“Nunca vamos ter um conflito nuclear”

A guerra da Ucrânia não se justifica com o argumento de que estamos perante a democracia versus autocracia, defende Mendes Dias.

Na primeira parte da entrevista publicada na edição passada, que pode ler na edição online, o coronel Mendes Dias contou-nos o seu percurso militar e as razões que o fizeram passar à reserva e mais tarde à reforma. Explicou como o marcou a chegada a Portugal, em 1975, quando a mãe teve de proteger os três filhos, à saída do aeroporto, das pedradas contra os retornados. Mendes Dias deu ainda conta dos horrores a que assistiu na Bósnia, onde teve de desempalar homens com um pau pelo ânus acima, de tirar mulheres da corda, que tinham sido violadas e depois enforcadas, entre outras barbaridades. Questionado sobre ainvasão da Ucrânia e as razões para os militares que a comentam na CNN Portugal terem opiniões tão díspares, o coronel deu o seu ponto de vista que agora aprofunda. Mendes Dias recusa ver esta guerra como um confronto entre democracia versus autocracia e dá-nos o seu olhar sobre as razões profundas do conflito. «A fronteira da Europa não pode começar na Polónia», defende. O coronel é casado com uma das praças do primeiro pelotão feminino do Grupo de Instrução da Escola Prática de Artilharia e tem um filho.

Acha que os majores generais Agostinho Costa e Carlos Branco têm informações dos russos?

Têm informação de todos. Podem é, de vez em quando…

Desculpe, mas no caso concreto dos ataques à Crimeia o major general Agostinho Costa afirmou que aquele ataque só podia ser efetuado por aviões estrangeiros, falando-se na possibilidade de serem ingleses.

Não sei quais foram as fontes, mas o que é correto é que não são britânicos. Isto é que é dizer a verdade.

Mas com que conhecimento é que diz que não britânicos.

Porque os MiG29 não equipam as forças britânicas. Podem é ter sido os britânicos e os americanos que ajudaram a reconfigurar o Fulcram MiG 29 para que possam usar os AGM88. E como fui à procura de saber? Porque neste último pacote de ajuda norte americana, pela primeira vez, constavam os mísseis AGM88. Então o pensamento honesto e leal é questionar porque é que se fornece se não pode ser lançado? Esta é a pergunta que se faz. Não é o contrário. Se não tiver a certeza digo muitas vezes estou a especular. Essas pessoas [os majores generais Agostinho Costa e Carlos Branco] têm as suas opiniões, informadas de determinada maneira e podem até colocar, coisa que eu não faço, não sei se o fazem intencionalmente ou não, algum peso, algum estado de alma nas suas opiniões.

Não fica com urticária quando ouve os seus colegas falarem’

Se não lhe disser que, às vezes, fico com uma ‘pulsaçãozinha’ a mais, estaria a mentir. Claro que fico, mas não transponho isso para os meus comentários, os meus estados de alma, primeiro por questões de ética, embora as pessoas sejam livres de dizerem o que querem, não os levo para a TV

Mas, às vezes, o coronel vai, depois dos oficiais generais, à televisão dizer o contrário do que eles disseram. A história da Crimeia foi apenas um dos exemplos. Penso que um dos seus colegas defendeu que a Rússia está a ganhar a guerra…

E está. Nós temos de lidar com aquilo que é, independentemente do nosso gosto pessoal. Já estou farto de dizer que para a Europa e para os norte-americanos não calhava nada bem deixar a Rússia encostar de novo a fronteira da Europa à Polónia, nem deixar encravar a Ucrânia no Mar Negro. Esta é que é para mim a verdadeira questão.

Como assim?

