Claes Dohlman. “O melhor conselho em 100 anos de vida? Não percas a paciência”

Oftalmologista sueco, com 100 anos feitos no passado domingo, recebeu ontem em Lisboa o prémio Champalimaud dedicado à Visão. 

Desde 2007 que a Fundação Champalimaud distingue carreiras e projetos em torno da visão com um prémio anual de um milhão de euros, o maior em todo o mundo. Já foram contemplados investigadores, médicos, mecenas, institutos e iniciativas que, nos diferentes continentes, e dos doentes às comunidades, lutam contra a cegueira e a pobreza, tantas vezes de mãos dadas. Inédito foi este ano um dos premiados ter 100 anos feitos – e fazer questão de vir a Portugal, mesmo de cadeira de rodas, receber o galardão e falar da importância de continuar a avançar nos tratamentos oftalmológicos, tornando-os mais seguros e acessíveis. À chegada a Lisboa, Claes Dohlman, cirurgião oftalmologista nascido em Uppsala em 1922 – que partilhou esta edição do prémio português com o neerlandês Gerrit Melles – conversou com o i sobre o percurso persistente de mais de sete décadas que hoje lhe vale o título de pai da ciência moderna da córnea, a camada transparente do olho, palco de diferentes doenças incapacitantes. Operou centenas de doentes – só parou aos 95 anos –, desenvolveu novas córneas artificiais hoje usadas em milhares de doentes e treinou mais de 200 especialistas. Se começasse de novo, continuaria o que fez até aqui, diz, sabendo que é apenas uma parte dos muitos desafios da oftalmologia – e um centenário com as suas várias maleitas nos olhos, feliz por ver ainda relativamente bem de um, é bem a prova disso.

Continua a trabalhar?
Estive a trabalhar até há semanas, até apanhar covid-19. Foi horrível, fiquei muito doente. Estive quase para não vir, mas cá estou.

Foi a primeira vez que teve covid-19?
Sim, foi. A minha filha e o meu genro têm cá uma casa, na Praia D’El Rey, a uma hora de Lisboa. Portanto pensei que podia descansar se fosse preciso. É a segunda vez que cá estou.

Quando é que fez os cem anos?
Foi agora, no passado domingo.

Então muitos parabéns. Qual é a sensação?
Sobrevivi. E sim, trabalhei a ‘tempo inteiro’ até há pouco tempo. Quer dizer, o Eleftherios é que é o cientista [Eleftherios Paschalis Ilios, um dos “discípulos” de Dohlman no centro de excelência da Córnea na Faculdade de Medicina de Harvard, que assiste à conversa]. Temos vindo a colaborar e ele é que tem o cérebro. 

Não tinha cérebro de cientista?
Não, sou apenas uma pequena peça na engrenagem. Comecei por ser bioquímico em Lund, na Suécia. Antes disso: nasci em Uppsala e depois o meu pai, que era médico, tornou-se responsável pelo departamento de otorrinolaringologia na Universidade de Lund, por isso mudámo-nos para lá. Fiz a escola em Lund, nem sempre com sucesso, mas completei o liceu.

E depois começou a Segunda Guerra Mundial.
Os alemães invadiram a Dinamarca e a Noruega e nós fomos mobilizados, andávamos de metralhadoras e era suposto participarmos na defesa da invasão da Suécia. Felizmente isso não aconteceu. Segui os meus estudos, candidatei-me à faculdade de Medicina. Na altura não era difícil e entrei.

Era o caminho natural para o filho de um médico?
Nem havia discussão. O meu pai era médico, os nossos amigos eram médicos. Por isso fui para a escola de Medicina. Não havia vagas suficientes e por isso entrei para bioquímica, fiz o doutoramento e só depois comecei a trabalhar em oftalmologia.

