Taxar lucros extraordinários? Economistas divididos

Ministro da Economia deixou aberta a possibilidade de taxar lucros excessivos. Mira Amaral fala em dupla tributação, César das Neves diz que só se justifica perante “casos verdadeiramente excecionais e duradouros” e Henrique Tomé reconhece que é o caminho mais correto a seguir. 

Por Sónia Peres Pinto e Daniela Soares Ferreira

António Costa Silva deu o tiro de partida e continua a hesitar em relação à possibilidade de avançar com um imposto sobre os lucros extraordinários. Depois de ter revelado na semana passada que foi o responsável por ter levantado o véu sobre essa possibilidade, ainda este fim de semana, o ministro da Economia adiantou que este futuro imposto está a ser analisado por Bruxelas, mas defendeu que as empresas “não estão preparadas para a taxa sobre lucros excessivos”.

Uma questão que está longe de ser pacífica e que divide economistas. Contactado pelo i, João César das Neves lembra que este imposto poderá avançar, mas, no entanto, lembra que dado que os lucros já são taxados, uma nova taxa sobre lucros excessivos só se justifica, segundo o economista, “perante casos verdadeiramente excecionais e duradouros”. Mas deixa um alerta: “A situação atual é tudo menos clara. Há empresas a obter mais lucros e a serem taxadas por isso pelo IRC; mas o que é difícil, no meio da enorme incerteza que se vive, é garantir que esta situação é uma exceção mesmo significativa e sustentável, que justifique uma tributação excecional. A qual, evidentemente, iria prejudicar os investimento dessas empresas que a situação exige. Se os preços da energia descerem, como aliás está acontecer, a medida deixa de se justificar. Além disso, introduz uma arbitrariedade e incerteza no sistema fiscal, que prejudica o funcionamento das empresas e mercados. Enveredar por aí pode ser abrir um precedente perigoso”.

Uma opinião que já tinha sido partilhada por Luís Mira Amaral ao considerar que já temos uma dupla tributação: IRC e contribuições extraordinárias. “A ideia é taxar os lucros extraordinários dessas empresas? O IRC já cobre isso”, diz ao i. O economista defende ainda que “o Governo português não tem margem de manobra, porque já cobra uma contribuição especial. Agora querem mais uma taxa?”, questiona.

Posição contrária tem Henrique Tomé, analista da XTB, ao garantir ao i que esse caminho não é inevitável “mas é certamente o mais correto a seguir”, uma vez que, no seu entender, “esta medida irá apoiar financeiramente as medidas de apoio às famílias e às empresas anunciadas recentemente pelo Governo”. 

Dupla tributação Vários economistas têm apontado para o risco da dupla tributação. Uma dessas vozes é César das Neves ao defender que este novo imposto seria tributar lucros que “já estão a ser tributados”. Ainda assim, reconhece que “se a circunstância for mesmo excecional, podem justificar-se medidas excecionais”. Mas não deixa de lembrar que, tal medida, seria populista. “Basta ver como os radicais de direita e esquerda estão todos a bramar por uma medida dessas”.

Esta não é a primeira vez que o economista defende esta posição. “Criar um imposto novo para levar os lucros excecionais nos anos bons e não dar nada nos anos maus só serve para descapitalizar as empresas, precisamente numa altura em que precisamos que as empresas de energia encontrem fontes alternativas, quer pela guerra, quer por razões ambientais”, lembrando que “o petróleo esteve com preços muito baixos durante muito tempo e nessa altura não se retiraram os impostos. 

Mais brando é Henrique Tomé. “O aumento das taxas sobre os lucros extraordinários aplica-se nesta altura em que muitas empresas estão a beneficiar da subida dos preços causada pela inflação”.

