Isabel II. Como retratar uma rainha

Em pintura ou fotografia, os retratos da falecida Isabel II estão por todo o lado: não apenas nos museus, mas também nos selos, nas notas e, claro, na internet. Da pose clássica capturada por Cecil Beaton ao controverso quadro de Lucian Freud, recordamos alguns dos mais marcantes.

Como pintar um monarca? Hyacinthe Rigaud, o pintor da corte de Versalhes, estabeleceu o cânone em 1701, no seu retrato oficial de Luís XIV. O Rei-Sol, então com 68 anos, era a própria encarnação do Estado e do poder absoluto. «L’État c’est moi», parece declarar o quadro (hoje na coleção do Louvre), sem que o seu protagonista precise de dizer uma palavra.

Rigaud mostrou que um Rei não precisa de ser bonito – Luís XIV, com as suas feições descaídas e o nariz grande, decididamente não o era. Precisa, isso sim, de projetar força e dignidade. Nesta tela imponente, não são apenas as dimensões generosas (quase três metros de altura por dois de largura) e as vestes opulentas (os sapatos têm fivelas de diamantes) que manifestam essas qualidades. É sobretudo a pose escolhida pelo pintor, cuidadosamente encenada.

«Permanecer de pé com os pés juntos, ou na posição de ‘sentido’ das formaturas militares, é uma posição de obediência associada a pessoas de baixa condição, pelo que é de evitar a todo o custo», escreve o zoólogo e pintor Desmond Morris no livro Poses – Linguagem Corporal na Arte (ed. Bizâncio). Morris oferece em seguida uma interpretação da postura do Rei no famoso retrato de Rigaud: «O pé da frente aponta directamente para o observador como se estivesse a alvejá-lo. O de trás forma com ele um ângulo recto e é visto de perfil. Tem sido sugerido que esta pose foi desenvolvida de forma consciente ou inconsciente como meio de exibir uma zona erótica do corpo masculino, nomeadamente a parte interna da coxa».

Atrás de si, no meio da profusão de tecidos luxuosos, espreita uma coluna de mármore, sinónimo de estabilidade e durabilidade. Não podia haver um símbolo mais indicado: estendendo-se por 72 anos, três meses e 17 dias, o reinado de Luís XIV foi o mais longo de sempre. A coluna possuía ainda outro significado: simbolizava a ligação entre o céu e a terra, a correspondência entre o poder divino e o poder humano.

A lição de Rigaud

Quando, em 1953, Cecil Beaton, fotógrafo da revista Vogue e da alta sociedade, retratou Isabel II na sua coroação, mostrou que até que ponto tinha aprendido bem a lição de Rigaud. A imagem a cores da Rainha em Westminster cita quase directamente a tela pintada 250 anos antes. É certo que Isabel surge sentada, enquanto Luís XIV estava em pé, e com a coroa na cabeça, enquanto a de Luís XIV repousa sobre uma pequena almofada (aliás, também é difícil imaginar como ficaria o Rei de França com a coroa por cima da volumosa peruca encaracolada).

Mas as semelhanças entre as duas representações são por de mais evidentes. A posição do trono e da monarca, a três quartos, é quase a mesma. O manto faz o mesmo movimento ondulante. À direita, abre-se a mesma cortina vermelha. A atmosfera de brilho e aparato é idêntica. E ambos os soberanos seguram o ceptro: no caso francês apoiado na almofada onde repousa a coroa, no caso britânico pousado no regaço real, mas o ângulo é exatamente o mesmo. E, enquanto no quadro de Rigaud espreita a coluna, na fotografia de Beaton vê-se a abóbada da abadia de Wesminster – a mesma referência à perenidade da pedra, a mesma verticalidade, a mesma correspondência entre o poder divino e o poder humano. A maior diferença entre os dois retratos diz respeito à idade: Isabel II tinha na altura apenas 27 anos, contra os 68 de Luís.

O mais espantoso, porém, é como a estas duas imagens tão parecidas correspondem dois destinos tão semelhantes. Isabel reinou ao longo de 70 anos, sete anos e dois dias, ficando apenas um ano e oito meses aquém do Rei-Sol. Mas, claro, é difícil rivalizar com um Rei que recebeu o trono com apenas cinco anos.

As notas da Rainha: retratos cada vez mais próximos

A imagem mais familiar de Isabel II é consideravelmente menos faustosa do que a grande composição de Cecil Beaton. Trata-se do desenho que encontramos nas notas de cinco libras. A primeira vez que a Rainha fez a sua aparição numa nota foi em 1960. O desenho, da autoria de Robert Austin, representava-a com o diadema de diamantes e um colar ao pescoço. Não foi bem recebido: a Rainha parecia demasiado séria, rígida e distante, com o olhar dirigido para o infinito. Muitos consideravam que o desenho não estava sequer parecido com o rosto da mulher que lhe servira de modelo.

