A ministra que a pandemia segurou

O sucesso do plano de vacinação deu-lhe carta branca para ser reconduzida no cargo, num Governo de maioria absoluta. Contudo, neste verão, o encerramento de várias urgências de obstetrícia exposto pela falta de especialistas para preencher as escalas de férias, foi mais água para um copo já a transbordar de problemas. 

Há cerca de um ano, em Portimão, António Costa entregava em mãos o cartão de militante do PS a Marta Temido. Num congresso onde os putativos candidatos a sucessores do líder socialista estavam dispostos como numa montra, o primeiro-ministro atirava a ministra da Saúde, cuja gestão durante a pandemia a tinha feito disparar nos rankings de popularidade, para o friso de delfins na calha para uma eventual liderança do PS.

O sucesso do plano de vacinação deu-lhe carta branca para ser reconduzida no cargo, num Governo de maioria absoluta. Contudo, neste verão, o encerramento de várias urgências de obstetrícia exposto pela falta de especialistas para preencher as escalas de férias, foi mais água para um copo já a transbordar de problemas. E, já depois de garantir que ia «continuar a lutar», em resposta aos pedidos de demissão que engrossavam tanto na oposição como no próprio PS, a ministra caiu, apanhando socialistas e governantes de surpresa.

Na madrugada da passada terça-feira, depois de ter sido noticiado que uma grávida morrera numa ambulância quando era transferida do Hospital de Santa Maria para o São Francisco Xavier, Marta Temido apresentou a demissão, «por entender que deixou de ter condições para se manter no cargo». E o primeiro-ministro veio imediatamente a seguir dar conta da aceitação do pedido e de ter informado o Presidente da República.

Nas declarações que fez sobre a demissão, Costa passou a ideia de que a governante estava em fim de linha, deixando escapar aos jornalistas que esta não era a primeira vez que Temido tremia na pasta, apresentando razões para sair do Governo.

«Não me sentia em condições de não respeitar e aceitar o pedido desta vez», declarou o chefe do Governo.

Relativamente a outras vezes que a ministra tivesse feito o mesmo pedido, Costa não adiantou uma palavra. Mas disse que Marta Temido apresentou motivos que desta vez considerou atendíveis, afirmando perceber que «alguém estabeleça como linha vermelha a existência de falecimentos que decorrem em serviços que estão sob a sua tutela».

No início da crise nas urgências de obstetrícia tinha já enfrentado a morte de um bebé nas Caldas da Rainha, e na segunda-feira que antecipou o pedido de demissão foi noticiada a morte de uma grávida no Hospital São Francisco Xavier. Essa terá sido a «gota de água», segundo Costa.

O problema que se segue é a substituição de Temido, numa altura em que a pasta da Saúde apresenta pouca atratividade, em plena crise das urgências hospitalares e num pós-pandemia com problemas de gestão no Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Costa garante ainda não ter pensado nisso e nem sequer aceitou falar num perfil preferido, quando foi questionado durante a tarde de terça-feira.

«Quando for oportuno. Não será rápido», reconheceu, uma vez que conta ainda com a ministra da Saúde demissionária para apresentar ao Conselho de Ministros o Estatuto do SNS. A aprovação só está prevista para o Conselho de Ministro de dia 15 de setembro e António Costa receia que a substituição de Marta Temido «atrase a aprovação» de um diploma que considera essencial.

Entretanto, nos bastidores há quatro nomes que são dados como previsíveis, desejados, ou até possíveis surpresas, ainda que se mantenham na base da especulação e maioritariamente lançados pelos lobbies ligados à Saúde do que propriamente pelas alas e fações socialistas.

Fernando Araújo é talvez o nome mais unânime na Saúde. Poucos minutos depois de a demissão ser conhecida, a possível escolha do presidente do conselho de administração do Hospital de São João, no Porto, para substituir Marta Temido foi automaticamente assumida entre a classe médica como a melhor opção.

Contudo o facto de nos últimos tempos ter assumido posições duras e críticas quanto ao Governo socialista em algumas declarações e artigos de opinião podem condicionar a escolha, por aparentar ter um perfil mais reformista que possa por em causa o legado de Marta Temido. Recentemente, o médico, de 56 anos, considerou que o SNS estava sem norte e avisou que não parava de perder profissionais, médicos e enfermeiros, fruto da falta de medidas.

A seu favor joga o facto de o Hospital de São João, que lidera, estar entre os melhores do país em eficácia e produtividade. Aliás, durante a pandemia, aquela unidade hospitalar surpreendeu pela forma como conseguiu reagir ao primeiro aumento brusco de doentes nos cuidados intensivos devido à pandemia de Covid-19.

Neste leque de possibilidades, destaca-se igualmente Manuel Pizarro, que já assumiu por duas vezes o cargo de secretário de Estado da Saúde, tendo o seu nome surgido como ministeriável noutras ocasiões. Seria um sinal de que o primeiro-ministro quereria um político a comandar a pasta da Saúde e uma escolha que apaziguaria os ânimos nas hostes socialistas, já que o político, de 58 anos, ocupar o lugar de presidente da delegação do PS no Parlamento Europeu.

Também com algum peso no aparelho distrital do PS em Leiria, António Lacerda Sales é um candidato que representa a continuidade e cujo perfil político asseguraria cuidado na exposição pública, além de alinhamento incondicional com o primeiro-ministro.

Internamente, o atual secretário de Estado adjunto e da Saúde é apontado como o sucessor natural de Temido, mas está associado a uma equipa que muitos responsabilizam pelo caos que se instalou no setor. O Sindicato Independente dos Médicos chegou mesmo a dizer que estava «incrédulo» com a posição de Lacerda Sales a defender que equipas não especialistas fossem colocadas nos centros de Saúde para desempenhar o trabalho dos médicos especialistas que o Governo deixa fugir para o privado por falta de condições no setor público.

Quando Costa apresentou o novo Executivo, houve uma caraterística que fez história: era o primeiro Governo com mais ministras do que ministros. Nove ao todo, um número que com a saída de Marta Temido fica desfalcado.

É neste contexto que entra em jogo o nome de Rosa Matos Zorrinho. À frente do Centro Hospitalar Lisboa Central, é elogiada pelas suas capacidades «técnicas». E pode ser a solução para Costa cumprir a ideia que tem defendido de que é preciso haver mais mulheres «em posição de direção e em funções executivas».

Aliás, quando confrontado com a pergunta dos jornalistas sobre qual poderá ser o perfil do próximo ministro, Costa respondeu de imediato: «Ministro ou ministra».

Especialista em administração hospitalar, é a única dos quatro nomes que não é médica de profissão. Além de ter liderado a Administração Regional de Saúde e Vale do Tejo, como Presidente do Conselho Diretivo, conhecendo de perto a realidade dos hospitais, Rosa Matos Zorrinho também já esteve nos gabinetes do Ministério da Saúde, quando foi substituir Manuel Delgado como secretária de Estado da Saúde, na época em que Adalberto Campos Fernandes era ministro.

Tendo em conta os sucessivos casos que foram abalando o estado do SNS e das urgências nos últimos meses, a demissão de Marta Temido era uma inevitabilidade à espera de acontecer. Mas apesar da aparente normalidade que António Costa queira transparecer em vésperas de rentrée socialista, nos bastidores consta-se que esta não seja a única baixa no Governo de maioria absoluta e que haja outros ministros, como é o caso da ministra da Agricultura Maria do Céu Antunes, cuja continuidade possa estar em causa.