Face a esta incerteza, o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, voltou a falar sobre o assunto ao garantir que o Governo intervém no mercado. “Não precisamos de esperar que se forme lucro numa empresa para intervir, nós fazemo-lo no preço. […] Nós intervimos já no mercado, não lhe chamamos é taxa [sobre lucros extraordinários]”, afirmou Duarte Cordeiro, durante a participação numa conferência promovida pela CNN. “Se é um fetiche em Portugal, chamemos-lhe taxa”, acrescentou.

Posição arrasada Para Eugénio Rosa não há margem para dúvidas: A Europa está a ser governada por uma “política de dois pesos e duas medidas”, criticando ainda que “enquanto uns poucos arrecadam enormes lucros com a crise, os portugueses e os outros povos da UE são utilizados pelos seus governantes e pelos eurocratas da CE numa guerra económica que está a destruir a vida dos europeus, a aumentar a pobreza, e afundar as economias europeias”.

Em causa está a atribuição – ou não, depende dos países – do imposto sobre o lucro extraordinário das grandes empresas.

No seu mais recente estudo, o economista fez as contas. Por exemplo, nos primeiros seis meses deste ano, as vendas do grupo Jerónimo Martins, comparadas com as de igual período de 2021, aumentaram em 20% (subindo de 9902 milhões de euros para 11883 milhões) mas os seus lucros antes de impostos cresceram em 67% (de 264 milhões de euros para 441 milhões euros), e os lucros líquidos após impostos tiveram um aumento de 83,5%, pois passaram de 194 milhões de euros para 356 milhões de euros. “E isto aconteceu porque, entre o primeiro semestre de 2021 e o primeiro semestre de 2022, os lucros antes de impostos aumentaram em 177 milhões enquanto os impostos pagos pela Jerónimo Martins subiram apenas 15 milhões de euros”, enumera Eugénio Rosa, que acusa: “E o Governo pretende reduzir brutalmente o poder de salários e pensões, mas nada faz para pôr cobro a este escândalo, a não a ser que a CE ordene”.

E faz também as contas aos lucros do grupo Sonae que foram superiores às do primeiro semestre do ano passado em apenas em 7,9%. “Mas os seus lucros antes de impostos aumentaram em 106,8% (de 71 milhões de euros para 146 milhões de euros) e os seus lucros líquidos após impostos crescerem em 108,2%”, escreve o economista que entende que “o aumento de impostos pagos por este grupo foi ridículo: um milhão de euros”. E deixa a crítica: “2022 está a ser um maná para os grandes grupos de distribuição, mas dramático para a alimentação dos portugueses”.

O economista aponta ainda o dedo às energéticas. Nos primeiros seis meses do ano, as vendas da Galp, comparadas a igual período do ano passado, aumentaram em 84,8%, uma vez que subiram de 6974 milhões de euros para 12890 milhões de euros. Mas os seus lucros antes de impostos cresceram em 111,2% (mais que duplicaram) e os lucros líquidos após impostos tiveram um aumento de 207,3% (mais que triplicaram). A justificação é simples: “Isto aconteceu porque, entre o primeiro semestre de 2021 e o primeiro semestre de 2022, os lucros antes de impostos aumentaram em 617 milhões de euros enquanto os impostos pagos pelo grupo Galp subiram apenas 121 milhões milhões de euros”. 

No seu estudo, Eugénio Rosa diz ainda que há um aspeto importante que caracteriza este grupo: “É o facto de, em 2021, apesar de ter tido só 4 milhões de euros de lucros, distribuiu aos acionistas 616 milhões de euros” mas, para isso, “teve de reduzir os seus capitais próprios em 130 milhões de euros e o resto endividando-se. É descapitalizando e endividando as empresas a forma como ‘investem’ defendido pela APEP”.