Repare que sempre que a fronteira da Europa esteve na Polónia houve problemas. Por isso é que as senhoras polacas foram violadas pelos alemães, depois pelos soviéticos. Está na grande planície norte-europeia, Polónia, Ucrânia, por isso é que Ukraine quer dizer fronteira. Verdadeiramente, a fronteira da Península Europeia passa pela fronteira ainda hoje internacionalmente reconhecida, como não podia deixar de ser, a fronteira oriental da Ucrânia. A vitória na Guerra Fria face à União Soviética permitiu empurrar a fronteira da Europa que estava na Polónia, lá para a verdadeira fronteira da península europeia, lá para leste, para a Ucrânia, que funciona como um ‘tampão’, quer para um lado como para outro. Esta é a fatalidade posicional. A norte é a Bielorrússia e a sul tem os Cárpatos. E se a Rússia pretende dar profundidade estratégica para oeste, nós também o pretendemos para leste. Isto quer dizer, de forma simples, que se necessitarmos de trocar espaço por tempo, é possível fazê-lo. Podemos dar como exemplo o caso russo quando Napoleão para lá investiu. Os russos foram dando território, queimando tudo, recuando para depois ganhar condições para repelir os opositores. O que significou a derrota da União Soviética ou a implosão, como lhe queiram chamar? Significou milhões de quilómetros quadrados perdidos, milhões de habitantes. Mas o que significou também? O Mar Cáspio era um mar soviético, deixou de o ser. Na Geórgia perdeu o acesso ao mar daquele lado, agora já o tem com a Abecásia, não se lembra da guerra de 2007? Lá em cima, com os países bálticos, perderam a saída para o Mar Báltico. Os portos de Riga, Talín… é isto que quer dizer implosão da União Soviética. E, portanto, a procura dos mares quentes é uma constante histórica, que já vem do tempo do pai de Catarina II da Rússia. Portanto, não é correto colocar esta guerra no patamar da democracia versus autocracia. Ainda disse há poucos dias na TV como é que nós fazemos disto um absoluto? E isto não é ser pró- -Rússia, pró-Ucrânia, pró-nada, é uma análise honesta, intelectual, leal – quando jogamos dessa maneira da democracia versus autocracia esquecemos que procuramos acordos com o Azerbaijão. É o Azerbaijão uma democracia? Procuramos acordos com os Emirados Árabes Unidos. São os Emirados Árabes Unidos uma democracia? Procuramos acordos com a Venezuela. É a Venezuela uma democracia? O bandido que era o príncipe saudita, que deixou de o ser rapidamente. É a Arábia Saudita uma democracia? Como é que nós podemos colocar isso neste patamar? Eu tenho muita dificuldade em ver isto assim, embora perceba. Podemos encarar a China como uma democracia? Queremos que a China deixe de apoiar um lado, mas depois sabemos que, em 2021, a Volkswagen vendeu para lá 3,3 milhões de viaturas. Pode a Volkswagen resistir sem o mercado chinês? Eu ponho isto neste patamar.

A hipocrisia mundial não foi sempre assim?

Então porque é que nós não lhe chamamos isso? É a Ucrânia uma democracia? Era a Ucrânia uma democracia? Sabe, por exemplo, que nos índices de liberdade, de várias instituições académicas e não só, o Azerbaijão, Iraque e, por exemplo, os Emirados Árabes Unidos estão abaixo da Rússia? Estão mais mal classificados.

E a Ucrânia?

Também.

Então o que acha…

Acho que não podemos perder a Ucrânia porque não podemos deixar encostar de novo a fronteira europeia à Polónia

Qual é o perigo disso?

É ter a Rússia a fazer enrugar a pele europeia, na grande planície europeia, onde andamos sempre de um lado para o outro, e isso é muito perigoso. Se for à fronteira da Polónia com a Ucrânia, é tudo linha reta. É tudo planície. Tal e qual como a Rússia não pode ter problemas a norte do Cáucaso, porque se não ficam 800 quilómetros até Moscovo, trigo limpo, farinha amparo. Por isso é que a Polónia se farta de gritar pela NATO e os países bálticos a mesma coisa. Agora imagine que a Rússia ocupa o corredor de Suwalki, lá em cima no Norte. Isto é: que liga a Bielorrússia a Kaliningrado. Já reparou que se separa a ligação terrestre dos países bálticos com a Polónia, que é um país NATO. Julgo que são estas coisas que têm de ser ditas.

Para si é mais importante que a Ucrânia não caia no domínio russo, do que se dizer que é uma democracia.

Há países que não são democracias e estão sob influências de vários outros. Para mim, para as condições de vida das populações, para as liberdades individuais, as democracias são excecionalmente importantes. Mas será esta uma transposição para o terreno entre uma rivalidade de regimes e sistemas políticos? E aqui é que coloco as minhas dúvidas. Porque para mim não é. Embora não tenha dúvidas em optar pela democracia e optar pela Ucrânia. E opto por uma razão particularmente geográfica, geopolítica. Não podemos ter outra vez a fronteira europeia na Polónia. Vamos ter problemas no futuro.

Que tipo de problemas?

Conflitualidade militar no futuro, que nós não prevemos. Invasões russas, por exemplo.

