A vida é quântica

por Ana Mesquita Abrem-se as luzes de cena e o tríptico intitulado Jardins de Nós, a obra que criei para a Bienal de Cerveira, de 2020, no auge da pandemia, preenche o palco. É um exercício surrealista de colagens, multiplicado por três ecrãs, que se impõem sobre a cena. Foi assim, tal e qual, que…

por Ana Mesquita

Abrem-se as luzes de cena e o tríptico intitulado Jardins de Nós, a obra que criei para a Bienal de Cerveira, de 2020, no auge da pandemia, preenche o palco. É um exercício surrealista de colagens, multiplicado por três ecrãs, que se impõem sobre a cena. Foi assim, tal e qual, que abriram os treze espetáculos que levámos pelo país, em 2021, e que agora, dia 17 de Setembro, se prepara para encher a noite do icónico Coliseu dos Recreios.

A pintura resume um tempo estranho em que a humanidade se confinou aos lares, desenvolvendo novas aptidões, fugindo da tristeza e do desconhecido, e tal como sucedeu tantas vezes ao longo da História da Humanidade, sobrevivendo a um invasor mortal. Forçados a isto, sabe-se-lá porquê, talvez porque “a vida é quântica”, como tantas vezes repito, acabou dando numa canção do novo disco do João, refletindo sobre a vida e o modo como lidamos com o planeta. Concordância ou discordância. Pura matemática. Pessoas de todas as idades, origens geográficas e sociais redescobriram os núcleos familiares e fizeram das casas estúdios de música, dança, pintura, escola, exercício físico, um ponto de fuga, o mundo entre quatro paredes. Havia algo de belo e surreal naquela vivência que a obra acabou por traduzir.

Em primeiro plano, figuras antropomórficas criadas com base em colagens de recortes feitos a partir de clássicos da pintura. Os olhos da segunda figura da esquerda são de Monalisa, de Leonardo Da Vinci. Virei-os ao contrário, como me parecia o mundo. Obrigada mestre pela esmagadora força do olhar de Gioconda. As mãos sobre a cabeça, da mesma figura, são as de Deus, na criação de Adão. Saídas dos frescos de Miguel Ângelo, na capela Sistina. Voltei-as para cima. Em oração? Em desespero? Pesando-nos na consciência? Ou nada disso. Um puro adereço fútil, a zombar da existência carnavalesca que por vezes armamos sobre a Terra. No modo como interagem as personagens na composição, voltadas para o palco, mas sobretudo para o espectador, será que elas traduzem uma alegria contida? Ou uma festarola à lá Boris? Ou um botellon adolescente? Alegrias atrás das cortinas. Ou a certeza de que estarmos vivos e com saúde, cuidando dos jardins interiores, sejam eles o que forem, podia estar a ser, por injusto que tudo parecesse, um estranhíssimo privilégio.

Jardins de Nós, a obra que acabou por me inspirar a criar centenas de colagens (algumas presentes no trabalho cénico para este Coliseu) é também uma reflexão sobre o que fazemos com o tempo. O que nos falta e o que nos sobra. Como usamos o mais precioso bem que nos é concedido?

A guitarra da mesma figura com olhos de Monalisa, saiu do quadro Femme avec guitare, de Auguste Renoir. E a casa cor-de-rosa que simula a saia da mesma personagem, veio do Milagre da Primavera, de Giotto. O chapéu da senhora, a dona do gato escondido com o rabo de fora, trouxe-a de uma composição de Hieronymus Bosh. A casa amarela, ou a saia da dona do gato, chegou de uma obra de Van Gogh. Os séculos modernizam-se na tela e juntos mudam o tempo para fazer futuro. As casas, sempre as casas, por ter sido nelas que nos delimitávamos em fronteiras de asseio. Vulneráveis. Protegidos do bicho. As casas, que fazem de pernas da figura da esquerda – a que calça uns skis antigos -, são parte de um quadro de Paul Klee. E os skis de um painel de Bosh. Somos cada vez mais assim, um puzzle de gente migrada, ou refugiada, um nó de encontros e diásporas, uma corrente de diferenças, homo, trans, hétero, uber, híper. Idens e hífens de um planeta combinado. Por vezes demasiado convencido, baralhado por racismos estéreis e xenofobias inúteis. Vai-se a ver e nada. Ou tudo muito melhor do que por vezes parecemos, ou alguém se lembra de inventar que somos.

Será mais fácil parecer? Difícil é ser. Acabamos todos de igual modo, figuras antropomórficas por dentro, nos seus jardins íntimos, por fora imitando os padrões e as perfeições retocadas pelos bisturis da moda.

Tudo em primeiro plano, sem sombras ou pontos de fuga. Puro e duro. Somos uma metáfora da geologia. Trazemos nos ossos os layers dos layers de ADNs com milhões de anos. O que tem isto de raça pura? Talvez sejamos na essência belíssimos fósseis, entrecruzando séculos. O que eu andei para aqui chegar! As sobreposições, as velaturas, as transparências que caraterizam o meu modo de criar desde que me conheço, surgem ao longo do espetáculo e estão lá para vos surpreender.

A todos os que nos derem o grato prazer de esgotar a plateia do Coliseu, dia 17 de Setembro à noite, o melhor que lhes posso deixar prometido é que vão participar de um momento harmonioso, entre a música e a videoarte, e assistir a um conjunto variado de estímulos artísticos. Tudo inspirado por canções que se entranharam na memória dos portugueses e que ali vão dançar com os cenários criados à medida do universo de cada uma das músicas.

O espetáculo Caixa de Luz – assim se chama – nasceu do convívio artístico, diário, que partilhamos: eu e o João(Gil) e é um dos resultados dos meus onze anos dedicados à arte, dos quais, nos últimos quatro, desenvolvi mais a edição de vídeo aliada à pintura digital: soma à qual prefiro chamar pintura em movimento. No mais atrás que a memória recua, lembro-me de mim a desenhar. A escrita veio com a adolescência, e desenvolveu-se durante os vinte anos dedicados ao jornalismo. O desenho foi sempre a tradução espontânea dos sentimentos. Os olhos obrigavam-me a falar através das imagens transpostas para o papel. Regresso à essência. E quero levar-vos comigo. Vamos!