A pedra de fecho da abóbora

Colocar o volume em falta na estante teve um sabor especial. Sem ele, o conjunto estaria sempre incompleto.

E ntre 2004 e 2008, a Editorial Teorema publicou meia dúzia de títulos de um escritor alemão autoexilado em Inglaterra então já falecido e pouco conhecido por cá, Winfried Georg Sebald, ou W. G. Sebald, como assinava. Não sei o que se passou entretanto com a Teorema, mas por volta de 2010, ou pouco depois, estes e outros excelentes livros do seu catálogo começaram a aparecer em secções de saldos e em bancas de livrarias de baixo custo. Fui comprando todos os que apanhava e li alguns, a começar pelo inesquecível Austerlitz.

Nascido na Baviera ainda durante a Guerra, em 1944, Sebald tinha 57 anos e estava no auge da glória literária quando perdeu a vida ao volante do seu carro numa estrada de Norfolk. A autópsia revelou que não morreu do embate mas sim do ataque cardíaco que esteve na origem do acidente. Começara como académico e crítico literário ‘ortodoxo’, mas aos poucos foi desenvolvendo um estilo muito próprio, uma mistura de História com autobiografia, ficção e ensaio, em que a memória individual e coletiva desempenha um papel central, tudo filtrado pelo seu intenso sentido poético. Com ele, «o intelectual torna-se um artista», como tão bem escreveu um jornalista do Frankfurter Allgemeine Zeitung.

Da meia dúzia de volumes que a Teorema nos deu nos anos 2004-8 (saíram outros dois após a aquisição pelo grupo Leya e mais recentemente o autor passou a ser publicado pela Quetzal), durante algum tempo ficou a faltar-me Campo Santo. Quando finalmente encontrei um exemplar, arrumá-lo no espaço para ele reservado na estante, junto aos restantes, teve um sabor e um significado especial. Foi como se estivesse a colocar a pedra de fecho de uma abóbada, sem a qual aquele conjunto estaria sempre incompleto.

Na recente leitura desse livro póstumo, reencontrei todas as qualidades que me tinham encantado em Austerlitz: a mesma delicadeza, o mesmo pensamento cristalino, a mesma piedade; mas também as mesmas angústias e inquietações. «O pintor retrata-se sempre a si mesmo», reza uma famosa máxima do Renascimento. Escrevesse ele sobre Kafka ou sobre a destruição das cidades alemãs durante a Guerra, Sebald fazia sempre um retrato de si próprio.

Enquanto o lia, passou-me muitas vezes pela cabeça que as suas páginas são um equivalente literário da natureza-morta na pintura (a que os alemães chamam stillleben, ou seja, ‘vida silenciosa’), e em especial das vanitas, com as suas melancólicas caveiras. Transcrevo uma passagem reveladora das suas reflexões: «Recordar, guardar e conservar, escreveu Pierre Bertaux já há trinta anos sobre a mutação da humanidade, só teve uma importância vital num tempo em que a densidade da população era baixa, poucos os produtos que fabricávamos e só o espaço era abundante. Não se podia prescindir de ninguém, mesmo depois de morto. Pelo contrário, nas sociedades urbanas do final do século XX, onde toda a gente é substituível de um momento para o outro e se torna supranumerária assim que nasce, é necessário estar constantemente a atirar lastro borda fora, tudo o que de outro modo poderíamos recordar, a juventude, a infância, as origens, os avós e antepassados».

Sebald, pelo contrário, não deitava nada borda fora. A sua literatura alimenta-se precisamente das cinzas dos mortos e da História, e confere uma especial atenção e dignidade às coisas humildes. Quando, há uns anos, encontrei os seus livros negligenciados entre o refugo das editoras, a um preço ridiculamente baixo, tamanha falta de consideração pareceu-me um sacrilégio, uma iniquidade. Uma década depois, com algumas páginas desses livros picadas pela humidade, suspeito que essa circunstância não desagradaria por completo ao sentido de discrição do autor.