Ensino. Entre o recuo da covid-19 e a pandemia da escassez de professores

Os dirigentes Filinto Lima e Mário Nogueira, assim como os professores Tiago Leitão e Alberto Veronesi, refletem acerca do ano letivo que arranca esta semana. 

Após três anos letivos sucessivos em plena pandemia, com regras apertadas no âmbito da covid-19, os alunos regressam às aulas sem as restrições de outrora. No entanto, tanto os professores como os dirigentes parecem não estar totalmente otimistas em relação ao arranque do primeiro período: é que, apesar de o impacto da covid-19 ter diminuído, parece estar a intensificar-se a pandemia da falta de docentes nas escolas. E existe um antagonismo: procura menor e oferta maior no Norte do país e o oposto a Sul.

A diretora da Pordata, ex-dirigente do Ministério da Educação, já havia alertado para uma “crise” na educação, explicando que esta se agravará, este ano letivo, com 110 mil alunos sem professor a pelo menos uma disciplina. No último ponto de situação, João Costa, ministro da Educação, admitiu haver 60 mil alunos nessa situação e, também nesta sexta-feira, revelou que as escolas têm, neste momento, cerca de 97% dos docentes colocados.

“Tenho as expectativas habituais porque o Ministério da Educação não alterou as condições em que as escolas se podem organizar e reforçar os recursos que são indispensáveis para darem mais e melhores respostas. O envelhecido corpo docente estará um ano mais velho, a falta de professores continuará a fazer-se sentir, o crédito horário atribuído às escolas manter-se-á insuficiente”, começa por dizer, em declarações ao i, Mário Nogueira – secretário-geral da Federação Nacional de Professores (Fenprof). “Tal como nos anos anteriores, os governantes continuarão a deitar areia para os olhos da opinião pública com dados estatísticos e um ou outro exemplo de exceção, varrendo os problemas para debaixo do tapete, mas isso será o pior que pode acontecer, caso continue a ser essa a opção”, sublinha.

“Eu diria que são medidas que se limitam a fazer cócegas aos problemas e não os resolvem. Não faltavam professores por não haver renovação para horários incompletos ou por as escolas não poderem contratar pessoas sem habilitação profissional quando não tinham mais ninguém: a falta de professores deve-se, essencialmente à desvalorização da profissão provocada pelos governos, sobretudo a partir de 2006, e pela degradação das condições de trabalho dos docentes”, observa, acrescentando que “em relação a isso nada foi feito para contrariar o problema, nem por anteriores, nem pelo atual governo e por isso não surpreende que, mais uma vez, este ano o número de jovens que ingressou nos cursos de formação inicial seja cerca de metade do número de docentes que se aposentarão também este ano e que o aumento em relação a 2021 seja pouco superior a metade dos que se aposentarão só no mês de outubro”.

O caso de Tiago Leitão, de 27 anos, espelha a realidade relatada por Mário Nogueira. “Aqui, no Norte, formam-se muitos professores e não tanto no Sul, onde há mais procura do que oferta. O salário é muito baixo, não há ajudas de custo e assim não nos compensa ir para Lisboa. O ordenado seria para a renda de uma casa: e o que aconteceria no resto do mês?”, questiona, referindo-se a despesas básicas como a alimentação ou as faturas de energia e água. “O ano passado fui contratado por escolas e consegui ficar perto de casa para substituir professores que estavam de baixa. Mas não dá para viver nesta incerteza: e se fico desempregado? E o próximo mês?”, pergunta o jovem professor de História.

“Encontrar horários completos, para os professores jovens, é cada vez mais difícil. Já saíram duas reservas de recrutamento e ainda não fui colocado. Vou tentar arranjar colocação aqui. Vivo com 1200 euros noutra zona?”, volta a perguntar. “Já tive propostas de centros de estudo – pagam 6,50/7 euros. por hora, não é tão vantajoso, e trabalhamos a recibos verdes e, por vezes, com recibos verdes falsos; mas sei de uma escola profissional onde isto também acontece e ninguém denuncia –, dou formações a cursos EFA… A nossa profissão já é precária e isto contribui ainda mais para essa precariedade”, reflete o jovem docente, natural do Porto. “Há sempre mais possibilidades que não são essencialmente ser professor de escola pública, mas servem para ter o meu dinheiro, sobreviver e ir estando na área. Até novembro, por norma, encontra-se uma escola. Estaria disposto a ir para um sítio em que me sobrasse dinheiro e conseguisse ter uma vida digna. Para um local mais no Interior, mais rural. Sou muito ligado à minha família e quero ficar por perto”, garante, indo ao encontro da perspetiva de Mário Nogueira.