Acha que a Rússia vai ficar por aí?

A Rússia não tem capacidade para ir para a fronteira com a Polónia. Em último caso acredito que vai assentar a sua defesa no Rio Dniepre.

Então por que diz que a Rússia está a ganhar a Guerra?

Porque a Rússia só tinha as duas ex-proclamadas repúblicas, e não completas, e agora tem 25% do território ucraniano sob seu controlo.

Mas com um custo elevadíssimo de baixas.

Quem ganha as guerras nem sempre é quem tem menos baixas. Geralmente é quem ataca que tem até mais baixas.

Diz-se que a maior parte das tropas russas é das zonas mais pobres do país.

É capaz de ser. Nós, nas recrutas, até falávamos muito com rapazes que vinham do norte, e apanhei muitos sem saberem ler nem escrever, e eram os melhores recrutas. É óbvio que há problemas de mobilização. Como também parece claro que há problemas de mobilização do lado ucraniano. Há aqui uma coisa que vai diferenciar tudo, para além dos condicionamentos da vida internacional. É que os russos e os ucranianos estão a dar a vida. Aquilo é um objetivo vital, jorra sangue e é por isso que é um objetivo vital. Estarão os apoiantes ucranianos na disposição de algum dia verterem sangue naquele espaço? Terá o senhor, vou especular, o sangue frio suficiente para quando alguém chegar à sua casa e disser: ‘O seu filho tem que ser mobilizado vai para a Ucrânia’. O senhor dizia que sim?

Acredita que pode haver essa hipótese da NATO ter que entrar no conflito?

Espero que não entre.

Aí teríamos um conflito nuclear.

Não, nunca vamos ter um conflito nuclear. E, em segundo lugar, também não vamos ter um conflito entre a Rússia e a NATO. A Federação Russa nunca quis isso, nem a NATO quer. E ainda mais, quem é que mandatou, de nós, envolver a NATO? Por que não se envolveu uma coligação de geometria variável, independentemente da NATO? Porque é que se falou logo na NATO? Uma das coisas que defendi, nada obstava, e vou especular, uma coligação, imagine, de França, Espanha, Reino Unido e Portugal que estivessem a apoiar a Ucrânia.

Mas sem os EUA por trás como é que se podia fazer uma aliança dessas?

Está bem, mas os Estados Unidos não são a NATO. É claro que é o principal, mas podia ser só EUA, França e Grã-Bretanha. Por que é que tem de ser a NATO? Se esses países constituintes da coligação de geometria variável tivessem entendido que a Ucrânia era um objetivo vital, justificava-se o envolvimento com tropa no terreno e o sangue que aí se iria verter.

Acha então que os argumentos de Putin fazem algum sentido, que os ucranianos são uns nazis, que não têm democracia nenhuma.

Não, não fazem sentido nenhum. Isso é pura retórica.

Qual a diferença entre os elementos do agrupamento Wagner e as tais tropas de Mariupol?

Vou responder à sua pergunta com outras. Aquela empresa militar privada Blackwater, quando estivemos, americanos e não só, no Afeganistão e no Iraque, propuseram às altas entidades das forças americanas substituir todas as forças americanas no terreno, todas. Para cumprirem a missão que lhes dessem e se prolongassem. O batalhão Azov está integrado nas forças ucranianas, a Wagner não está integrada nas forças russas. Azov não são mercenários. A Wagner são mercenários. À Azov aplica- -se o estatuto de prisioneiro de guerra. Aos combatentes da empresa militar Wagner, por serem mercenários, não se aplica o estatuto de prisioneiro de guerra. Agora pergunta, e então na forma de combater? Têm métodos e técnicas que normalmente a tropa normal não teria. Mas no caso do mercenário, por exemplo, tem desvantagens do ponto de vista sociológico e da vida humana. Mas é uma vantagem neste fenómeno bélico, pois pouca gente liga aos mercenários. Grande parte dos mercenários não tem família, são completamente deslocados. São pessoas descartáveis, com a rudeza que eu sei com que estou a dizer isto. Mas se for um militar como eu, integrado numa força, não sou uma pessoa descartável. E o mercenário é. E em conflitos longos sai muito mais barato.

Acha que a Rússia vai apostar cada vez mais neles e nos tchechenos?