E assim, outro artista, Reynold Stones, começou de imediato a trabalhar noutro retrato, desta vez para as notas de cinco e dez libras. Um pouco mais próxima e descontraída, esta nova versão da Rainha foi consensual. Mas haveria outras. Na década de 70 foram emitidas novas notas com dois novos retratos, desta vez sim, a encarar o portador olhos nos olhos. Ao mesmo tempo que se tornavam mais próximos, os retratos iam acompanhando o amadurecimento da soberana.

Até que em 1990 chegou a versão definitiva: um retrato da Rainha com 64 anos. Da autoria de Roger Withington, serviria de base a todas as notas que ainda hoje circulam, e não seria sujeito a retoques nem atualizações. «Tornou-se uma imagem familiar, o que constituiu uma característica útil contra a falsificação», explica o site do Banco de Inglaterra. «As pessoas conseguem detetar muito mais facilmente alterações em representações de rostos do que em qualquer outro tipo de padrão. Isso ajuda as pessoas a detetar falsificações com imagens mal copiadas».

Um ícone moderno

«Quero ser tão famoso como a Rainha de Inglaterra», terá dito um dia Andy Warhol. Mais do que um retrato, a imagem de Isabel II impressa nas notas inglesas transformou-se num ícone mundial – uma presença tão habitual e imediatamente reconhecível que nem parece pertencer a uma pessoa de carne e osso. Em Queen Elizabeth II of the United Kingdom (1985) Warhol fez algo parecido, usando uma fotografia tirada em 77 para o Jubileu de Prata. Aqui, os elementos tradicionais – a tiara, a pequena medalha com um retrato de Jorge VI – combinam-se com cores garridas e artificiais que formam um padrão abstrato. Como é habitual em Warhol, a figura representada – que traz à memória a imagem de um selo, até porque se repete em quatro variações – torna-se quase espectral, uma personagem esvaziada do corpo e da densidade. Em todo o caso, pela mão do expoente da pop art, a monarquia surgia rejuvenescida.

Isabel e Freud: a montanha pariu um rato?

Ao longo da sua vida, Isabel foi retratada por vários pintores pomposos, demasiado convencionais ou pura e simplesmente medíocres. Não era o caso de Lucian Freud, um artista tão dotado e respeitado quanto provocador. Nascido em Berlim, neto do pai da psicanálise, e naturalizado britânico, os seus nus monumentais, como o do seu assistente David Dawson, deitado com os genitais numa posição de destaque, ou de Sue Tiley (também conhecida pela alcunha ‘Fat Sue’), têm a capacidade de deixar qualquer um de boca aberta: seja de espanto, de choque ou de puro deslumbramento.

Freud escreveu para o Palácio de Buckingham solicitando uma oportunidade para pintar a Rainha. Surpreendentemente, em maio de 2000, Isabel II recebeu-o para uma conversa preliminar, e ficou acordado que Freud faria o seu retrato.

Posar para Freud já tem sido denunciado como uma forma peculiar de tortura, de tal modo o artista é exigente e demorado a terminar os seus quadros, que exigem sessões de pose extenuantes. Martin Gayford descreveu, no livro Man with a blue scarf – On sitting for a portrait by Lucian Freud, o processo em termos menos dramáticos: «Na prática, alternamos entre a conversa e períodos em que sua concentração é intensa. Durante esses ele mantém uma constante movimento de dança, andando de lado, olhando para mim atentamente, medindo com o carvão. Segura-o direito, e com um movimento característico descreve um arco, depois volta para a tela para pôr outro traço. Durante este processo murmura para si mesmo de vez em quando, pequenas observações que são às vezes difícil de perceber: ‘Não, não é isto’, ‘Sim, um pouco’, ‘Ligeiramente…’ Pontualmente, tira um pedaço de algodão da algibeira e apaga uma pincelada ou duas. Uma vez por outra dá um passo atrás e examina o que fez, com a cabeça de lado».

Freud gostava de trabalhar de tronco nu no seu estúdio austero e delapidado, onde mantinha, como um hamster, um monte de trapos a um canto para nunca lhe faltar onde limpar os pincéis. No estúdio de conservação de pintura de Fryar Court, no palácio de Saint James, onde decorreram as sessões com a Rainha, terá sido diferente. Apesar da fama – e algum proveito – de enfant terrible, o artista estava habituado a movimentar-se nos meios aristocráticos e conhecia todos os preceitos da etiqueta, mesmo se às vezes fazia por ignorá-los.

A obra foi terminada em dezembro de 2001. Nas últimas sessões, Freud, que tinha imposto como condição escolher o diadema, trabalhou sozinho nos detalhes da joia – para a pintar, colocou-a na cabeça de uma amiga. Sua Majestade já não precisava de estar presente.

