Wiriyamu: A reconstituição no local do crime

Vão completar-se 30 anos desde que a jornalista Felícia Cabrita realizou uma investigação em que ouviu vítimas e militares portugueses que participaram no ‘massacre de Wiriyamu’, que ficaria conhecido como o episódio mais negro da guerra colonial. Há dias, o primeiro-ministro António Costa, em viagem oficial a Moçambique, pediu ‘desculpa’ aos moçambicanos pelo massacre. O…

Publicada no semanário e com grande impacto, este é o primeiro de III capítulos, que conta ainda com a sua viagem, do jornalista Paulo Camacho, o repórter de imagem Paulo Cepa (ao serviço da SIC) e o ex-comando do Exército português Antonino Melo para Moçambique, cinco anos depois. Em 1997, partiam para o Norte da ex-colónia, onde o antigo militar relataria o que se passou no trágico dia 16 de Dezembro de 1972. Era a primeira vez que um militar português se deslocava ao local e falava da operação.

Sábado, 16 de Dezembro, vésperas de Natal. O mundo segue fascinado a viagem da nave «Apollo-17», os astronautas vasculham a Lua. Em Tete, província de Moçambique, três aldeias desaparecem do mapa. Erguendo bem alto a bandeira portuguesa, a 6ª Companhia de Comandos e alguns elementos da DGS matam em tempo recorde 400 pessoas. Chegam com o sol a pino, cheios de pó, suor e raiva. Procuram a base do inimigo e encontram aldeias indefesas. São quase uma centena de soldados, corpo a corpo com mulheres, crianças e velhos, desarmados. Fazem-se experiências. Um soldado abre o ventre de uma mulher grávida e mostra-lhe o sexo do feto, para que não restem dúvidas. Profissionais, colo cam os canos das armas na boca de recém-nascidos, à laia de biberão. E as donzelas, depois de satisfazerem o ímpeto dos heróis, são abatidas. Quem não é capaz de matar não serve para soldado. Nesse dia a tropa improvisou.

Manuel Coelho, deitado no poncho, com a mochila a substituir o travesseiro, dá voltas. Não consegue dormir, o calor e os mosquitos não lhe dão sossego. Antes da recruta, se lhe dissessem que se ia tornar um veterano da morte não acreditaria. Mas nessa noite, ao lembrar-se dos seis colegas que dias antes sofreram uma emboscada e ficaram feridos, sente ânsias de apertar o gatilho. Saiu de Portugal com a família mal completara quatro anos. Instalaram-se na baixa do Limpopo. Deram- -lhes uma casa, quatro juntas de bois, uma vaca leiteira, os primeiros passos para a exploração agrícola. Começou a trabalhar a terra muito pequeno, ainda chorava. Quando chegava a praga dos pássaros, guardava o trigo de sol a sol, e agora não está disposto a entregar tudo aos «turras» de mão beijada. Ao amanhecer, a voz do alferes Vilela corta-lhe os pensamentos. As ordens são bem claras: tudo o que mexer é para abater, não há prisioneiros.

Dispersos no mato, três grupos de comandos cercam em cunha os aldeamentos. Esperam a ordem de ataque. Manuel, com os cantis de água a bailarem-lhe nos quadris, avista alguém entre a árvores. As perguntas fazem-se depois, as armas acertam. O alferes aproxima-se do corpo e revista-o. Num bolso, uma caderneta indica a profissão do negro: condutor de tractores. Está desarmado, nada indica que seja um guerrilheiro da Frelimo. Nunca fiando. O alferes interroga-o. O homem nega conhecer a base do inimigo, mas depois de uns pontapés está disposto a levá- -los a qualquer parte. Já não se consegue levantar, esvai-se em sangue e perde a visão. O alferes faz um gesto com a mão a Manuel. «Eu não sujo a faca», responde. E acaba o serviço com a G3. «Ainda guardo o baque da bala na cabeça dele. Parecia uma caverna…» Manuel acabara o curso de comandos havia quatro meses, mas era a primeira vez que via a cara da morte, ali aos seus pés. Baptizava-se. A medalha de uma santa pendia no crachá, não a queria perder, tinha-o prometido à mãe.

Mais à frente toca a sorte a outro negro que, ao dar pela presença dos soldados, se assusta e foge. O tiro apanha-o na nuca. Manuel vira-o com a bota, tem a cara rebentada e os dentes separados, na mão direita segura com força um saco de sarapilheira. A tropa entrega-se à pilhagem, a Manuel calha um fato de banho branco, muito bonito, que ainda há bem pouco tempo usou nas praias da Linha.

