Quem nunca?

A plasticidade com que atualmente nos são apresentadas as denominadas ‘figuras públicas’ e o seu frequente endeusamento trazem consigo a ideia de que são seres humanos muito próximos da perfeição, com comportamentos comedidos e exemplares e que qualquer lapso ou falha pode ser fatal.

por Pedro Neves de Sousa
Advogado Associado Sénior na Cerejeira Namora, Marinho Falcão

Em redor da história, composta por factos relevantes ocorridos ao longo dos tempos, a humanidade tem convivido com historietas, as quais afloram questões laterais normalmente relacionadas com a curiosidade da vida alheia. Na verdade, parece existir uma inevitável atração pelos erros dos outros e uma pressa em fazer juízos de valor acerca dos comportamentos de terceiros, ganhando especial relevância se o visado tiver notoriedade social, política, académica, cultural ou desportiva. E, por regra, observa-se uma tendência natural para ser mais exigente com os outros do que connosco. A intemporal prosa queirosiana retratou, de forma expressiva e até corrosiva, um quadro social que parece fazer parte da natureza humana, no qual está inscrita esta costela mais coscuvilheira. Mas no século XIX os cidadãos não empunhavam telemóveis com câmaras de filmar e de fotografar, e ainda não tinham apreendido o conceito de rede social e a presença humana na vida virtual. Hoje, são muitas as historietas que vão entretendo os nossos dias, originando a convocação de discussões – essas, sim, importantes – civilizacionais que balizam os níveis de tolerância de uma sociedade e que podem bulir com liberdades individuais.

O relacionamento amoroso de Francisco Sá Carneiro com Snu Abecassis no final dos anos 70 do século passado não colocava mácula acerca das suas capacidades políticas e governativas, mas a discussão pública gerada à época focou-se na sua vida pessoal. No ano passado, foi mediatizado um vídeo de um candidato a líder do PSD, visivelmente embriagado, como forma inadmissível de o diminuir numa contenda eleitoral interna. Por estes dias, Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia, surge igualmente num vídeo, a dançar e a cantar numa festa de forma extrovertida, tendo gerado discussão pública e universal acerca da ‘postura ideal’ de um chefe de Governo. É útil recordar que Sanna Marin é uma jovem mulher de 36 anos, que chegou ao topo do Governo com apenas 34 anos (sendo somente ultrapassada pelo antigo chanceler da Áustria Sebastian Kurz, que ascendeu pela primeira vez a essas funções com 31 anos), depois de um percurso de vida que não conheceu grandes facilidades. Mas, acima de tudo, a cidadã Sanna Marin, sem prejuízo das relevantes funções públicas que temporariamente ocupa e para as quais foi legitimamente eleita, tem direito à sua vida privada. A plasticidade com que atualmente nos são apresentadas as denominadas ‘figuras públicas’ e o seu frequente endeusamento trazem consigo a ideia de que são seres humanos muito próximos da perfeição, com comportamentos comedidos e exemplares e que qualquer lapso ou falha pode ser fatal. E este erro coletivo de perceção conduz a um juízo de censura para a qual o comum dos cidadãos só tem legitimidade opinativa, que se fica pela espuma dos dias.

Sem prejuízo de entendimentos mais conservadores, e colocando o foco no caso mais recente, o que se exige da primeira-ministra finlandesa é que, de forma séria e competente, lidere o Governo na implantação de políticas públicas que favoreçam a qualidade de vida dos seus concidadãos. Se decidiu dançar e cantar de forma arrojada com os seus amigos, fora do exercício das suas funções e em espaço fechado, é algo que, não obstante poder suscitar a curiosidade alheia, só à mesma diz respeito. Não se trata da prática de um crime ou sequer de uma conduta legalmente censurável, pelo que se encontra dentro do seu espaço de liberdade individual. Daí que tenhamos que reduzir esta história, como outras tantas, à dimensão de historieta, concedendo-lhe a importância que realmente merece.