Ainda tem memórias desse tempo?
Recordo-me bastante bem mas tudo o que aprendi na altura tem pouco a ver com o que se passa hoje. É tudo completamente diferente. Depois fiz dois anos de investigação na Universidade Johns Hopkins, que foi quando comecei a estudar o olho. Voltei à Suécia e depois tive então o convite para ir para Harvard por parte de Charles Schepens, que na altura era um famoso cirurgião de retina em Boston e outros dois médicos. Disseram-me que podia ir aprender mais sobre a córnea onde quisesse e depois podia ir trabalhar com eles. Não planeava ficar nos Estados Unidos, mas pensei que seria bom para mim e queria ser professor. Na altura a minha experiência profissional foi estar em laboratórios em Lund e sobretudo no Instituto Karolinska. Fiz algum trabalho com tratamentos com isótopos radioativos, o que na altura era novo, mas foi nos EUA que acabei por especializar-me.

O seu primeiro mentor ainda no Karolinska foi um revolucionário finlandês, estavam aqui a contar.
Sim, é uma pequena história desses anos. Fiz o serviço militar em Estocolmo, onde ouvi falar de um novo isótopo radioativo, o S-35, que podia ter algumas aplicações no transplante de tecidos. Fui ter com o responsável do Karolinska, que era finlandês e bolchevique, um revolucionário que tinha tentado restaurar o partido comunista na Finlândia na revolução sangrenta. Tinha sido condenado à morte, fugiu para a Rússia e depois para a Suécia e disse “cá estou, quero continuar os estudos médicos”. Não foi autorizado, mas permitiram que fosse técnico, e conseguiu chegar a chefe. Era um homem brilhante, mas toda a gente tinha medo dele. Gostou de mim, deu-me bastante apoio nessa primeira fase. Mas depois acabei por fazer todo o percurso nos EUA.

Como foi a mudança para os EUA?
Quando lá cheguei toda a gente tinha planos para mim. Schepens afinal queria que fizesse retina com ele, o outro queria oftalmologia e o outro bioquímica, mas tudo acabou por se encaminhar e recebi então a luz verde para fazer córnea e portanto trabalhei com córneas desde os anos 60.

O que o atraiu nessa cobertura transparente do olho?
Porquê a córnea, não sei dizer. Em Harvard encontrei brilhantes físicos e químicos suecos que me ajudaram a integrar-me e com quem aprendi imenso. Disseram-me: ‘Leva o tempo que precisares’. Passado algum tempo decidi que devíamos criar um serviço especializado em córnea, que foi o primeiro no mundo. Passado algum tempo despediram todos os chefes do departamento do Olho e Ouvido de Massachusetts e convidaram-me. “Eu? Devem estar a brincar”. Lá fui nomeado para chefe e lembro-me de estar sentado sem saber muito bem o que iria fazer, mas fui chefe durante 15 anos. No início tive medo, mas gostei sempre do que estava a fazer porque sabíamos que estávamos a construir algo que poderia ter um valor duradouro para as pessoas. Recrutei muitos colaboradores, tive muita ajuda, fomos buscar doentes a enfermarias de Harvard e tudo correu bem. A certa altura permitiram-me que continuasse a exercer clínica, a fazer cirurgia ao mesmo tempo que dirigiria o departamento, e foi aí que me dediquei a desenvolver as córneas artificiais. 

Não tinha o cérebro de cientista, mas tinha as mãos de cirurgião.
Sim, fiz mais de 450 operações para implantar córneas artificiais. Não era a primeira vez que se fazia porque era uma ideia óbvia desde o início: se temos uma córnea nublada, é preciso colocar uma pequena janela para ver, mas a questão na altura era como fazer isto de forma segura e custo-efectiva. Tive imensos colegas de vários pontos do mundo que vinham fazer residência connosco e ao longo do tempo fomos desenvolvendo a técnica. Isto começa na mesma altura em que foram lançados os Institutos Nacionais da Saúde dos EUA (NIH). Tinham imenso dinheiro e não sabiam onde o gastar (risos). Tive muita sorte. 

