Annie Ernaux vence o prémio Nobel da Literatura 2022

A escritora francesa que se descreveu como “uma etnóloga de si mesma” torna-se a 17ª mulher entre os 119 autores laureados com o Nobel da Literatura.

Ninguém tem de apreciar hipismo para ir às corridas de cavalos. Ora, o prémio Nobel da literatura não é outra coisa senão aquela altura do ano em que, mesmo quem não tem o menor interesse em cavalos, pode apostar algumas fichas nessa espécie de casino em que tudo se oferece ao ânimo especulativo, e, assim, mesmo quem não lê grande coisa, sente-se encorajado a fazê-lo, tendo por referência as listas das casas de apostas, e beneficiando ainda do regime geral de agiotagem da vida literária. E, para manter o nível de entusiasmo em volta desta ilusão anual, é preciso que a envolver este sorteio seja mantido tanto o segredo como uma boa dose de arbitrariedade, a qual é garantida pelos opacos critérios da, em tempos prestigiada, Academia Sueca, que, no resto ano, é devolvida à sua irrelevância. Este ano, o prémio foi entregue à escritora francesa Annie Ernaux, “pela coragem e acuidade clínica com que ela põe a descoberto as raízes, alienações e constrangimentos colectivos da memória pessoal”.

Estamos aqui, aparentemente, no âmbito da concessão (ou mesmo dissolução) do romance a fórmulas narrativas mais ou menos astuciosas, nesse artifício em que se vai abrindo mão daquele aparelho do romancista para fabricar a ilusão do real, amplificando em seu lugar o regime da “reportagem universal”, algo que Milan Kundera denunciou no seu ensaio “Os Testamentos Traídos”, notando que a maior parte da produção romanesca de hoje é feita de romances fora da história do romance: confissões romanceadas, reportagens romanceadas, ajustes de contas romanceados, indiscrições romanceadas, denúncias romanceadas, lições políticas romanceadas, agonias do marido romanceadas, agonias do pai romanceadas, agonias da mãe romanceadas, desflorações romanceadas, partos romanceados, romances ad infinitum, até ao fim do tempo”. Talvez a diferença seja o talento de uma autora que provou ter uma habilidade espantosa para desenterrar memórias íntimas e proceder a uma dissecação desses elementos pessoais revelando algo de mais profundo ou abrangente sobre a nossa condição comum e a história que nos diz respeito a todos. “É como se as recordações individuais emitissem ‘sinais específicos’ que as ligam aos ‘marcadores de época’ e à experiência colectiva”, escreve Pedro Mexia num texto a propósito do livro “Os Anos”. “Como se fôssemos, mas não possuíssemos, a nossa circunstância. Isso explica, aliás, a epígrafe de Ortega y Gasset: ‘A única história que temos é a nossa, e ela não nos pertence.’”

Assim, há uma forte estratégia procedimental na obra desta autora nascida na Normandia, em 1940, e que lidou desde sempre com a experiência de classe e de género, como vinca o presidente do júri do Nobel, recordando que Ernaux se descrevia como “uma etnóloga de si mesma”. Ora, é a ambição estética que separa esta autora de tantos outros, incluindo muitos epígonos que o seu próprio sucesso foi gerando, os quais se reclamam actualmente dessa tradição de equívocos a que se tem chamado auto-ficção. O aspecto que faz de Ernaux uma memorialista atípica é a carga de suspeição com que aborda as suas próprias recordações, e como o seu exame acaba, afinal, por corresponder a um impulso de corroer o que é rígido, de minar sistemas comummente aceites, abrir brechas para mergulhar mais fundo, impor um método indisciplinado e, por isso, verdadeiramente experimental, que permite arrastar até à página questões incertas ou dolorosas, e que desse modo contribui para enfrentar essa “metafísica concreta” em volta da qual se tecem as melhores aproximações romanescas, que assim se distinguem daquelas que se parecem sempre umas com as outas e que são, segundo Kundera, “perfeitamente consumíveis de manhã, perfeitamente descartáveis à noite”. No fundo, Ernaux não está tão longe assim de Kundera na forma como busca avidamente um olhar lúcido e desenganado sobre a realidade, e como, seguindo a célebre divisa de Balzac, está de tal modo implicada nos seus livros que parece acreditar que “o romance tem de fazer concorrência ao registo civil”. E nem é só neste aspecto que estes dois autores se aproximam, mas também no desejo de exonerar o lirismo e o discurso lírico, essa tendência para falsificar os factos ou compô-los de modo a ressalvar um efeito nostálgico.

