Carlos Maria Bobone. Da religião dos livros à ortodoxia dos merceeiros

Crítico literário e alfarrabista, Bobone serve-nos um breve tratado geral, por vezes ácido e polémico, outras um tanto superficial ou ingénuo, sobre os bastidores, as personagens e as histórias que sustentam o vício da bibliofilia.

“Quando a tipografia e os seus sucedâneos não passarem de uma esquisitice semelhante à roca de fiar ou à moeda do imperador Augusto” (Michaux), quando, por motivos económicos, ecológicos ou outros, se tiver levado a cabo o desmantelamento dos processos analógicos, das estruturas que garantem o regime material da circulação e do debate público de ideias, quando tudo depender de arquivos virtuais e de um trânsito governado por opacos algoritmos, quando as condições que damos hoje por adquiridas forem suspensas, e a revolução de Gutenberg voltar a ser encarada como essa conquista incrível que foi, quando a grande esponja tiver passado, e não restar mais que um rumor distante desta grande constituição generosa e tolerante, ampliadora dos direitos humanos, então perceber-se-á como o livro foi de facto uma espécie de mágica garantia, permitindo estabelecer uma cronologia e assinalar avanços e recuos no que respeita a mudar o mundo e transformar a vida. Isto porque, como nos lembra Claudio Magris, o mundo não pode ser redimido de uma vez por todas, e cada geração tem que empurrar, como Sísifo, a sua própria pedra, para evitar que esta lhe caía em cima esmagando-a. “A consciência destas coisas supõe a entrada da humanidade na sua maturidade espiritual, nessa maioridade da Razão que Kant havia vislumbrado no período Iluminista.”

É fácil, hoje, e perante os sinais de uma abundância em si mesmo problemática no que toca à circulação dos livros, menosprezar o empenho com que alguns se esforçam, muitas vezes nas condições mais adversas, por garantir a vigência deste modo de transmissão dessas inscrições que determinam o próprio futuro, desde logo transmitindo as experiências e a memória do que ficou para trás, um esforço para garantir o aproveitamento de todo o sofrimento e das conquistas alcançadas ao longo dos séculos. Um breve ensaio da autoria do crítico literário Carlos Maria Bobone com o título “A religião dos livros”, e o qual se debruça sobre a actividade de alfarrabistas, livrarias e livreiros, consegue a proeza de ser bastante empolgante e instrutivo, de, com uns pós de erudição e o cuidado de não se exceder nas minudências, provocando ataques de asma ao leitor, traçar um mapa bastante curioso dos meandros algo obscuros da circulação do livro, sobretudo no que respeita àquele circuito dos livros raros, desses objectos que animam o espírito coleccionista dos bibliófilos, bem como dos livros em segunda mão.

Esta volúvel cartografia segue a par de um esboço incitante da história desta actividade, deixando de lado a edição, para se focar em aspectos bastante concretos desse tráfico discretíssimo, que anima aqueles que buscam um pouco de descanso para assentarem no gozo de um vício ilustre, que balança entre triunfos calados e crimes frouxos. Se Bobone colecciona algumas histórias rocambolescas, vai pontuando o seu ensaio de um pequeno e aliciante anedotário que ajuda a segurar o fôlego desta narrativa que nunca descamba numa colecção aborrecida de informações ou dados, ao compulsar uma série de elementos que dão textura a este relato não prescinde também de assinalar as muitas tristezas e frustrações de um quotidiano tantas vezes maçador, que nem mesmo os ocasionais achados são capazes de dissolver. Um dos aspectos mais conseguidos desta viagem dos livros no seu trânsito entre aqueles que os vendem, lêem ou coleccionam é a forma como o autor procura desmistificar uma certa retórica balofa e um resíduo romântico que se associa a esta actividade e que muitas vezes não permite reconhecer como tudo isso é apenas a música que forra um ambiente, no geral, bastante tedioso.

Bastou, de resto, circular pela Feira do Livro de Lisboa nos dias que se seguiram ao lançamento do livro, integrado na colecção Retratos da Fundação (FFMS), para ouvirmos o zunzum e a boataria, ouvindo-se falar nas habituais crises de figadeira, uma vez que alguns dos elementos dessa tribo socialmente derrotada dos livreiros eram nomeados e outros esquecidos, sendo que, desta vez, os seus feitos não eram ilustrados com o geral tom de exaltação a que estão habituados e que se tornou uma forma de se compensarem de existências bastante pacatas e que, mesmo que esforcem muito, raramente se libertam do colete de forças de um certo enfado. Além disso, esta é uma época bastante inglória para quem tem persistindo na dedicação aos livros, tendo o sector sido submetido nos últimos anos a uma transformação profunda, com as cadeiras editoriais e livreiras a imporem um regime de rotação acelerada, consumo desenfreado e um nível de concorrência que abalroou os pequenos negócios.

