“Não vamos ter uma política fiscal muito diferente enquanto não se reduzir a despesa pública”

O empresário lembra que ‘temos um conjunto de instrumentos legais que foram concebidos num período onde havia muito desemprego’ e garante que ‘se não fossem tão generosos muita gente voltaria a trabalhar’.

 

As medidas de apoio anunciadas pelo Governo para as famílias, afinal, atingiram os 2,4 mil milhões. Ficou surpreendido?

Em primeiro lugar, tomou medidas que beneficiou mais a base social de apoio do Governo, o que é natural. Vivemos em democracia e é evidente que os Governos preocupam-se especialmente com os seus eleitores. Em segundo lugar, apesar de tudo, as medidas  são prudentes e de bom senso.

O bom senso é algo que, por vezes, falta a este Governo?

Pelo menos, aqui houve bom senso. Quer o Banco de Portugal, quer o Banco Central Europeu (BCE) há muito tempo que estão preocupados e acham que não se deve transferir muito poder de compra para as pessoas através de subsídios, porque poderá acentuar a inflação, que neste momento é a principal preocupação.

O BCE anunciou esta quinta-feira um novo aumento de juros e já garantiu que não vai ficar por aqui…

A maior parte das pessoas já não tem memória do que foram os anos 70 e a primeira metade da década de 80, onde tínhamos taxas de inflação acima dos 20% e taxas de juro de 30%. O investimento estava todo parado, não havia construção de casas novas, não havia casas para arrendar, não havia empregos. Foi um período muito difícil e as pessoas ingenuamente ou ilusoriamente convenceram-se que agora iríamos ter 0% ou 1% ou 2% de inflação para sempre. E injetou-se nos diferentes países, nomeadamente nos Estados Unidos e na União Europeia, quantidades gigantescas de dinheiro que, mais tarde ou mais cedo, iria ter este efeito inflacionário. Já havia sinais nesse sentido antes de começar a guerra.

A guerra na Ucrânia serve de justificação para tudo?

Os preços da energia já estavam a subir antes.

Temos sempre um problema de falta de memória?

É um problema de falta de memória ou de falta de conhecimento ou de uma outra coisa que também é frequente: as pessoas só querem ver aquilo que gostam de ver e o que lhes convém mais. Se não gostam, olham para o lado. Neste momento, há vários problemas que o Governo tem de encarar de frente e tendemos a olhar só para as medidas e não para aquilo que o Governo não decidiu e que, às vezes, tem a mesma importância. Repare que o Governo teve a preocupação de criar expectativas moderadas, no que diz respeito às revisões de salários para 2023. Quem ouviu aquelas medidas ficou com a certeza quase absoluta de que o Orçamento de Estado vai impor revisões dos ordenados dos funcionários públicos entre os 3%e os  3,5%. Estamos a viver como se isto fosse um pico que não vai durar muito tempo, mas ninguém sabe. Não nos podemos esquecer que, durante muitos anos, tomaram-se medidas muito agressivas contra a indústria petrolífera e é evidente que os preços do petróleo subiram. Os Governos tomaram essas medidas e alegaram questões de descarbonização. Não conseguimos fazer face ao período onde não há energia renovável se não tivermos alguma produção de energia tradicional ou se não apostarmos, mesmo que moderadamente, na energia nuclear.

Parece que o nuclear é um tema tabu em Portugal…

Isso começa sempre assim, mas depois as realidades acabam por se impor. É evidente que, a partir de certa altura, se as pessoas começarem a pensar que podem ter uma energia não poluente e muito mais barata são capazes de achar que vale a pena. Hoje o nuclear é  muito mais seguro e as centrais têm vantagens para as quais se devia olhar. Ninguém vai com certeza propor ter a energia do país baseada a 100% no nuclear ou em percentagens muito elevadas, como a França fez no passado e tem beneficiado muito hoje em dia.

Como vê a medida travão de 2% nas rendas que pôs os senhorios à beira de um ataque de nervos?

Menos de metade dos portugueses vivem em casas arrendadas, mas temos em Portugal uma política, por da parte das autarquias e por parte dos Governos, de deixar subir os preços da habitação porque os dois ganham dinheiro com isso:  IMI e IMT. Esses impostos estão ligados ao preço da habitação e quando esta sobe, os cofres ganham com isso. Há também uma parte importante da economia portuguesa muito dependente da construção civil e que tem tido ininterruptamente desde o 25 de Abril grandes vantagens com isso. Nunca houve até agora um programa que permitisse aumentar fortemente a oferta de casas com rendas mais baixas.

Apesar dos programas  do Governo de rendas acessíveis?