O que se sente quando se devolve a visão a um doente?
É bom, mas no início das córneas artificiais, metade dos doentes ficavam bem, metade não ficava. Houve muitas pessoas a tentar fazer isto e que ao final de algum tempo ficavam cansadas com tantas complicações e desistiam. Percebi que se quisermos ter sorte temos de continuar anos e anos e nunca desistir. Foi o que tentei fazer e por fim foi funcionando cada vez melhor. Tive a sorte de ter ao meu lado jovens como Eleftherios e outros tantos, alguns que também estão cá, e conseguimos.

Treinou centenas de especialistas na cirurgia da córnea.
Mais de 200.

E tornou-se um marco nesta área, o que é distinguido com este prémio. Gosta do título de “pai da ciência moderna da córnea”?
Não sei se é assim, não sou um cientista, sou um simples cirurgião da córnea, mas gosto dos doentes, gosto da cirurgia e de ensinar. O resto veio gradualmente e aprendi sempre muito com os mais jovens, com os doutorandos. Trabalhámos, trabalhámos, trabalhámos e acabou por correr bastante bem.

Era mais difícil haver avanços do que é hoje?
Era. 

Como acompanha hoje os desenvolvimentos da ciência e da medicina?
Vejo o que o Eleftherios e outros fazem, mostram-me os resultados e digo: “Ora aqui está algo de valor”. Escrevemos juntos e passo a passo, paper atrás de paper, é assim que se avança.

Está otimista?
Sim, em muitos aspetos fazem-se hoje coisas melhores do que algum dia esperei e vão-se construindo técnicas novas em cima das antigas. E nesta área de oftalmologia continuamos a ter muita necessidade de continuar a avançar porque há muitas pessoas que sofrem com problemas de visão.

Vê futuro em implantes de córnea a partir de pele de porco, como foi notícia este verão depois de colegas seus suecos terem feito um pequeno ensaio com bons resultados em 20 doentes, 14 dos quais cegos?
Tem havido algumas dificuldades para adaptar enxertos de animais a humanos e não tem havido grandes resultados por causa da rejeição, mas provavelmente mais cedo ou mais tarde terá e tem futuro. Mas creio que o futuro estará nas córneas artificiais, no uso de plástico e de outros materiais.

Se estivesse agora a começar a sua carreira, o que faria?
Continuava a desenvolver as córneas artificiais com novos materiais de plástico ou outros como titânio e novas combinações, para que funcione cada vez melhor. Os desafios da bio-integração de materiais no olho humano e para combater o processo inflamatório são enormes. Sabendo que ao fazer isto estamos a resolver uma pequena parte de grandes problemas em oftalmologia. O maior problema que temos é com as cataratas. É irónico porque são muito fáceis de tratar: basta operar, tirar a catarata e pôr uma lente de plástico, e funciona bastante bem. Mas não há hospitais e cirurgiões suficientes. Este é um problema antigo dos serviços de saúde, não é um problema científico. 

Conseguiu escapar às cataratas?
Não, também tenho.

Ia perguntar se sabia de algum segredo para ter olhos saudáveis.
Ah, não, os meus olhos não são saudáveis, infelizmente. Glaucoma, cataratas e degenerescência macular da idade e mais qualquer coisa de que me esqueci. Felizmente tive a sorte de manter a visão num olho e conseguiu operar assim até há cinco anos.

Qual foi o melhor conselho que lhe deram em 100 anos de vida?
Um professor alemão muito famoso apareceu-me um dia quando eu era muito novo e estava a lutar com umas cataratas. Perguntei-lhe o que fazer: “Estou aqui, a tentar tudo mas são tão espessas e nada funciona”. E ele disse-me em alemão: “Verliere nicht die Geduld”. Não percas a paciência. Aquilo bateu-me e mantive-me sempre fiel a esse conselho. Nunca desisti. Há três grandes problemas em oftalmologia: as cataratas, que são o problema de que falava, o glaucoma, que é um problema científico, e as doenças da córnea. Há milhões de pessoas cegas por causa de doenças da córnea. E podemos ajudá-las, só temos de continuar.