O fenómeno da concentração, a par da especulação imobiliária, mostrou-se implacável para as livrarias independentes, e, no que temos já decorrido deste século, a diversidade deslocou-se e a integração na malha urbana perdeu-se, e estabeleceram-se uma série de pequenos fogos, com lotes de livros a serem licitados nas redes sociais a preços irrisórios, o que, se por um lado garante que os leitores podem construir bibliotecas estimáveis em alguns meses sem despender grandes somas, por outro lado, levou a uma atomização de tal ordem que garantiu que muito dificilmente os profissionais do sector verão nos tempos mais próximos o seu trabalho compensado de forma justa. Porque além dos livreiros e alfarrabistas ou leiloeiros, antes de um livro chegar às mãos do leitor, há todo um ecossistema ameaçado, e que vê encolher a sua possibilidade de viver disto.

Autores, editores, tradutores, revisores, paginadores, capistas e distribuidores viram-se, na sua larga maioria, obrigados a aceitar condições cada vez mais precárias para continuar a exercer o seu ofício. Considerando a degradação sucessiva das condições de trabalho, o ambiente de exaustão e pobreza que é típico do meio, não é de espantar que o matiz do infortúnio se embale entre a inveja e o ódio, e isso explica que se tenha cristalizado involuntariamente uma franco-maçonaria com as suas senhas, os seus vícios, esta irmandade dos que decidiram entregar os melhores anos das suas vidas para reinstituir essa fantasia própria dos anos de autodescoberta, de um despertar para o fascínio do mundo, com esses livros que acicataram em nós o espírito inquisitivo e o ânimo aventuroso, aquele período quase raivoso e profético, cheio de vitalidade e enormemente divertido, em que nos demos conta de que num tão simples, através dessa religião privada dos livros, era possível ir ao encontro dos nossos verdadeiros mestres. E a par da leitura, há ainda que ter em conta o fervor de se lançar a desbravar terreno por si mesmo, através da réplica a essas cartas que fomos lendo, tentando acrescentar capítulos nossos a essa trama fabulosa.

Quando perguntaram a Hunter S. Thompson quais os venenos da sua eleição, ele que não era nada tíbio nessas formas de experimentação, respondeu isto: “Ainda não encontrei uma droga comparável a um gajo sentar-se à secretária a escrever, tentar imaginar uma história por mais bizarra que seja, tal como sair à rua e entras na estranheza da realidade, passar algum tempo na Autoestrada do Orgulho.” O problema é que, com os anos e a experiência, não demora muito para que a realidade nos dê a volta. De certo modo o desencanto é uma prova de sinceridade, e é também “uma forma irónica, melancólica e aguerrida da esperança”, como nos diz Magris. Esgotada a juventude, o leitor apaixonado ou o escritor acabam por moderar a sua paixão profética e generosamente optimista, obriga a não subestimar as pavorosas possibilidades de regressão, de descontinuidade, de trágica barbárie latentes na história. Assim, é natural encontrar esse mundo das livrarias e dos alfarrabistas habitados por Sísifos, os tais “excêntricos guardiões de preciosidades que o mundo esqueceu”, empenhados numa “nobre e romântica luta contra as regras da modernidade”, para citar Bobone logo no parágrafo inicial do ensaio.

A questão é que se, nos nossos dias, pode revelar-se bastante útil e até criticamente mais profícuo denunciar os excessos dessa retórica que faz de editores e livreiros uns pesquisadores de ouro genial e feiticeiros do ar dos tempos, por outro lado, no registo escarnecedor que Bobone assume, no seu tom que roça algumas vezes a sobranceria, há uma certa incompreensão de que nem todo o heroísmo se inscreve em chave épica, existe um âmbito de resistência das pessoas comuns, existe algo de realmente espantoso na devoção daqueles que pagam o custo de existências precárias e anónimas para aumentar ligeiramente as hipóteses de certos valores e ideais não serem inteiramente esmagados. Bobone verifica que, hoje, o público se habituou a assistir ao capitular das livrarias como se testemunhasse a derrota da cultura antiga às mãos dos bárbaros. “O tom elegíaco das notícias fala-nos das livrarias que ‘resistem’ e da sobrevivência do negócio como de uma luta maior, impondo nos trabalhadores uma dignidade revolucionária difícil de superar. Pela actualização dos diários e semanários, o modesto lucro do livreiro personifica a luta do bem contra um mal rapaz e inevitável.”