As contas estendem-se à EDP que nos primeiros seis meses deste ano também aumentou os lucros face ao mesmo período do ano passado: as suas vendas este ano foram superiores às do ano passado em 67,1%, tendo passado dos 6083 milhões de euros para 10167 milhões de euros. Já os lucros antes de impostos aumentaram em 13,3% e os lucros líquidos após impostos crescerem em 22,9%. Neste grupo, destaca o economista, os impostos pagos, entre o primeiro semestre do ano passado e primeiro semestre deste ano, até diminuíram de 215 milhões de euros para 196 milhões.

E, mais uma vez, deixa a crítica: “2022 está a ser um maná para os grandes grupos de energia, mas dramático para os consumidores portugueses principalmente das classes médias e baixas que veem o seu poder de compra reduzir-se brutalmente”.

E lá fora? A presidente da Comissão Europeia foi clara ao garantir que quer que as empresas energéticas com lucros excessivos sejam taxadas por isso. Segundo Ursula von der Leyen, o bloco europeu espera angariar 140 mil milhões de euros junto das empresas energéticas que entende estarem a beneficiar da crise na Europa. O pacote de medidas para o setor prevê um teto sobre os preços das renováveis, uma “contribuição temporária de solidariedade sobre os lucros excedentários” nos combustíveis fósseis e medidas de redução do consumo de eletricidade.

“A nossa proposta inclui os produtores de eletricidade com fonte fóssil, que terão de dar uma contribuição no âmbito da crise. Ao todo, a nossa proposta vai angariar mais de 140 mil milhões de euros para os Estados-membros acomodarem o golpe [com a crise energética]”, disse a responsável.

Mas o que se faz lá fora? O Governo alemão apresentou recentemente novas medidas para atenuar o impacto da subida dos preços da energia na vida dos alemães e prevê taxar os lucros extraordinários às grandes empresas. “Os produtores [do setor da energia] estão simplesmente a tirar partido dos preços muito elevados do gás que determinam o preço da eletricidade”, disse o chanceler alemão, Olaf Scholz. 

A ideia do Governo alemão é então que esta medida possa “trazer várias dezenas de milhares de milhões de euros”. O Governo prevê definir um teto máximo para as receitas que os produtores de eletricidade podem obter. O excesso dessas receitas será entregue ao Estado que depois as vai usar para financiar as medidas.

Mas não foi o único país a fazê-lo. Além da Alemanha, Espanha já decidiu taxar os lucros de empresas do setor da energia e da banca, assim como Itália, Reino Unido, Eslováquia, Bulgária e Roménia.

Foi no final de julho que o Governo espanhol decidiu agravar em 4,8% a tributação sobre as receitas da banca com juros e comissões, e aplicar também uma taxa de 1,2% sobre o volume de negócios das empresas do setor energético.

Esta tributação extraordinária, que deverá render 7000 milhões de euros nos dois anos em que vigora a medida, vai abranger perto de 20 grandes empresas. E o Governo já avisou que estes custos não poderão ser passados aos clientes, sob pena de serem sancionadas em 150% do valor que tenham repercutido. Medida entra em vigor a 1 de janeiro.

Lembrando também que países como Itália, Espanha e Reino Unido já anunciaram a aplicação desta medida, Henrique Tomé avança: “Curiosamente, os países do sul (os mais endividados) estão a aderir a esta medida rapidamente, pois é importante notar que mais medidas de apoio à economia agravam ainda mais a situação do déficit dos países, sobretudo depois do período da pandemia ter provocado um aumento substancial do nível de dívida”. E diz que, na sua opinião, “esta é uma das melhores medidas que os governos podem adotar, pois não compromete em nada a saúde financeira das empresas que registaram lucros extraordinários por via do aumento da inflação”.

Também para César das Neves garante que uma situação excecional pode justificar a medida e defende que a dificuldade é determinar essa excecionalidade. “Alguns governos em situação política mais precária, como a Espanha, Itália e Reino Unido, têm de agradar à opinião pública, e resistem com mais dificuldade a pressões populistas. Isto mostra menos a sabedoria da medida que as fragilidade política desses países”, diz ao o i.