Nunca nada se concretiza. As pessoas, em grande parte dos casos, vão adquirir casa própria porque não encontram casa para arrendar. Por exemplo, na Alemanha, se calhar 60 ou 70% da população vive em casa arrendada e não são pobres. É uma solução que se adapta a uma dimensão variável das famílias: os filhos casam-se e, a partir de certa altura, as necessidades de espaço são menores e, por isso, querem ter uma casa mais pequena. A possibilidade de mudar de casa ao longo da vida não é um inconveniente é uma vantagem. Além disso, em Portugal durante muitos anos, as taxas dos empréstimos foram subsidiadas. Lembro-me de isso ter sido feito nos finais dos Governos de Cavaco Silva, no sentido de aumentar o parque habitacional, o que era indiscutivelmente importante e necessário. Quando a taxa de juro já estava baixa e não se justificava manter as bonificações das taxas de juro, o Governo, nessa altura, liderado por António Guterres não quis retirar os estímulos porque aos construtores, aos bancos e a outras entidades dava-lhes jeito, era rentável.

Daí sermos dos países com o maior número de proprietários…

E  representa um enorme fator de rigidez dentro da economia. Se as pessoas moram em Almada e têm um emprego em Lisboa, ainda como o outro, mas se moram em outras zonas da margem sul e têm de vir trabalhar para Lisboa é uma dor de cabeça. Era melhor haver mais empregos do lado de lá, haver menos pessoas a andar de um lado para o outro. Temos 370 mil carros a entrar em Lisboa todos os dias porque temos um mercado de habitação muito rígido por causa da elevada percentagem de habitação própria. Por outro lado, os governantes nunca quiseram facilitar muito o acesso à cidade em termos de transportes suburbanos. Teria feito sentido que houvesse uma maior percentagem do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) dedicado a esse tipo de melhorias, porque as pessoas que têm ordenados médios ou baixos e vivem longe do local de trabalho têm uma vida muito difícil. Deveria haver uma política de habitação, mas não era a política de habitação deste Governo ou do próximo ou do anterior. Era a política de habitação em Portugal, que devia estar organizado com um determinado objetivo. E, claro, com prazos mais curtos.

Deveria ser um projeto nacional?

Exatamente.

Mas o PRR contempla verbas para a habitação…

Deveria melhorar fortemente as acessibilidades.

Fernando Medina disse que apesar de todas estas medidas vai manter as metas definidas. É possível ou será necessário rever as projeções?

Ninguém sabe. Hoje em dia lidamos com um grau de incerteza a que já não estávamos habituados. Tivemos anos muito fáceis, ninguém se apercebeu muito das facilidades que tínhamos e ficámos pouco preparados para a mudança. Ninguém pensa que pode acontecer qualquer coisa de pior. Agora oiço dizer que temos de ajudar as pessoas a ultrapassar este momento, mas ninguém sabe quanto tempo vai durar, nem qual vai ser o grau de dificuldade. Se pensarmos um cenário de guerra há dois ou três anos não era possível, por isso, não é possível a nenhum Governo conseguir manter o nível de vida que as pessoas tinham antes do conflito. É uma realidade inultrapassável e uma guerra representa um prejuízo para todos. Não há compensação, não é tirar a uns e dar a outros ou privilegiar os objetivos de curto prazo em relação aos de longo prazo que vamos conseguir resolver isso. Toda a gente perde com esta situação que estamos agora a viver e enquanto essa situação durar vai ser assim.

E como disse tínhamos todos a ilusão de que não ia chegar a este cenário…

A maior parte das instituições internacionais que fazem previsões alertavam que o cenário mau tinha, pelo menos, 50% de probabilidades. Hoje se calhar reconhecemos que está mais perto dos 75%.

Acha que continua a haver uma obsessão do Governo pelas tais contas certas?

Não é uma obsessão nenhuma. Temos de interiorizar que, por um lado, não temos moeda própria e, como tal, não podemos gastar além daquilo que temos ou das receitas futuras. Por outro lado, se tivéssemos moeda própria também não conseguíamos levar o endividamento acima de determinados níveis. E já temos uma dívida muito elevada. Não é possível viver acima das possibilidades do país.

Corremos o risco de enfrentar um cenário de recessão?

A recessão já está praticamente visível em alguns países, como nos Estados Unidos. E na Alemanha a probabilidade é muito elevada.

E Portugal não fica alheio…

Com certeza, somos muito contagiados por Espanha e pelos nossos principais clientes. A Alemanha e o Reino Unido são dois parceiros económicos muito importantes e ambos estão com má performance económica. Até a Holanda está com perspetivas piores do que as que costuma ter. Vamos viver um período menos risonho do que aquele que tivemos no passado. Mas é indiscutível que os países do sul da Europa têm uma situação financeira menos positiva e isso vai condicionar as possibilidades de retoma. Neste momento, a grande preocupação é indiscutivelmente a Itália. Espanha está um bocadinho melhor, mas tem problemas de governabilidade e isso prejudica a resolução dos problemas.

