Em que dia morreu Franco?

Oficialmente Franco morreu às 5h25 da madrugada do dia 20 de novembro de 1975 mas sempre existiram as suspeitas de que o falecimento se produziu no dia anterior

Por Manuel Pereira Ramos, jornalista

Franco e Isabel II nunca fizeram boas migas, desde muito cedo começaram as desavenças que sempre giraram à volta da soberania sobre Gibraltar, historicamente reclamada tanto por Espanha como pelo Reino Unido. Em 1954, pouco tempo após a morte de Jorge VI, a nova rainha empreendeu uma longa viagem aos territórios sob domínio britânico, um percurso que incluiu uma paragem em ‘The Rock’, o Caudillo interpretou essa visita como uma provocação e, ao ter conhecimento de que ela se iria efetuar, mandou fechar o Consulado espanhol que então existia e que nunca mais se voltou a abrir. Com essa decisão, Franco quis evitar que um diplomático espanhol estivesse presente na cerimónia de receção à rainha e ele próprio escreveu no jornal do regime, Arriba, e oculto detrás dum pseudónimo, um artigo criticando a decisão real. Anos mais tarde e já depois de instaurada a democracia, Gibraltar voltou a ser a causa de um sério problema quando se soube que aí estava prevista o início da viagem de lua de mel do Príncipe Carlos e Lady Di. O Rei Juan Carlos e a Rainha Sofia tinham tudo preparado para assistir ao casamento, mas a notícia indignou-os tanto que decidiram declinar o convite, medida extrema que ainda procuraram evitar sugerindo que o Britannia atracasse no porto espanhol que as autoridades inglesas entendessem como mais conveniente, mas, nem essa proposta logrou evitar o incidente que Isabel II encerrou com uma frase histórica que a ela se atribui: «O filho é meu, o barco é meu e o rochedo também é meu». Com o tempo as duas casas reais foram-se aproximando, mas Gibraltar sempre continuou a ser o veneno nas relações entre ambos os países. 

Para cada ser humano está reservada uma forma de encarar o último capítulo da sua existência e, neste aspeto, houve muita diferença entre a que lhe coube à Monarca britânica e ao Chefe de Estado espanhol, ela disse adeus à vida duma maneira tranquila, serena, em paz e sem incomodar ninguém, ele, ao contrário, teve de padecer longas e penosas doenças que se sabia que não tinham remédio numa agonia prolongada artificialmente por alguns dos que estavam à sua volta e que, conscientes de que com a morte de Franco morria também o franquismo de que eram beneficiários, procuravam ganhar tempo e adiar todo o possível o desenlace inevitável. Em realidade, o regime teve o seu princípio do fim dois antes da morte do Generalíssimo no dia em que o então presidente do Governo, Carrero Blanco, foi vítima de um atentado da ETA que sabia que acabando com a vida do Almirante punha fim à programada linha sucessória do regime.

Ao golpe moral que para Franco representou o trágico desaparecimento do seu homem de confiança juntou-se o progressivo deterioro do seu estado de saúde que se foi agravando de tal forma que em pouco mais de duas semanas teve de ser submetido a três desesperadas intervenções cirúrgicas, a primeira numa improvisada sala de operações no Palácio do Pardo e as outras no hospital La Paz dirigidas pelo genro, o Dr. Cristóbal Martinez Bordiu que era cardiologista e cirurgião e que foi quem mais exigiu aos seus colegas médicos que fizessem, fosse o que fosse, para que o sogro se pudesse com vida o mais tempo possível. Anos mais tarde surgiram em público umas pouco dignificantes fotografias do agonizante Franco ligado a mil tubos e que sempre se suspeitou que teriam sido feitas e vendidas pelo próprio genro.

Oficialmente Franco morreu às 5h25 da madrugada do dia 20 de novembro de 1975 mas sempre existiram as suspeitas de que o falecimento se produziu no dia anterior, isso é o que garantem os especialistas que fizeram o embalsamamento e o Dr. Alfonso Cabeza, antigo presidente do Atlético de Madrid e que era, na altura, diretor do hospital, «não morreu no dia 20, foi a 19, necessitavam cinco ou seis horas para preparar tudo» embora também exista outra versão segundo a qual a ideia foi a de fazer coincidir a data da morte de Franco com a de, anos atrás, de José António Primo de Rivera, os dois permaneceram enterrados, durante mais de quatro décadas, um ao lado do outro, no Vale dos Caídos até à recente exumação dos restos do Caudillo, serão os historiadores os que terão de desvendar o mistério sobre o momento em que Franco deixou de existir mas tudo indica que não foi o que, de forma oficial, foi comunicado. Os dias prévios aos do falecimento foram de grande expectativa em todo o país estava comocionado à espera do que iria acontecer, diz o Dr. Cabeza que «na cafeteria de La Paz, que estava aberta toda a noite, juntavam-se dezenas de jornalistas, prostitutas e noctâmbulos que lá iam beber o último copo e saber todas as novidades».

Nesse 20 de novembro, de manhã, o primeiro-ministro Arias Navarro, com um ar tenebroso agravado por a televisão ser ainda a branco e preto, anunciou ao país o que já se esperava: «Españoles, Franco ha muerto» e não resisto a contar o vivido depois disso por mim e a minha família. Durante o dia os órgãos de comunicação foram avisando que o corpo do finado seria levado para o Palácio do Pardo exigindo aos cidadãos que se abstivessem de aí se aproximarem já que essas seriam horas reservadas à intimidade da família e dos amigos mais próximos. 

Em Madrid estávamos eu, a minha mulher Manuela e os meus cunhados Queta e Tó, a todos nos entrou a tentação de desobedecer às ordens e ir até lá apenas com a curiosidade de sentir o ambiente que se vivia numa data tão histórica. Chegámos, uns legionários indicaram onde devíamos estacionar, obrigaram-nos a sair do carro a toda a pressa e a seguir o caminho que suspeitávamos onde ia dar e onde não queríamos ir, nenhum de nós estava vestido com o mínimo rigor exigido por um velório e menos ainda a Queta que levava um casaco mais encarnado do que as camisolas do Benfica. Mas os militares não achavam que isso fosse um problema, não nos deixavam voltar para trás e insistiam «para a frente, para a frente» até que chegámos à pequena capela do Palácio, aí estava Franco morto vestido com traje de gala militar escoltado por dois jovens soldados, não demos porque lá estivesse nenhum familiar e só o acompanhavam umas poucas pessoas dispersas pelos bancos. Certamente devido ao nervosismo do momento que estávamos a viver, o Tó tropeçou num dos tapetes e por pouco não aterrou de cabeça contra a urna do ilustre finado o que teria sido bastante embaraçoso. Terminada a inesperada e para nós inolvidável visita, regressámos a Madrid passando pelo Palácio Real onde já se tinha formada uma longa fila de espanhóis vindos de todo o país para poderem homenagear e ver pela última vez o corpo do homem que durante quarenta anos os tinha governado. Todos eles tiveram de aguentar de pé horas e horas até chegar a sua vez de inclinar a cabeça, nada a ver com o privilégio único de sem o pedirem nem terem de esperar um minuto, antes tinham gozado quatro irreverentes ‘portugas’.