“O ano letivo 2022/2023 promete ser dos mais desafiantes” “As escolas tudo farão para abrir as portas no período estabelecido e os professores esforçar-se-ão, dentro dos seus limites, para responderem com todo o seu profissionalismo. Agora, o que as escolas não podem é reduzir o número de alunos por turma, reforçar recursos que não sejam os autorizados pela tutela, apoiar as famílias mais carenciadas para além das normas estabelecidas em lei ou acabar com as vagas na progressão na carreira docente, as quotas na avaliação e recuperar todo o tempo de serviço cumprido pelos professores para enquadramento na carreira, apesar de saberem que essas seriam medidas fundamentais de valorização da profissão e que a situação salarial e de carreira, a par da precariedade e da idade exigida para a aposentação estão na origem do grande descontentamento que se sente na profissão”, diz Mário Nogueira.

“Os professores sentem-se desconsiderados e vítimas de grande injustiça, pois tudo lhes é exigido, correspondem, mas depois não são respeitados os seus direitos”, continua, admitindo ainda receios em relação ao inverno. “Nunca se está preparado para viver tempos de exceção, mesmo quando se repetem. É claro que tudo dependerá da gravidade da situação que tivermos e das medidas que se tornarem necessárias, mas se às dificuldades instaladas, que foram agravadas pelos dois anos anteriores, se juntar mais um ano de exceção, atípico, temo que tenhamos perdas que serão irrecuperáveis. Preocupam-nos todos os alunos”, reconhece. “Preocupam-nos todos em todos os momentos, pois, para as crianças e os jovens, cada momento da sua vida é irrepetível. Não se pode voltar atrás para fazer o que não foi feito no momento adequado”.

Diretores admitem ano desafiante pela frente  “Com o seu início esta semana, o ano letivo 2022/2023 promete ser dos mais desafiantes. Os professores e diretores estão fortemente empenhados, como sempre. A nova normalidade marcará presença nas escolas, apesar de terem sido abolidas algumas regras e procedimentos que durante mais de dois anos constrangeram o processo ensino-aprendizagem e as relações entre os elementos das comunidades escolares (a máscara dificultou a comunicação”, aponta por seu lado Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), contando que “alguns docentes adquiriram um amplificador de som, por forma a diminuir o constrangimento que a máscara apresentava no seu desempenho, verdadeira barreira à comunicação”. 

“As escolas estão bastante mais bem preparadas se tiverem de recorrer ao ensino a distância, principalmente no não superior, algo inimaginável até março de 2020. Contudo, o cenário ideal é que o processo ensino-aprendizagem decorra em permanência no espaço físico que os alunos amam – a Escola, em presença, devendo ser usados os meios digitais necessários, não por causa da COVID-19, mas pelo facto da Escola Digital ser cada vez mais uma realidade”, afirma, indicando que “as direções executivas das escolas tudo fizeram para que o ano letivo decorra dentro da normalidade e da paz que todos querem – os diretores e as suas equipas realizaram um trabalho fantástico –, e o arranque será positivo; porém, terá a ensombrá-lo uma nuvem cinzenta (escassez de professores), apesar das medidas implementadas pelo ministério da Educação”, concorda.

“Sendo um problema estrutural, exige-se ao ministério das Finanças que seja um aliado da Educação e promova medidas que valorizem e dignifiquem a carreira docente, sob pena de nos estarmos a livrar de uma pandemia (COVID-19) e a acolher outra (escassez de professores)”, salienta Filinto Lima, finalizando que “a escola digital, a necessidade urgente de alterar os modelos de avaliação do desempenho dos docentes e dos diretores, a Transferência de competências (descentralização) – será o 1.º ano completo em que os municípios e as escolas trabalharão com maior proximidade, o combate à hiperburocratização – a burocracia torna ainda mais pesado o trabalho docente, e o Plano de Recuperação de Aprendizagens serão alguns dos temas que pontuarão o ano letivo”.

Reformas em alta Este ano já se reformaram perto de 2 mil professores e as previsões apontam para 2800 aposentações até ao final do ano. Em 2023, poderão deixar o ensino para a reforma cerca de 3500 professores. As escolas já têm novas regras para, perante falta de professores, contratar licenciados com créditos mesmo sem habilitações próprias para a docência. Em entrevista ao Nascer do SOL, Santana Castilho, especialista em gestão de ensino, fala de um retrocesso aos anos 80 e antecipa que escolas e alunos terão um “ano letivo mau” pela frente.