Notas sobre o liberalismo no século XXI

E se o desenvolvimento do liberalismo, o hiperliberalismo, nos está a remeter para as condições de vida mais destrutivas e irreversíveis da nossa história.

por João Maurício Brás

As idealizações sobre as ideologias porque interessam. A sua concretização na realidade é o que importa. Alguns defendem que o comunismo era bom, mas houve um desvio na sua concretização. Sobre o capitalismo e a sua ideologia, defende-se algo semelhante.

E se o desenvolvimento do liberalismo, o hiperliberalismo, nos está remeter para as condições de vida mais destrutivas e irreversíveis da nossa História? A abundância e prosperidade que gerou parece ser cada vez mais um episódio passado.

Usar o termo liberal ainda gera as mais diversas discussões, mas são inúteis. O liberalismo clássico já não existe, o que temos é o seu desenvolvimento, uma exacerbação das dimensões económicas deste, baseadas principalmente no egoísmo, no lucro, e na conceção do mundo como mercado e da vida como conjunto de mercadorias. No desenvolvimento dessa ideologia, a sua encenação sobre valores, cultura e costumes originou o progressismo. Este é intrinsecamente liberal, e pouco tem de pós-marxismo ou qualquer esquerda original.

Evidenciar o caráter destrutivo do liberalismo não significa defender qualquer visão estatista ou qualquer política de extrema-direita.

Há cinco características principais deste liberalismo. – Destruição da melhor solução política até hoje encontrada pelas sociedades humanas, a democracia. A política está submetida aos mercados e aos seus donos que ditam as regras politicas. O modelo social Hayekiano triunfou. A ditadura de uma economia de mercado capitalista está acima do primado da política democrática.

– A crença que a chave explicativa da prosperidade e da felicidade são os mercados, uma entidade que assenta em quatro mentiras: que é livre, que se autorregula, que é espontâneo e racional.

Na happycracia liberal o mundo deve ser transformado num enorme supermercado, destruindo qualquer ideia de soberania nacional, de enraizamento, de filiação e de vínculo. O consumidor substitui o cidadão e pode quanto muito evocar uma série de princípios abstratos vazios como ‘os direitos do homem’ e a ‘tolerância’.

– O culto da ideia de liberdade individual ilimitada e irrestrita como a condição fundamental do ser humano. O critério da minha ação é o que me apetece e o que penso que sou. Este mito resultou no indivíduo egótico e atomizado, cínico e egoísta. O relativismo liberal diz-nos que o ato em si de escolher livremente, desde que a escolha não seja injusta, é superior aquilo que se escolhe, e esse é o maior dos bens da sociedade liberal.

– O Estado deve ser axiologicamente neutro, e qualquer conceção de vida boa, seja ela filosófica, religioso ou moral deve ser remetida para a esfera privada. O direito processual e a possibilidade técnica substituem a ética como bússola reguladora das sociedades. O relativismo cultural, moral e cognitivo, a ideologia da autoafirmação, em que os desejos e caprichos do individuo primam sobre a comunidade e o bem comum são a ‘nova moral’.

– O primado do crescimento ilimitado. Não há qualquer limite, e portanto barreira ou regulação para o crescimento económico e os seus indicadores. Qualquer ‘lei’ decorrente deste primado baseia-se inevitavelmente numa (i) lógica insana

A ideia de ilimitado é transposta também para a esfera dos valores, qualquer limite deve ser destruído porque é opressivo. Tudo o que oferece resistência e que enraíza é inimigo da sociedade e do mundo mercado.