Francisca de Magalhães Barros. “Todos os dias são de luta!”

A ativista esteve hoje esteve na Assembleia da República para defender que o crime de violação seja público.

Quando e como surgiu o seu interesse pela temática dos direitos humanos?
Posso dizer que começou aos 16 anos, quando fui voluntária nos bombeiros e apanhei o meu primeiro choque ao ver um idoso a ser largado num hospital. Para além disso, numa cena de atropelamento, uma mulher disse que era familiar de uma criança apenas para apanhar boleia.

Aborda os mais variados temas, mas foca-se mais nos direitos das mulheres e das crianças. Isto acontece porque constituem a população menos protegida, digamos assim?
Foi algo pessoal, do pessoal não consegui olhar apenas para mim, morriam mulheres todos os meses, com os filhos a ver. Este ano está a ser um ano negro. As medidas continuam as mesmas e os magistrados com a mesma mentalidade.

Para além delas, tem explorado a questão dos maus-tratos e da negligência de que muitos idosos são vítimas. Diria que a chamada terceira idade é valorizada ou desvalorizada em Portugal?
Não a considero de todo valorizada. Considero-a um fardo. Se dar valor e descanso aos nossos idosos é presenciar situações de negligência extrema onde todos os funcionários dessa instituição não são imediatamente demitidos e responsabilizados…aqui está a minha resposta. Acredito que haja quem se preocupe. No entanto quem devia valorizar tem mais em que pensar.

Um dos casos mais recentes que publicou na sua página tem a ver com as circunstâncias em que Florinda Queiroz, uma idosa de 86 anos, se encontrava num lar da Santa Casa da Misericórdia, em Boliqueime. O que sentiu quando teve conhecimento desta situação?
Senti-me de mãos atadas perante tamanha impunidade.

Tem conhecimento de mais casos semelhantes que estejam a ocorrer/tenham ocorrido no nosso país?
Denuncio todos aqueles de que tenho conhecimento!

O que deve ser feito, a nível legislativo, para que as instituições, assim como as restantes vertentes da sociedade, olhem para os idosos com preocupação e zelem pelo seu bem-estar?
Responsabilidade, fiscalização sem aviso e as pessoas não serem postas nos cargos por afinidades políticas mas pelas suas competências humanas.

Relativamente às leis e ao seu cumprimento e incumprimento, o que falha em relação às mulheres? Por exemplo, fala bastante da violência doméstica: para além desse flagelo, existem outros fortemente associados ao género feminino que a preocupam?
Claro. Quando temos estatísticas de uma mulher violada por dia e vemos que, passados 6 meses, estas deixam de ser consideradas vítimas no Código Penal… Isto deixa-me completamente revoltada. O prazo tem de ser alargado: as sobreviventes apoiadas e a sua voz ouvida. É dos crimes mais repugnantes que existem na nossa sociedade. Mata-nos por dentro, antes de nos matarem por homicídio: é um homicídio de alma e temos de continuar a viver.

E o que é que a aflige mais em relação às crianças e aos jovens menores de idade?
A pedofilia, o abuso sexual de menores e as penas suspensas. Ainda agora um indivíduo foi posto em liberdade com milhares de imagens de bebés a ser abusados sexualmente. Em que país estamos?

Juntamente com o Nascer do SOL e o i, deu a conhecer o caso do jovem Simão Correia, de 23 anos, que necessita de um transplante de medula óssea após ter sido diagnosticado com leucemia. No início do mês, ajudou Luís Miguel Cardoso, um português de 52 anos que sofreu um aneurisma quando estava de férias nos EUA e já angariou mais de 100 mil euros para pagar os cuidados de saúde que recebeu naquele país. Que casos relativos a doenças a marcaram mais até hoje?
Todos. O do Luís Miguel por ter tido a mesma doença que eu (um aneurisma cerebral), mas tantos outros: o do Simão, um jovem de 23 anos, sendo que todos nós podemos ser dadores de medula, e assim salvar vidas; o da Yara, o da Andreia e do Mário. E o do Dinis que apenas precisava de uma cadeira adaptada.

Outra das campanhas às quais se tem dedicado mais recentemente, em parceria com a UNICEF, tem a ver com a tentativa de "aliviar" a fome severa que se vive no Corno de África. Em que ponto se encontra a mesma?
Depois de ter contactado artistas de todas as áreas da cultura, virei-me para os atletas olímpicos e de 100 euros, passámos para 10 mil e 800 euros de um target de 15 mil euros. Todos juntos fazemos a diferença!

Hoje esteve na Assembleia da República, juntamente com a Presidente do Instituto do Apoio à Criança, Dulce Rocha, em representação dos restantes peticionários (Manuela Ramalho Eanes, Rui Pereira, António Garcia Pereira, Isabel Aguiar Branco) e de mais 106 mil pessoas para defender que o crime de violação seja público. Que expectativas tinha?
Prefiro não criar expectativas! Todos os dias são de luta!