Tudo isto não passa, no entender do jovem crítico do Observador e alfarrabista por herança familiar, de uma encenação algo patética, mais uma forma de fácil pessimismo apocalíptico que vai bem com o furor catastrofista de um coro trágico que domina o discurso cultural e não se cansa de proclamar os erros, o vazio e o horror da vida moderna. Perante esta forma de histeria epocal, cumpre a Bobone vir desdramatizar, repor a serenidade, investindo nessa forma de elegância que consiste em não se ralar com nada, uma forma de cinismo que impede seja o que for que suceda de ser sentido como algo de dramático, uma vez que afligir-se com a transformação vertiginosa do mundo onde crescemos. Mas Bobone esquece-se que a esperança não nasce de uma visão tranquilizadora e optimista das coisas, e sim da “laceração da existência vivida sem véus, e que cria uma irreprimível necessidade de resgate” (Magris).

Há a par desses maestros da retórica apocalíptica, temos estes conservadores que se empenham em mostrar que nunca nada verdadeiramente lhes provoca arrepios ou abala, porque, no fundo, estão munidos de um olhar sem as habituais dioptrias, penetrando na névoa do futuro e indo além das exaltações míopes da época, pois percebem que o que resiste, no final de contas, é uma espécie de harmonia dos ciclos num mundo que está em constante mudança. Assim, Bobone encara como um excelente sinal a proliferação de vendedores na internet, um regime de formigueiro que ilustra bem o estado de decomposição acelerada em que entrou o sector do livro, e toma ainda como realmente auspicioso “fenómenos recentes muito interessantes como as aldeias de livreiros”, passando ao lado do facto da confrangedora evidência de que aquela utopia estapafúrdia que se instalou em Óbidos ser mais um sinal dessas faraónicas imposturas que só são possíveis graças à subsidiação do Estado e dos fundos europeus.

Aquela aldeia dos livros não é outra coisa senão o mais grosseiro exemplo dessas formas de perversão no recurso aos dinheiros públicos que, beneficiando alguns indivíduos (e são quase sempre os mesmos), na verdade afecta a estrutura do mercado, inclinando o plano e criando distorções que desvirtuam inteiramente as relações entre os diferentes agentes culturais. Na verdade, parecendo uma aldeia dos livros, Óbidos não passa de um parque temático, em que os livros são apenas um álibi e uma fachada ou cenário. A actividade ali é quase exclusivamente de ordem turística e a venda de livros é apenas algo meramente incidental. E se, na globalidade, este é um ensaio com os pés bem assentes na terra, no seu exercício do contraditório, Bobone incorre aqui e ali num optimismo delirante, mesmo que o faça com uma boa dose de humor e com penadas secas e vigorosas, que nos recordam a todo o momento que Bobone terá as suas edições do Eça todas sublinhadas: “Os leitores não temam: abrir a porta de uma livraria não é ainda abrir o tampo de um caixão mais ou menos habitado. Um país que nos últimos cem anos viu a taxa de alfabetização subir dos dez para os 90 e muitos por centro também viu aumentar os potenciais clientes das livrarias em 8000 por cento.”

A palavra operativa nesta tão disparatada análise tem mesmo de ser “potenciais”. Se Bobone tivesse tido a pachorra de compulsar os números no que toca a vendas de livros, saberia que se as vendas aumentaram ao mesmo tempo também se concentraram num número cada vez mais reduzido de títulos, e basta consultar a lista dos mais vendidos para se ficar com uma imagem bastante deprimente do que significa para a diversidade de espécimes este crescente fenómeno dos “analfabetos secundários”. Afinal, talvez este novo culto dos livros, esses que são motivo de estrondosas campanhas no TikTok e noutras plataformas, seja precisamente aquilo que está por trás de um tempo que se caracteriza por um imaginário sem imaginação, e que exige ser compreendido à luz do conceito do ensaísta e poeta alemão Hans Magnus Enzensberger.

