, pensemos nas expectativas e na seleção destes profissionais. Porque, porventura, outros aspetos como a resiliência são tão importantes como as suas competências técnicas. Estas são, de facto, profissões que exigem uma grande capacidade de resistência, de enfrentar a pressão e o desgaste e temos de investir nisso”.

No dia seguinte, a dirigente justificou que “não disse em momento nenhum que é necessário recrutar profissionais de saúde mais resilientes”, mas sim que “é necessário que todos façamos um investimento em resiliência, sobretudo quem trabalha em áreas tão exigentes como a Saúde”, admitindo que se sentiu “muito e genuinamente indignada com essa receção, com esse mal-entendido”.

Transferência de grávida não justifica desfecho per si “Por isso, sendo uma surpresa, naturalmente que, identificadas estas matérias e a incapacidade para junto com o Ministro das Finanças criar as condições para canalizar recursos para o SNS… Este desfecho tornava-se cada vez mais inevitável. O primeiro-ministro é soberano nas escolhas e na constituição do Governo e os dirigentes são também soberanos nas decisões. Quando o primeiro-ministro diz que a razão terá sido a transferência da grávida está a ser muito redutor”, frisa o dirigente do SIM, sendo que, depois da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) ter anunciado que vai investigar a morte da grávida de 34 anos que morreu ao ser transferida do Hospital de Santa Maria para o Hospital São Francisco Xavier, também o Ministério Público adiantou que abriu um inquérito à morte da gestante, tendo ainda determinado a realização de uma autópsia.

“Esperamos que o Conselho de Administração do Santa Maria torne a escala pública até porque o hospital não só através do diretor de departamento como do presidente do Conselho de Administração tem tido uma atitude de negação, de ocultação dos problemas, de não tornar públicos os constrangimentos e sabendo nós que o número de camas de neonatologia está muito abaixo das suas necessidades…”, indica, reconhecendo, no entanto, “que há um projeto anunciado e cuja primeira pedra foi lançada pela doutora Ana Jorge” para colmatar esta escassez de vagas.

“Aguardamos que, naturalmente, sejam esclarecidas a constituição das escalas e a razão de se ter destacado um médico interno dos primeiros anos para ter feito o acompanhamento da grávida. Entendemos que os diretores deviam ter explicitado essa razão. Foi assumido que não era um médico especialista, lamentamos isto e damos mais uma vez razão ao bastonário quando diz que quer garantir que estejam constituídas equipas que respondam a todas as necessidades, em todos os hospitais. O senhor primeiro-ministro disse que a senhora ministra vai continuar no cargo, pelo menos, até 16 de setembro. Se ele não vê ninguém para substituir Marta Temido, muito menos vejo eu que sou um simples dirigente sindical!”, admite, realçando, porém, que gostaria que o/a sucessor/(a) da ministra “conheça o setor, que tenha capacidade de influenciar o ministro das Finanças para alocar meios para o Ministério, capacidade de diálogo e que não utilize a propaganda como forma de resolver os problemas”. 

“Na anterior legislatura foi essa a atitude e isso já chegou: diziam que estava tudo bem e é mentira, a realidade confrontou-se com a propaganda. É uma pasta difícil, mas um primeiro-ministro que teve a confiança dos portugueses com maioria absoluta tem especiais responsabilidades”, observa Roque da Cunha. “Esta área precisa de decisões rápidas, sérias, certas e inteligíveis para o povo português”.