Exatamente, mas tal e qual como no Iraque e no Afeganistão, onde chegou a haver um rácio de um mercenário para um tropa regular. Onde é que está a novidade? Noutros tempos, os Papas contratavam mercenários. A guarda do Vaticano é oriunda de uma unidade mercenária famosíssima,  do século XVII, XVIII e até XIX.

 

O que quer a Rússia da Ucrânia?

Objetivamente, a Rússia procura profundidade estratégica na Ucrânia. Procura recursos minerais. O território ucraniano que a Rússia ocupa hoje, do ponto de vista de recursos minerais, já equivale a 12,5 milhões de euros. Procura território agrícola, a que não é alheia a questão ambiental, e procura fazer da Ucrânia um Estado encravado. Procura o controlo do Mar Negro, que começou na Abecásia em 2007. É isto que Putin procura com a retórica da desnazificação, falta de democracia e outras coisas do género.

Antes de esta guerra começar Putin encontrou-se com Xi Jinping.

A invasão é da responsabilidade total da Rússia, mas antes desta começar, o Presidente russo encontrou-se com o Presidente chinês, antes dos Jogos Olímpicos, até para a guerra não começar antes do fim dos mesmos. Também temos a noção de que o Presidente chinês se encontrou com o Presidente da Coreia do Norte nessa altura. E também temos a noção que o Presidente chinês disse ao Presidente da Coreia do Norte que tinham que aprofundar a relação entre eles, porque a vida internacional ia mudar. Isto é público.

Depois de tudo o que disse, vamos imaginar que os dois majores generais e o coronel estavam num teatro de guerra. Devia ser uma confusão dos diabos…

Julgo que não, porque só haveria confusão se estivéssemos em campos opostos, em países opostos e forças opostas, porque se estivéssemos na mesma força ter-nos- -iam dado a mesma missão e iríamos cumpri-la com um acordo ou sem acordo, que não caberia a nós fazer isso. Iríamos cumpri-la e se fosse preciso dando a vida por ela, porque foi isso que jurámos.

Mas a seguir ao 25 de Abril, como é público e notório havia militares mais ligados à ala do PC e outros ligados a outra ala…

Mas não são menos militares por isso.

Sei isso, mas o que pergunto é, em 2022, embora estejam reformados, temos estas duas alas em confronto na CNN. Digamos que temos a ala do Verão Quente e temos a ala do 25 de Novembro…

No meu caso pessoal, não pertenço à ala de 25 de Novembro, nem a nenhuma outra. Não sei se os nossos generais pertencem ao Verão Quente, é claro que as pessoas poderão ter essa perceção, porque as nossas simpatias, muitas vezes, estão sempre daquele que se pode considerar o mais fraco, etc. É óbvio que se a pergunta for direta, na nossa perceção, aqueles indivíduos estão do lado russo, até podemos induzir que eu possa estar do lado ucraniano. Eu digo que não é induzido porque eu já o disse, mas digo as razões pelo qual estou.

Acha que os outros não assumem claramente que estão do lado russo…

Nunca vi assumirem, mas isso caberá a cada um deles. Também ali, ninguém nos pede para assumir isso, pedem para comentar e levo esta palavra comentar para o público, para o povo. Não tenho tempo para estar com preciosismos. O meu trabalho é de serviço público.

 

Mas ouvimos o comentário de um e de outro e ficamos confusos. Vou dar um caso concreto: Já disse que na central de Zaporijía há vários militares e que os russos põem a segurança em causa. Os outros dizem que não e que são os ucranianos que estão a pôr em causa porque estão a bombardear…

É óbvio que estão lá viaturas pesadas russas, e mesmo que fosse um objetivo militar dos ucranianos não era para ser atacado.

Não acredita que estejam a bombardear?

Não acredito que nenhum deles esteja a bombardear. Sabe porquê? Mesmo que os russos fossem uns bandidos quaisquer, não são racionais, bandidos no sentido lato do termo.

Não são racionais como?

Vai-me dizer que este é um pensamento muito retorcido, mas é o meu. É que aquilo fornece energia elétrica para 20% da Ucrânia,mas também para a zona da Crimeia, para a zona de Kherson, etc. Eles devem pensar: ‘Vou ter que viver com aquela população que está contra mim durante muitos anos e, portanto, vou querer ligar aquela central à minha rede para lhes fornecer, para eles não estarem sempre contra mim, senão isso é um desgaste permanente’. Imagine que sou russo, não vou bombardear aquilo que quero controlar.