Num livro reunindo alguns das suas mais célebres intervenções críticas, a que deu o título de Mediocridade e Loucura (livro que apesar de ser frequentemente citado na nossa imprensa nunca mereceu uma edição portuguesa), Enzensberger diagnostica a morte da literatura, e aponta o dedo aos responsáveis: os “analfabetos secundários”. Trata-se de uma forma de filistinismo cultural, e embora esta seja uma denúncia que hoje se nos impõem, esta tem um longo historial, remontando ao início do século I da nossa era, quando Séneca expressou o seu desprezo pelos falsos letrados: “Quantos não serão os inúmeros livros e bibliotecas cujos proprietários ao longo da sua vida só dificilmente conseguem ler os títulos? Uma profusão de livros preenche o espírito, mas não o enriquece (…). Não vejo nisto nem gosto nem solicitude, mas sim uma orgia de literatura. E, quando digo literatura, estou a ser injusto pois o desejo pelas letras não tem aqui qualquer lugar: estas belas colecções são formadas apenas para serem exibidas. Quantas pessoas desprovidas da mais elementar cultura possuem livros que não são instrumentos de estudo mas que se limitam a ornamentar as suas salas de jantar.”

Enzensberger actualiza esta crítica, e identifica os “analfabetos secundários”, que se desconhecem enquanto tais, e que são todos esses que sabem ler e escrever (embora com erros), mas estão reduzidos à imitação da linguagem dos meios de comunicação de massas, constituindo uma espécie de plebe audiovisual. Basta ver que, no uso do português, até no que respeita ao vernáculo, quanto mais os livros circulam, com todos esses programas de apoio e promoção da leitura, com toda essa “literatura” que nos fazem entrar pelos olhos e pelos ouvidos, essas palavras vazias e estéreis da publicidade, todo esse regime ululante é tudo o que fica, o que se lê na participação dos portugueses nos debates públicos nos fóruns das redes sociais, palavras vazias que asfixiam a língua, a qual se tornou puramente repetitiva, com um vocabulário cada vez mais exíguo, e que não vibra nem consegue exprimir sensações, experiências ou qualquer nova relação face a este mundo em rápida transformação.

Mas Bobone que, honra lhe seja feita, evidentemente não padece deste vício, embarca assim mesmo nesse optimismo irresponsável e desvitalizado. De resto, uma das críticas mais contundentes que se pode fazer a um ensaio que, de modo geral, não deixa de estar repleto de análises esclarecedoras e oportunas, sendo um exemplo do que de melhor se tem escrito entre nós sobre os aspectos menos conhecidos e mais intrigantes da vida dos livros, é o foco excessivo nos elementos exteriores desta vida, nas questões exorbitantes, nos vícios que se prendem mais com a aquisição dos livros enquanto objectos e menos com a aquisição do saber e da herança que estes carregam. Se Bobone privilegia uma certa visão desapiedada das coisas, o seu ensaio funciona como um guia prática e valoriza aspectos mais pragmáticos do tráfico dos livros, e se elogia a argúcia negocial e os cuidados na transmissão de um rigor arquivista, a certa altura fica-nos a sensação de que se perde o encanto e o fascínio em volta desta “religião”, que aqui aparece reduzida a uma liturgia em que os rituais parecem ter absorvido toda a complexidade de uma busca por um significado e um culto mais profundo.

Muitas vezes, somos seduzidos para aspectos curiosidades superficiais, esses aspectos de identificação de uma certa tribo de figuras que preservam uma ortodoxia da aprência, dominam o jargão, sabem falar em detalhe de aspectos que interessam muito aos coleccionadores, a esses caçadores de tesouros que muitas vezes se estão nas tintas para o conteúdo dos livros, mas andam atrás de um qualquer santo graal para abrilhantar as suas sessões como bibliófilo pavão. Sem extrair nem se deixar absorver por questões mais relevantes para a forma como tem evoluído a nossa relação com os livros no que toca a receber lições do espírito de todos os tempos, Bobone aproxima-se muitas vezes de uma espécie de moralidade glorificada de mercearia e contabilidade. E é ao passar ao lado dos aspectos mais subjectivos e interiores da experiência do leitor, e da “devoção febril com que, a partir do momento em que as palavras se gravaram na matéria, o Homem se dedicou a recolher livros”, que Bobone parece colocar ao mesmo nível o coleccionismo e essas figuras excêntricas que arriscam ficar de tal modo hipnotizadas pela letra de forma que existem como personagens de romance. Para Bobone, no entanto, não há cá Quixotes nem Bovarys. Importa pouco as paixões que levam alguns a passar muito mal, a abdicarem de todos os luxos para alimentar esse misterioso vício, aqui o importa mais é as maneiras mais ostentosas de compor uma estante.