Ao meio-dia chega a aviação, é o sinal que esperam para entrar a matar. Dois Fiats sobrevoam a povoação e largam as bombas no mato. Antonino Melo substitui o capitão da companhia, que tombou com hepatite. Os helicópteros lançam-no mesmo no centro da aldeia de Wiriyamu com mais um grupo de soldados. Não confia nos dois elementos da DGS que o acompanham. Não é uma questão de princípio, cresceu sem contradições em Moçambique, a sociedade colonial não lhe faz mossa. Mas fica em brasa quando a polícia política se tenta meter no seu trabalho, e as informações que lhe dão nem sempre são de fiar. O alferes deixou Portugal era ainda criança, e os ventos que sopram da metrópole, o apelo à descolonização, deixam-no indiferente. Não há resposta aos tiros da tropa, Antonino apenas vê mulheres, velhos e crianças em debandada. Mas ele nunca pôs em causa a ordem de um superior, e a guerra é cega. Não há balas diferentes para mulheres e crianças.

No dia anterior a sua companhia sofreu as primeiras baixas. A vida não era um mar de rosas para o exército português. A Frelimo trocava-lhe as voltas. O interesse da guerrilha é impedir a construção de Cahora Bassa. As emboscadas sucedem-se, e a 6ª Companhia de Comandos é colocada no rio Mazoe, a poucos quilómetros de Tete, para dar cobertura aos camiões que chegam da África do Sul e do Malawi com material para a barragem.

 

O guerrilheiro Raimundo

A fama do guerrilheiro Raimundo, cognome Dalepa, ou bicho que fede, faz lenda. Nessa manhã, Raimundo escolta um grupo que leva armamento para Sofala e Manica, uma das frentes de luta. De regresso ao estacionamento do Mazoe, uma equipa de comandos cai-lhe nas mãos. O condutor da Berliet, com a mão esquerda decepada, tenta fugir e esmaga a bacia de um alferes que caíra do camião. Seis feridos graves foi o saldo. A 6ª Companhia pede vingança, olho por olho, dente por dente. Antes de ser evacuado, o alferes Amaro deixa-lhes uma missão: «Vinguem os vossos camaradas!».

Horas depois, Antonino é chamado ao Comando da Zona Operacional de Tete (ZOT). Há uma semana que a «Operação Marosca» tinha sido decidida, mas os últimos acontecimentos apressavam a acção: para além da emboscada, um avião dos Transportes Aéreos quando sobrevoava as aldeia de Wiriyamu e Juwau é alvejado. Joaquim Sabino, inspector-chefe da DGS, marca presença na sala de operações. «Fui eu quem informou o exército do sítio onde se encontravam os terroristas», recorda hoje o inspector reformado. Sabino joga as cartas para a mesa. Um dos seus informadores, um negociante de cabritos daquela povoação, garantira que Raimundo se encontra na aldeia de Wiriyamu. Mas o comandante da esquadra dos Fiats não tem tantas certezas e recusa-se a fazer fogo na zona. «Isso vai ser um crime, aquilo é só população», garantira o capitão, que hoje prefere ficar na sombra. «Só um bomba das pequenas», pede o major de operações. Nem pequena nem grande, as bombas serão largadas na mata. Sem mais, Antonino Melo parte para a missão civilizadora.

 

ERA época de sementeira mas a chuva teimava

Um grupo de virgens e de velhos que encarnam o leão partiu para a floresta sagrada. Levavam milho torrado, amendoim, tabaco e caju para oferecer a todas as almas em troca de água. Dukiria Makaje, recém- -casada, ficara na machamba, pequena horta nas proximidades de Wiriyamu. Depois de semear a mapira volta à aldeia e prepara o almoço para Tinta, o marido. De repente, ouve o bombardeamento no mato. Antonino salta dos helicópteros com os seus homens. Os aldeãos tentam fugir, é a caça ao «turra». O alferes agarra tudo o que lhe vem à mão, homens, mulheres e crianças, e fecha-os em palhotas. Depois lança as granadas. As paredes de capim ficam chapeadas de corpos estilhaçados. Entretanto, os soldados reúnem a população no pátio da aldeia. Chico Kachawi, o negro da DGS, interroga os mais velhos. Mas ninguém parece conhecer Raimundo. Nunca o abrigaram. Wiriyamu, o chefe da aldeia, apela. Chico manda-o rebolar no chão e treinar cambalho tas. Depois dá o ultimato, se queres viver foge. Mal o velho se ergue, ordena: «Mata a gazela.» E os soldados treinam o dedo.

Dukiria encontra-se na fila das mulheres e percebe que o marido vai ser o próximo. Observa-o de longe, persigna-se, despede-se. Chico exige confissões. Que não, não é turra, defende-se Tinta. Com um pau esmaga-lhe o crânio, depois salta para cima do corpo. Diverte-se no trampolim, perante o gáudio da tropa. Todos partilham o festim. O soldado Sebola, africano de Tete, brinca com as crianças. Agarra-as por um braço e atira-as ao ar. Quando os corpos descem, espera-os o punhal.