Continuando na provocação, não confirma que os dois generais…

Não sei se estão na ala esquerda do 25 de Abril, até podem estar e se estiverem é uma opção deles. Não julgo porque não sei. Reconheço que se pode notar de alguma maneira isso. Mas deve-lhes perguntar.

Não jogam às cartas juntos?

Não, mas posso dizer-lhe que desempenhei a missão nas repúblicas da ex-Jugoslávia com o general Carlos Branco.

Também era capitão na altura?

Não. O major general Branco era major. É mais antigo, mas desempenhou até funções importantes, como do adjunto do oficial de operações em Zagreb, entre outras, certamente. Agora se fazem parte de determinada fação ou não, das Forças Armadas não faço ideia, embora, sociologicamente, todos nós temos uma opinião e simpatias por determinadas ideias. Quer dizer, não somos couves, somos pessoas. As forças armadas são geradas nas sociedades, não são geradas nos campos agrícolas e a elas devemos voltar mesmo depois de mortos. Esta ideia de que nasci de uma pedra, por isso sou diferente e sou das Forças Armadas, nem sequer tem pernas para ser uma ideia. Sou gerado por uma mãe que pertence a uma sociedade. Não me queiram colocar fora dela.

Então não faz qualquer sentido dizer que uns estão mais próximos do ex-KGB e outros mais próximos da CIA?

Para mim, não faz sentido. Uns podem estar mais próximos das razões russas para invadir e outros, como eu, encontram outro tipo de racionalidade que justifica aquilo que é injustificável de acordo com a lei internacional, que é invadir outro estado soberano.

 

Estamos perante uma guerra preventiva?

De acordo com Vladimir Putin, sim, antes que a NATO possa fazer qualquer coisa, deixa-me atalhar. Para mim, encarando o serviço público que julgo estar a fazer, o que tenho de dizer é: a Europa em geral, a União Europeia em particular, tem tudo a perder. Se pensar bem no futuro, se deixar que a fronteira europeia chegue de novo à Polónia, porque estes terrenos são todos terrenos de mobilidade, não são terrenos montanhosos e é isso que queremos evitar, a chegada do urso àquele terreno vai ser mau.

Como acha que vai acabar a guerra?

Para ser honesto, tenho que dizer isto. A Rússia ou vai ter território ou não vai ceder.

E o que acontece no Ocidente?

É guerra até ao fim. Vai ter que ser capitulação de um lado.

Ninguém acredita que a Ucrânia vai derrubar a Rússia.

A guerra é uma forma de sair de uma situação de crise. É uma má forma, mas é uma forma. A diplomacia não resolveu o conflito, ou melhor, a metodologia pacífica de resolução de conflitos não conseguiu resolvê-la. Qual foi o escape? Foi a guerra. Aquele que quer uma paz diferente da que tinha antes vai até ao fim para forçar a outra a capitular. Ou a Ucrânia, que defende, regressa, pelo menos, ao status quo anterior.

A Rússia vai ficar com a Crimeia?

Julgo que a Rússia quer aquele conceito da nova Rússia, que inclui a Crimeia. Já estava no discurso do Putin em 2014. Só que não estivemos atentos. Imagine que a Rússia vai para a frente, como é que gostaria que fosse a sua fronteira? Fosse mais defensável ou menos defensável? Mais defensável, a não ser que se apoiasse no rio que corta a Ucrânia, que é mais de um terço da Ucrânia. Porque se vai instalar força militar.

É o Donbass todo…

É Donbass até chegar a Dnipro. É aquele rio que cruza Kiev e vem por ali fora até ao Mar Negro. Esse conceito de Nova Rússia vai de Kherson a Mykolaiv e inclui Odessa e encosta-se à Transnístria, e isola Odessa.

Como é que o material dos países como os EUA, Reino Unido, Potugal, entre tantos outros, dão à Ucrânia conseguem entrar no país?

Entra, maioritariamente, pela Polónia.

E os russos não atacam esses pontos porquê?

Não pode atacar a Polónia porque é um país da NATO. Mas tem atacado desde sempre a zona já ucraniana. Julgo que só durante o primeiro mês é que não porque ainda não tinha havido essa reação. Mas tem atacado, quando ataca zonas de concentração de tropas, quando ataca depósitos de material está a atacar isso. Também, muito provavelmente, damo-nos conta agora que muito dos anúncios das doações são já posteriores à entrada do material na Ucrânia.