No nosso caso temos um Governo de maioria absoluta…

Temos estabilidade governativa, resta saber para que é utilizada. Estou convencido que, em termos da política macroeconómica global, o Governo está consciente das dificuldades. Mas em termos de modernização do nosso aparelho produtivo acho que não há vontade nenhuma de fazer reformas e evidentemente que isso faz com que não possamos aproveitar em pleno uma recuperação que esperamos que venha a acontecer daqui a dois ou três anos.

Em relação à falta de reformas vai ao encontro do disse no início: ‘O Governo não encara os problemas que tinha de encarar de frente’….

Não querem. Não só não tem feito reformas que se fazem por lei e por acordo – que em termos de dinheiro são relativamente baratas – como também parece que não adaptaram a estrutura de aprovação dos fundos, nomeadamente do PRR, ao desafio que tem pela frente, já que estamos a ter uma execução muito baixa.

Há quase uma paralisação…

Isso é incompreensível. Uma boa utilização dos fundos permitiria fazer face a baixas de atividade em alguns setores, mas para isso, todos os investimentos do PRR tinham de estar a avançar. Porque é que a execução é tão baixa? Porque a administração pública está a trabalhar muito mal e acho que isso acontece em quase todos os setores, Na administração pública deve-se, em grande, parte, a uma herança da pandemia.

A pandemia está a ser usada como bode expiatório?

As pessoas trabalham muito pouco e tudo se vai atrasando. Mas é claro que a pandemia está a ser usada como um bode expiatório de todos. E as pessoas que estiveram todo o tempo fechadas em casa têm agora imensa dificuldade em voltar ao ritmo normal.

Culpa do teletrabalho?

O teletrabalho acredito que para alguns casos, não muitos, possa ser uma solução. Nem sequer sei em que situação é que estão a trabalhar os funcionários públicos nos diferentes departamentos, mas não tenho dúvidas que houve departamentos inteiros que fecharam completamente e que não estiveram lá durante dois anos. Ficou tudo parado e desorganizado, em termos de papeladas e de arquivos.

Por outro lado, temos o investimento público cada vez mais longe de cumprir a meta de crescimento…

A previsão é que iria subir mais de 50%, isso não aconteceu. Aliás, a execução do PRR está a um quinto daquilo que devia estar a ser feito.

Deve-se a falta de estratégia, falta de competência, falta de ambição?

De tudo isso, mas também temos uma máquina pouco eficaz e quem conhece bem a administração pública sabia que lançar um programa com esta dimensão seria muito difícil que corresse bem.

Com a digitalização prevista no PRR poderá mudar? Há quem diga que vamos digitalizar a burocracia…

Depende do que vamos fazer. Encontrar soluções digitais mais rápidas e mais eficazes para determinados problemas da governação de um país ou de uma autarquia é um bom objetivo. Digitalizar a complicação que temos não, porque ficamos com os mesmos problemas. Temos aspetos da nossa vida pública que são extraordinariamente arcaicos. Há muita coisa que tem de ser modernizada e de ser feita de outra maneira e a digitalização pressupõe um trabalho prévio, difícil, exigente, que exige inteligência e conhecimento das coisas para ver quais são as soluções que vamos querer e como podem ser montadas de uma forma simples. Não é com centenas de pessoas em teletrabalho que vão surgir essas soluções. A minha dúvida é se com a administração espalhada, não concentrada e não orientada para novos objetivos vamos conseguir resolver alguma coisa e se estiverem em teletrabalho ainda é mais difícil. Não há trabalho criativo, nem se encontram soluções com cada um sentado atrás do seu computador a quilómetros de distância. Suponho que foi um choque para muita gente quando Elon Musk que é talvez a exemplificação da maior modernidade possível – desde os carros elétricos, aos foguetões e aos túneis – dizer que não queria ninguém em teletrabalho por considerar que não se chegava assim a lado nenhum.

Tem de haver uma mudança…

Tem de haver um aperfeiçoamento progressivo. Agora é preciso pegar no problema, pensar em qual é melhor forma de o resolver e depois implementar. Não é um trabalho para ser feito por 100 pessoas ao mesmo tempo, mas também não é um trabalho solitário. Exige equipas multidisciplinares que conheçam os problemas, que os possam resolver ou propor soluções. Nos últimos anos criámos a prática de mudar os lugares de topo da administração pública cada vez que muda o Governo e todos esses lugares passaram a ser de confiança política e com isso demos um passo muito mau, porque precisávamos de ter uma administração pública capaz. A administração pública italiana resistiu durante décadas a mudanças sucessivas de Governo. Em Inglaterra existe uma administração pública que praticamente aguenta qualquer Governo melhor, pior, mais ou menos amalucado e a máquina continua a funcionar. A França tem uma administração pública boa. A Espanha tem uma administração pública boa e nós, até por uma guerra política interna destruímos uma grande parte da nossa.