Para muitos, a montanha pariu um rato. O retrato da Rainha pelo maior pintor realista vivo era desconcertante. Se Rigaud estabeleceu as regras do retrato real, Lucian Freud subverteu-as por completo. Nada de poses encenadas, nada de vestes complicadas, nada de referências transcendentes: apenas manchas de tinta a dar origem a um rosto, num quadro com um palmo de altura, mais pequeno do que uma folha A4. Pior: Isabel II não saía especialmente favorecida, pelo contrário. Afinal, talvez a lição de RIgaud não tenha sido completamente esquecida.

As reações foram, no mínimo, dissonantes. O The Sun fez capa com o assunto: «É um travesti, Sua Majestade», dizia a manchete. O editor do British Art Journal também não foi meigo com as palavras. «Fá-la parecer um dos seus cãezinhos que tenha sofrido um enfarte». Já Adrian Searle, crítico do Guardian, comparou o rosto da Rainha com uma máscara de carnaval de Richard Nixon. Mas também o considerou o melhor retrato de qualquer membro da realeza dos últimos 150 anos.

A Rainha, com o seu poder de encaixe e o seu sentido de humor, poderá ou não ter achado piada ao resultado. De qualquer modo, não era novidade para ninguém que o pincel de Freud nunca favorecia os seus modelos e podia até ser impiedoso. Quanto à dimensão pouco majestática do quadro, não há como saber se é uma forma de amesquinhamento ou um simples resultado do desejo de não importunar a soberana com prolongadas sessões de pose. A pintura encontra-se atualmente na capela de S. Jorge do Castelo de Windsor.

De olhos bem fechados

De regresso ao universo da fotografia, Chris Levine produziu uma das imagens mais inesperadas e especiais de Isabel II. Em 2002, quando recebeu uma chamada a convocá-lo para retratar a Rainha dali a dois anos, pensou que se tratava de uma partida. «Tinha fotografado estrelas de rock e filmado gurus indianos mas a Rainha parecia alguém fora do meu alcance», recordou à Wallpaper.

Mas a encomenda era real. Levine tinha dois anos para preparar tudo. «Eu tinha estado bastante descontraído em relação às fotografias, mas no dia da sessão fiquei muito nervoso. Dispúnhamos de apenas uma sessão e tinha de ficar tudo pronto. Havia muita coisa que podia correr mal. George Bush estava hospedado no palácio e havia algum tupo de interferência que estava a mexer com os nossos equipamentos eletrónicos. Felizmente, resolveu-se pouco antes da chegada da Rainha». Isabel II envergava o vestido que dois dias antes o fotógrafo tinha escolhido e indicado a uma assistente do palácio. «Foi um momento surreal».

Também um pouco surreal foi a obra que resultou desse encontro. Ou melhor, Levine fez um retrato convencional, equilibrado, completamente de acordo com todas as regras. Mas, por um breve momento, a Rainha fechou os olhos para descansar e o fotógrafo carregou no obturador. Daí nasceu uma segunda imagem, divulgada em 2008, intitulada Lightness of Being (Leveza do Ser). Mostra Isabel II de olhos fechados, perfeitamente serena, refugiada no seu mundo interior e rapidamente correu mundo. Eram muito poucos os que tinham tido o privilégio discutível de ver a Rainha num momento de repouso, com as pálpebras cerradas.

A nega de Hockney

Aos 85 anos, com Francis Bacon e Lucian Freud há muito desaparecidos, David Hockney é o mais reverenciado e bem-sucedido artista britânico da atualidade. As suas pinturas alegres, de temas aparentemente ligeiros, atingem valores obscenos nas casas de leilões. Em 2018, Pool with two figures (1972) foi arrematada por 90 milhões de dólares, tornando-se a obra mais cara feita por um artista vivo, recorde que antes pertencia a Jeff Koons.

Em 1990, já um pintor célebre com uma carreira de décadas, Hockney recusou ser armado cavaleiro. O artista parece não querer ter muito que ver com a realeza. Em 2011 mostrou até que ponto é indiferente às honrarias, ao declinar um convite para pintar a Rainha. «Quando me perguntaram, disse-lhes que agora estava muito ocupado a pintar Inglaterra. O país dela», revelou o artista à BBC. Hockney reconheceu que a Rainha seria um tema «formidável», mas notou que preferia pintar pessoas que conhecia bem e que não era um «lisonjeador». Além disso, ia precisar de muito tempo, que, aparentemente, preferia usar de outra forma.

Isabel II não parece ter ficado melindrada. Em 2012 atribuiu-lhe a Ordem de Mérito – e desta vez o artista aceitou – e foram vistos em amena cavaqueira na celebração do Jubileu de Diamante, na Royal Academy. Hockney nunca fez um retrato formal da Rainha. Mas nesse ano representou-a em ponto pequeno junto do príncipe Filipe na proa do The Spirit of Chartweel, uma barcaça que atualmente faz viagens no Douro. O quadro, que representa um dia de chuva, com o casal real ao centro e a Tower Bridge ao fundo, não pode ser visto em nenhum museu: Hockney pintou-o no seu iPad.