Orário Kudenguirana, irmão de Tinta, é o último sobrevivente da família e espera a sentença. Viu a mulher ser queimada numa palhota e o seu único filho, um bébé de um ano, teve pior sina na faca de Sebola. Não tentou fazer nada, escondido no meio dos outros pensava ainda escapar à sorte. Um soldado aproxima-se do grupo das mulheres e leva a cunhada. Atrás de uma árvore, o comando proclama a sua virilidade. O soldado segura os cabelos de Dukiria para a manter de joelhos. Mas ela nem pensa rebelar-se. «Este é o teu último dia, tens uma bela despedida», dizia- -lhe o herói. Depois os soldados arrancaram-lhe a capulana e revezaram-se. Não sabe quantos, nem lhes distinguiu a cara, os homens de uniforme são todos iguais. Só se lembra que o último roubou as missangas que lhe adornavam a cintura e as colocou ao pescoço. Como um troféu.

 

Caíam por terra os brandos costumes

Antes de queimarem as palhotas, os soldados fazem uma limpeza geral. Rádios, lanternas, malas de madeira, bicicletas. A pilhagem salva-os do tédio. Antonino cumpre a missão à risca, não quer manchar a sua caderneta militar. A guerra não tem lógica. Mandaram-no fazer uma limpeza numa base inimiga, matar tudo o que se move é o ABC da guerrilha. Um comando não deixa testemunhas, era o lema. «Nessa altura tinha uma pedra no coração.» Augusta Creya tinha apenas cinco anos mas ainda se lembra do homem alto e loiro que a salvou. O alferes junta um grupo de pessoas e mete-as numa palhota. A criança pressente o que está para acontecer e, agarrada à capulana da mãe, chora. Entre os gritos dos prisioneiros, Antonino exercita piadas. «Quem quer casar comigo?» A pequena Augusta oferece-se e abraça-se às suas pernas. Consegue abrandar o coração do oficial que antes de lançar as granadas retira a criança e a mãe do grupo de condenados. «Ainda hoje tenho a impressão de que foram elas que me denunciaram».

Vasco Tenente também escapou por pouco. Quando os soldados chegam, o irmão mais velho oferece-lhes cadeiras para se sentarem. Era a tradição quando os brancos os visitavam. Foi o primeiro a morrer. Toda a família é fechada na cabana. A mãe enlaça-o pela cintura e canta obedecendo às ordens da soldadesca. Quando as granadas rebentam a porta abre-se, e Vasco, com uma perna queimada, consegue fugir. Entre o fumo, Veleriano Bauke, furriel, descobre-o. Prepara a G3, mas perde a coragem. Ainda havia muito trabalho a fazer e a adrenalina não baixava. Não era um dia normal, na aldeia de Wiriyamu. Sebola acumula especialidades. Coloca as mulheres em bicha, abraçadas. Encosta o cano da G3 e dispara. Depois é a contagem e a glória. Duma vez abate sete, doutra 13. Matar é uma arte, é preciso ter vocação. O soldado dedica-se de novo às crianças. Pequenos corpos fazem piruetas no ar antes de caírem nas palhotas incendiadas. É véspera de Natal.

Antonino não encontra rasto de guerrilheiros, no meio dos destroços restam apenas dois canos de canhangulo, armas de caça. Não se perturba, matar gente na guerra não é novidade. Para que raio serve a guerra? Dá ordem aos homens para que se apressem, a aldeia é um braseiro, a terra parece escorrer vapor. Chico Kachawi grita: «Matar tudo, que não fique ninguém vivo!» No pátio, Dukiria está entre dezenas de pessoas. Escondem-se atrás uns dos outros, as mulheres com os braços protegem os filhos. «Batam palmas para se despedirem da vida», traduzia o negro em chinhungue. Eles obedecem, e as granadas caem. Dukiria é atingida num pé, arrasta-se, esconde-se entre os mortos.

Mais abaixo, na aldeia de Chawola, Joaquim Pacheco, alentejano de Garvão, defende as sagradas parcelas do império. Lutar pela Pátria era uma forma de não se sentir inútil. Vinte anos, filho de agricultores, antes da guerra nunca previu tudo o que se esconde na alma humana. Tinha casado há pouco e regressara de Lourenço Marques onde em cinco dias de folga festejara as bodas. Não percebia a enorme vontade que tinha agora de ter uma mulher. Talvez por ter acabado de enforcar um homem. O sangue incitava-o e, ainda tocado pela energia da morte, o alentejano descobre numa palhota três donzelas. Em certos lances sempre precisou de algum sossego, e enquanto os camaradas se divertem com as outras retira a mais nova para a varanda. Era a mulata mais bonita e mais cobiçada. «Sou o primeiro, fui eu que a descobri.» Não falam a mesma língua, mas Joaquim faz um gesto e ela deita-se. Não é necessário usar de força, a jovem rende-se. Depois não a matou, faltou-lhe coragem. «Ela portou-se bem, ajudou, não ficou parada».

Dois soldados fazem bicha. Com o último a sorte da rapariga falha. Oferece-lhe o cano da arma para a ajudar e quando ela se tenta erguer, dispara.

 

Na próxima edição publicamos a II e III parte desta reportagem