E depois os resultados estão à vista…

As pessoas tinham de fazer carreira lá dentro para conhecerem os problemas e saberem como os poderiam resolver e também para aprenderem com os erros. Quando se ouve dizer que o plantio novo do Pinhal de Leiria está quase todo a morrer não se fica admirado porque qualquer pessoa que conheça a administração pública portuguesa nessas áreas sabe que isso seria o mais provável de acontecer. Parece que só os governantes é que não sabiam que as decisões que estavam a tomar iam ter más consequências. Não sabiam nessa altura e continuam a não saber porque vêm agora dizer que vão transformar a Serra da Estrela numa coisa muito melhor. Então não conseguiram fazer na serra de Leiria agora vão conseguir fazer ali? Porque é que correu mal na Serra de Leiria? Porque não se analisam os erros.

Por falar em mudança, Portugal continua a apostar no turismo, em termos de crescimento económico. Deveríamos ter aprendido a lição e apostar em outros setores?

Para apostar em outros setores-chave é preciso apostar numa fiscalidade que seja amiga do investimento. Precisamos de apostar no desenvolvimento de um mercado de capitais e de ter uma fiscalidade que permita às empresas crescerem. As opções políticas vão todas no sentido contrário. Não podemos esperar ter um grande sucesso quando estamos inseridos num espaço de economia de mercado com um Governo que é extraordinariamente socialista. Acho que nunca tivemos nenhum tão à esquerda como temos agora.

Nem no tempo da geringonça?

Não.

Disse na última entrevista que a esquerda portuguesa sempre quis acabar com as empresas, com os empresários e com os ricos…

E acha que agora estão numa posição diferente? Pode ser talvez mais discreta, mas não me parece que o objetivo seja diferente.

Mas o Governo não avançou com o pedido dos partidos de esquerda para tributar as empresas com mais lucros…

Todas essas já pagaram contribuição extraordinária. A tributação das mais-valias é um travão brutal à concentração de empresas e dificulta muito o processo sucessório . As pessoas deixam morrer as empresas. Estive a falar de manhã com pessoas do setor têxtil e o impacto do aumento do preço do gás natural é uma coisa impressionante, porque usam muito a água aquecida e muito vapor. Não sei como é que as empresas de vão aguentar. Como passam de uma conta de gás natural de 100 mil euros para um milhão ou 1,2 milhões de euros por mês? Onde vão buscar esse dinheiro?

A tão desejada reforma da carga fiscal também não foi feita. Poderá ser contemplada no próximo Orçamento do Estado?

Acho que não vamos ter uma política fiscal muito diferente enquanto não houver disponibilidade para reduzir as despesas públicas.

Outro problema diz respeito à falta de mão-de-obra…

Temos um conjunto de instrumentos legais que foram concebidos num período onde havia muito desemprego, em que a grande preocupação era arranjar uma forma de sustentar as pessoas estavam desempregadas e, por isso, foram criados vários mecanismos: subsídios de desemprego, rendimentos sociais de inserção. Tudo foi feito para proteger os que não tinham trabalho. Em termos racionais é evidente que deveríamos reduzir uma parte desses instrumentos de apoio, dado que estamos a viver em situação de pleno emprego. Se os esquemas de desemprego não fossem tão generosos havia muita gente que voltaria a trabalhar. As pessoas não desapareceram de um momento para o outro. Então há dois anos havia e agora não há ninguém para a restauração, nem para a hotelaria, nem para a construção civil para tarefas que são simples e de aprendizagem rápida? Onde é que estão essas pessoas todas? E ainda temos que em de conta todos aqueles que vieram de fora nestes tempos recentes. Basta ir a um hotel ou a um restaurante para ver que a maior parte das pessoas que lá trabalham, principalmente nas funções mais modestas, são estrangeiros.

Vai ao encontro do que disse e que criou uma grande polémica que ‘uma parte das pessoas não queria trabalhar, porque o sistema permitia isso’?.

Permite isso e há também muita gente que faz ganchos sem declarar. O nível de tributação é absurdamente elevado e as pessoas com ordenados baixos não estão dispostos a passar um recibo verde e serem sujeitos a uma retenção na fonte de 25%. Para essas pessoas, isso é inaceitável e é incompreensível. Dizem logo “não quero papéis”. Ou então preferem não trabalhar. Em termos individuais percebo perfeitamente a decisão das pessoas. Vão trabalhar e levam para casa 600 euros, mas se não trabalharem levam 400 euros então preferem ficar em casa e depois fazem dois ou três biscates e chegam ao mesmo valor.