Os satélites russos são diferentes dos outros? São tão estúpidos que deixam tanto material entrar?

Eles deixam entrar porque não podem atacar antes da entrada.

Mas quando eles entram no território ucraniano?

Atacam, mas sabe como é que aquilo é feito? Imagine o seguinte: entra material através da Polónia e vai pelo norte de Lviv, depois a seguir imagine o material de artilharia. Entra ali um camião TIR civil, vai outro camião civil, vai a tropa em carros particulares. Às vezes é difícil.

Mas a Ucrânia tem aviões ou não tem?

Tem.

Então onde é que estão?

Tem os MiG.

Mas onde é que estão?

Estão todos em bases aéreas.

E os russos não atacam essas bases aéreas?

Também atacaram de início, só que os ucranianos desviaram-nos das bases áreas normais e puseram-nos naqueles aeródromos mais pequenos e em aeroportos civis. Mas os russos destruíram ainda alguma aviação.

É mito ou não que os ucranianos têm pistas debaixo da terra?

Não tenho informação sobre isso, mas julgo que é mais mito do que outra coisa. Agora ter a ideia de que um morteiro está debaixo de uma cave e depois vem ao de cima é absolutamente normal, até em armas de artilharia isso acontece. Passamos por cima de um terreno, se levantar o terreno, vê a arma de artilharia lá em baixo, depois puxam-no porque há uma rampa para fazer tiro.

Então os aviões estão agora…

Não estão só em Kiev, mesmo nos aeroportos civis, por exemplo, em Dnipro estavam e continuam a estar alguns. Os aeroportos civis também servem para isto, não só os aeródromos militares. Agora não se compara obviamente com a força russa. Repare, ao princípio, porque é que a Rússia andou a pôr ‘Z’ e ‘O’ no seu material? Era para se diferenciarem, porque senão não se diferenciavam dos ucranianos.

Mas no ar não vê um 'Z'…

No apoio aéreo próximo, aí a 600 metros, é claro que não vê. Mas nos helicópteros vê-se, mas não via até a distinção de uniformes, na maior parte dos casos, nem a identificação do material. Além disso, havia dificuldade de contacto entre terra e ar e, portanto, não houve essa predisposição. Mas agora, por exemplo, a Força Aérea russa está a funcionar, tal como a Força Aérea ucraniana.

Acha que a Ucrânia tem ou não tem mercenários americanos e portugueses, por exemplo?

A Ucrânia constituiu uma unidade para integrar os combatentes que se disponibilizassem para entrar

Mas há relatos de que voluntários da América Latina não foram integrados nas tropas ucranianas porque não falam inglês e os americanos que estão a dar os cursos não aceitaram que esses mercenários entrassem…

Pois não sei. Mas há fotografias, por exemplo, de militares até com a bandeira do Brasil integrados nas forças ucranianas.

Já disse que se desiludiu com a tropa – e que quer alongar mais – mas retive uma frase que 'quando fez o juramento da bandeira, uma das fotos que nos deu tinha imensa população na rua'. Acha que há um divórcio entre as pessoas e a tropa? Isto é, acabou de dizer que não são filhos de pedras, são filhos de uma mulher…

Parece-me que há uma clara separação. Há um divórcio muito grande das populações em geral em relação às Forças Armadas que agora vem sendo amenizado com esta questão da Ucrânia, porque aí, aí é preciso alguém, pelo menos, a que a gente pague para colocar uma arma, por exemplo. Quanto a Portugal, isto só muda com o sistema educativo. E é por isso que o sistema educativo tem que ver orientações traduzidas no conceito estratégico de defesa nacional, e, por conseguinte, podendo ser refletido nos programas escolares.

Não acha que isso é capaz de ser considerado, de certa forma, um pensamento nacionalista de extrema-direita?

Julgo que não, porque um homem de esquerda, tanto canta o hino como canta um homem de direita.

Acha?

Acho.

Muita gente de esquerda contesta os Descobrimentos, contesta o Império…

Sim, sim. Obviamente que há opiniões para tudo mas, no geral, não vejo os militares, que possa considerar encostados às alas mais esquerdistas da sociedade, a não chorarem ou que não se sintam emocionados, como eu me sinto, quando toca o hino nacional. Será o hino nacional de direita ou de esquerda? Será o hino nacional nacionalista ou não nacionalista? Uma coisa tenho a certeza, é nosso. Ele não é nacionalista. Ele é nacional. O vínculo da nacionalidade é um vínculo de lealdade a um território ou a um espaço. Por isso é que, para pertencer a determinadas instituições, tem que se naturalizar. O vínculo da nacionalidade é um vínculo de lealdade a esse espaço e a esse território.