Isto não implica que o livro não seja extremamente cativante, um relato que nos absorve do princípio ao fim, e nos presenteie com nacos de prosa que dá gosto mastigar, como este: “Todos os livreiros têm histórias bizarras sobre compras de bibliotecas. Quando se sai da livraria em direcção a uma casa, nunca se sabe o que se vai encontrar. Tanto nos podemos deparar com a tebaida de um eremita que se alimenta de papel, como com um jardim zoológico em que as páginas dos livros são o papel higiénico de gatos e periquitos.” Mas, de facto, o nível desta análise alcança um inusitado brilhantismo nos raros momentos em que Bobone vai mais longe na sua análise das motivações daqueles que orbitam em torno dos livros e das livrarias, e talvez o ponto mais alto do ensaio seja o momento em que o autor recorre à lendária Shakespeare & Co., de Sylvia Beach, para ilustrar essa ideia da livraria como uma estação de serviço ou uma escruzilhada decisiva onde os escritores se cruzam e algo do seu génio assume um efeito contagiante. “Muitos dos leitores carregam consigo um impulso para a escrita que também é consolado pela frequência dos ambientes literários (…). É da noção, talvez um pouco cruel, de que em muitos dos leitores há um aspirante a escritor que nasce a força de livrarias como a Shakespeare & Co. A quantidade de escritores frustrados que se consolam com os sinais exteriores da literatura, que se sentem confirmados na sua vocação por frequentarem os mesmos espaços dos escritores consagrados e a quem os ambientes literários fazem as vezes das páginas que não escreveram é, em parte, resultado da fascinante galeria de famosos que passaram pela Shakespeare & Co. A ideia de que a congenialidade se confirma pela passagem pelos mesmos locais ou pela partilha de gostos é, para muita gente, uma migalha suficiente no alimento literário (…). No entanto, [esta livraria] tornou-se também um ponto de partida para o espectáculo literário que rodeia os livros sem lhes tocar. A multiplicação de festivais e de sessões de leitura com escritores parte do fenómeno Shakespeare & Co. E do modo como esta transformou o livro num subsidiário do ambiente ou do estilo da livraria.”

Aqui, como é evidente, Bobone acaba por colocar algum veneno, ou pelo menos um cabelo, na empada do seu optimismo inicial. Talvez porque é muito difícil ignorar o facto de o livro e a leitura se terem tornado meros pretextos para “um desvio permanente dos dinheiros públicos para iniciativas que são da ordem do circunstancial, do espectáculo, do foguetório, das celebrações e comemorações”, como alertava recentemente o historiador Diogo Ramada Curto numa das suas crónicas. “Em suma, políticas áulicas e de circunstância que chutam para canto as instituições de cultura e desclassificam quem nelas trabalha.” Por outro lado, e a par dessas invasões bárbaras dos falsos letrados, que se limitam a brandir os livros como objectos totémicos, como moralistas de pacotilha que, à primeira oportunidade, erguem a Bíblia como quem levanta uma pedra, e que são incapazes de extrair dela algum princípio orientador e generoso, temos estes alfarrabistas e livreiros que se dedicam ao tráfico de livros como se fossem também eles sacerdotes de um culto apóstata, assumindo uma postura intransigente de autênticos déspotas, e pretendendo monopolizar qualquer discurso que se faça sobre os livros, a ponto de considerarem o menor reparo uma ofensa mortal. Nem que fosse só pelo facto de ter vindo causar alguma indisposição a estes ortodoxos da heresia já este livro mereceria ser saudado, por não pedir meças a estes tabeliães que ajudam igualmente a sepultar o ânimo literário, sempre reunidos na sua confederação dos burros, sempre retirando ao presente a hipótese de inscrever novos signos nessa longa tradição, e isto porque, sendo a maioria deles escritores falhados ou artistas de tom menor, não passam de uns vaidosos inconcebíveis e ressentidos, “mentecaptos desses que , se Honoré de Balzac fosse vivo, teriam censurado nele, como um crime imperdoável, uma vírgula mal posta ou um adjectivo mal empregue” (Roberto Arlt).