Foi ouvida por volta das 9 horas, sendo que a audição teve a duração de uma hora. O que pode adiantar ao Nascer do SOL acerca dos objetivos que delineou?
Trabalhar em conjunto para fornecer mais direitos e condições para as mulheres sobreviventes de violação, obviamente! Hoje em dia estão no submundo da justiça portuguesa. Não existem! 

Qual foi o resultado da sua intervenção?
O desfecho foi positivo: mesmo que não seja crime público, iremos arranjar voz e soluções para estas sobreviventes. O mais importante é trabalharmos em conjunto! Sei que, juntamente com 106 mil pessoas, a minha equipa e personalidades políticas, as sobreviventes de violação vão ser ouvidas e ajudadas! Irei sempre lutar pelos direitos humanos!

Quais são as personalidades públicas que mais a têm apoiado?
Sei que será difícil de mencionar todos, mas posso dizer que o Nuno Markl é incansável. Tal como a Marisa Liz, a Carolina Deslandes, Melânia Gomes, Sofia Arruda, Rita Cruz e Catarina Furtado.

Quem gostaria que se juntasse a si nas lutas que trava e ainda não o fez?
Se não o fez é porque não é suposto fazer.

Existe alguma personalidade que a tenha desiludido no decorrer dos apelos que faz e ajudas que presta?
Prefiro não comentar.

Já foi ameaçada por algum membro da classe política?
Não por membros, mas por pessoas de extrema-direita.

 

Leia abaixo o discurso da ativista na íntegra:

Excelentíssimos senhoras e senhores deputados,

Acham mesmo que somos mulheres autónomas? 

Quando criei esta petição, tinha presente na memória a quantidade de violadores que existem e violações que ocorrem, onde a prejudicada é a sobrevivente e o beneficiário é o violador. Já apresentei, nesta assembleia, juntamente com outros 4 peticionários, uma petição que tem como objetivo melhorar a vida de milhares de crianças que assistiam, sem proteção, aos gritos, e à violência contra as suas mães, sem serem tidos em consideração. No entanto, num dos crimes mais horrendos que pode existir contra a mulher, passados seis meses, elas são tratadas como lixo. 
Houve violadores que ficaram à solta porque um grupo de mulheres só apresentou queixa 6 meses depois! Mas não. Elas simplesmente deixam de existir no código penal. Uma mulher violada, que ainda não se refez do trauma, não pode apresentar queixa, simplesmente porque não existem técnicas e meios suficientes para garantir a sua segurança e a segurança de todas as outras mulheres. 
E, assim sucessivamente, violador atrás de violador vão enchendo as nossas ruas, até termos uma mulher violada por dia. Não existem gabinetes de atendimento suficientes de apoio às vítimas de violação, sendo que só existem dois, um em Lisboa e outro no Porto, podemos então dizer que as outras mulheres violadas têm a obrigação de ter dinheiro para anos consecutivos de terapia, para além de que ao não respeitarmos, mais uma vez, as convenções que assinámos com o Conselho da Europa, as mulheres ficam entregues a ninguém ou ao que o Ministério Público assim entender.
Ou seja, o que entende em Lisboa, não entende em Faro. No entanto, parece mais importante dizer que se defende a autonomia e liberdade da mulher que acabou de ser violada, sem lhe apresentar soluções, para que possa recuperar do trauma, e tratá-la como lixo 6 meses depois, do que – em caso de o crime se tornar público e como tão bem todos sabemos, só fala quem quer -, oferecermos mais voz e mais apoio a todas estas mulheres. 
106 mil pessoas concordam com esta alteração, personalidades das mais diversas esferas concordam com esta alteração. Personalidades ligadas à política da esquerda à direita sem tomar partidos num assunto que diz respeito aos direitos humanos de todas as mulheres, concordam com esta alteração. A UMAR, o IAC e a APAV (dentro de certos parâmetros) concordam com estas alterações. Mulheres que foram, de facto, violadas e prestaram o seu depoimento público na televisão pedem esta alteração. Recebi dezenas de mensagens de mulheres a dizer que a sua vida podia ter sido diferente se não tivessem sucumbido ao silêncio e para, por favor, falar em nome de todas elas. Também elas pedem esta alteração. 
Sabemos, então, que se os violadores não estão a ser perseguidos, se estas mulheres não têm voz, se temos penas suspensas atrás de penas suspensas é porque este crime está silenciado também por quem não quer fazer estas  alterações. Como o aumento do prazo de queixa. A recolha do esperma e o seu congelamento para que se a sobrevivente mudar de ideias possa apresentar queixa se bem o entender. Criar mais gabinetes de apoio para que as suas necessidades mentais e físicas sejam atendidas. Por isto e por muito mais do que 106 mil pessoas, estou aqui hoje. Pelos direitos humanos das mulheres violadas do nosso país! E não será hoje que irei desistir de o fazer!