Não posso deixar de fazer esta pergunta, obviamente, provocatória. Na sua conversa, não trespassa um certo saudosismo do império colonial?

De maneira nenhuma.

Mas não diz Maputo…

Digo atual Maputo, nem tenho idade para ser saudosista. Os saudosistas são de outras épocas, nem conheço o suficiente para querer ser saudosista. E recordo aqui o opúsculo do nosso grande romântico, porque introduziu o romantismo na literatura nacional, juntamente com Almeida Garrett ,que foi Alexandre Herculano, no opúsculo 1842 que são as cartas sobre a História de Portugal. E que diz que a História é como uma coluna de mármore com muitos vértices, muitas arestas, etc. E, às vezes, só vemos uma esquina e não há lado certo, nem lado errado da história. A história somos nós que a fazemos, às vezes ficamos do lado que ganhou e noutros no lado que perdeu. Não sou saudosista, acho que até até era, de alguma maneira, prejudicial sê-lo. Agora procuro analisar as diferentes realidades e é óbvio que sou um produto da sociedade que vivi e sou um produto da sociedade em que vivo. Mas no final é isto que quero dizer: as decisões que tomo são decisões solitárias, são minhas.

Desde que apareceu na televisão o que mudou na sua vida? Isto é, há o reconhecimento na rua? Não pode ir a um sítio hoje em dia sem olharem para si?

Sim, na maior parte dos casos. Devo dizer que sou muito cumprimentado por todas as gerações. Mas a geração a partir dos 40, 50 anos cumprimenta-me, reconhece-me. Já tenho dado pequenas explicações sobre a minha opinião nos cafés, enquanto estou à espera. E mudou, digamos, o tempo das coisas.

Como militar é das pessoas mais despreocupadas coma vestimenta que vai à televisão.

Já tenho ido muitas vezes de fato e gravata, como tenho ido mais vezes assim, como estou agora. Poderão dizer que é uma postura mais descontraída. Mas eu julgo que a população, particularmente aquela com mais dificuldades, pouco mais tem que a televisão ou o telemóvel e alguns nem isso têm, me veem mais próximo deles, se assim for. E também reflete aquilo que eu sou. A gravata é o colar da civilização e eu, às vezes, não me apetece ser civilizado. Apetece-me um bocadinho colocar ali o meu ar mais selvagem, mas com argumentação. É sobretudo sentir-me mais próximo da maioria das pessoas que me veem. E não é por causa disso que me faz menos pessoa, menos militar e menos homem. Não é por causa disso e não é isso que eu tenho sentido. Até porque lhe vou dizer aqui uma coisa mesmo da minha vida privada, eu não ligo nada ao que visto. Curiosamente, se não fosse a minha mulher eu se calhar não vestia nada (risos).

O almirante Gouveia e Melo ganho muito protagonismo com a vacinação e fala-se que se poderá candidatar à Presidência da República. Como olha para o regresso dos militares à vida política?

Vou-lhe dizer, aquela tendência, aquele tabu, de meter os militares nos quartéis e não os deixar sair, não faz sentido. Devo dizer que encaro obviamente com normalidade, digamos assim, dentro da anormalidade que é.

Pela primeira vez desde o general Eanes, podemos ter um militar a desempenhar as funções de Presidente da República.

Encaro com normalidade e devo dizer que seja o senhor almirante Gouveia e Melo, seja o general tal, seja a minha pessoa.

Seria capaz de entrar na política?

Não, porque o meu feitio não se coaduna com muitas danças do hula hoop, não consigo ser adepto do contorcionismo. Ainda sou novo para ter esse tipo de atitude.

Acha um disparate ele candidatar-se?

Não acho um disparate mas geralmente as pessoas defendem-se como ele se defende, porque não dão uma resposta direta. Se ele ganhasse, a pergunta que se faria, iria no sentido das razões. E, muito provavelmente, elas iriam associar-se com valores traduzidos na palavra e no trabalho do senhor almirante. Que, parecem estar hoje, fragilizados na sociedade em que vivemos.

Os militares podem dar essas referências?

Não. Acho é que determinados militares, como determinados civis, podem dar essas referências. Há outros militares e outros civis que não podem dar referências nenhumas.