 Veja-se a forma como Ernaux descreve a língua que se falava naquela província onde cresceu, sem casa de banho, sem frigorífico, sem nunca ter ido a Paris… “A língua, um francês dilacerado, misturado com patoá, era indissociável das vozes possantes e vigorosas, dos corpos apertados nos fatos de trabalho e nódoas negras, das casas com quintal, do latido dos cães durante a tarde e do silêncio antes das discussões, tal como as regras da gramática e o francês correto estavam associados às entoações neutras e às mãos brancas da mestre amada na escola. Uma língua sem louvores nem lisonjas, que continha em si a chuva forte, as praias de seixos cinzentos sob os despenhadeiros das falésias, os baldes da noite deitados no estrume eo vinho dos trabalhadores braçais; era uma língua que veiculava crenças e prescrições: observar a lua que decide a hora do nascimento, a apanha do alho-francês e as chatices com as lombrigas das crianças”…

O seu primeiro livro “Les Armoires vides” (1974), andava já à volta da sua infância na Normandia, como se tivesse relutância em deixar para trás o duro contexto da classe trabalhadora, tendo sido a primeira a seguir estudos superiores numa família de operários e pequenos comerciantes. Já nesse dava conta de um aborto clandestino a que se submeteu uns tempos antes deste procedimento ter sido legalizado em França. E se os seus primeiros livros não dispensavam o véu de alguns desvios ficcionais, a partir da década seguinte, não teve mais qualquer pejo em assumir plenamente o carácter autobiográfico dos seus escritos, abordando o seu casamento fracassado, o declínio de saúde da mãe a quem foi diagnosticada Alzheimer, a sua própria experiência com o cancro, além de uma série de relações e até traições que viveu já depois da meia-idade. Os seus livros desembaraçam-se da técnica da grande composição, segue entre fragmentos, numa prosa que tem sempre uma vertigem própria de quem arrepia caminho, de quem tanto escreve na primeira pessoa como, abruptamente, passa a referir-se a “ela” ou à miúda daquele período ou daquele lugar, impondo uma distância entre aquela que escreve e aquela que se lembra de ter sido.

Por vezes, Ernaux parece falar como se estivesse a passar revista a um álbum de fotografias, e não deixa de assinalar tanto os momentos em que sente estar a perder o pé no enredo como aqueles em que as suas memórias parecem eclipsar-se. E este é outro aspeto em que se aproxima de Kundera, quando este nos diz que, na verdade, “só conhecemos a realidade no tempo passado”. “Não a conhecemos tal como é no momento presente, no momento em que ela se passa, em que ela é. Ora o momento presente não se assemelha à sua recordação. A recordação não é a negação do esquecimento. A recordação é uma forma do esquecimento”, vinca o romancista checo. Ernaux parece ser atraída por esta dilação temporal, pelo efeito que tem o tempo sobre as experiências como foram vividas e o esquecimento que significa lidar com elas enquanto memórias, a partir do momento em que estão sujeitas ao trabalho de corrosão e revisão, mas também de criação de uma nova experiência. Em grande medida, isto cruza-se hoje com a relação traumática que têm tantas pessoas com algo que lhes aconteceu e que continua a ser difícil relatarem a si mesmas. De resto, um exercício a que Ernaux se entrega no romance “O Acontecimento” – originalmente publicado em 2000, mas que só este ano foi traduzido entre nós –, e que passa por reler passagens do seu antigo diário, de quando tinha 23 anos e se viu na necessidade de fazer o tal aborto clandestino.

Volvidas mais de três décadas, dá-se conta então da série de eufemismos a que recorre, de tudo aquilo que não chega explicitamente nomeado, e reconhece assim como a narrativa que se desprende daquelas páginas é, em muitos aspetos, moldada por pressões externas, de que as suas experiências mais íntimas, afinal, não lhe pertencem verdadeiramente. É neste ponto que o feminismo de Ernaux consegue atuar, não de forma doutrinária, não na tentativa de representar uma certa atitude de denúncia, mas no seu desejo de apreender este ou aquele aspeto da realidade que até então lhe escapou. Assim, ela refere-se frequentemente a Simone de Beauvoir que, na obra “Segundo Sexo”, procurou demonstrar a forma como as escolhas e decisões das mulheres e até os seus pensamentos são em grande medida condicionados por pressões económicas e sociais, as quais impõem uma espécie de corredor ao longo do qual a vida de cada um de nós apenas decorre.

“Ser mulher não é uma condição de nascença, mas algo em que nos tornamos”, escreveu Beauvoir. E Madeleine Schwartz, num penetrante ensaio crítico de há dois anos sobre a obra da autora agora galardoada com o prémio Nobel nas páginas da The New Yorker, defende que se Beauvoir descreve este processo de se tornar mulher na teoria, os romances de Ernaux traduzem-no através de experiências, identificam esse modo de relação dolorosa, essa forma de imersão até ao escândalo, nos detalhes vívidos e até viscerais, que vão desde a forma como uma mulher se alimenta, a relação com a comida, essa espécie de purga e controlo, “um repertório de hábitos, uma soma de gestos formados por infâncias, até que tudo se perca no esquecimento: comer fazendo barulho e com a boca aberta deixando ver a metamorfose progressiva dos alimentos, limpar os lábios com um bocado de pão, rapar o prato de tal maneira que se poderia arrumá-lo sem ser preciso lavar, bater com a colher no fundo da tigela, espreguiçar-se no final do jantar. Lavar apenas o rosto todos os dias, e o resto conforme a sujidade, as mãos e os braços depois do trabalho, as pernas e os joelhos das crianças nas noites de verão, deixando a lavagem de alto a baixo para os dias de festa, pegar nas coisas com muita força, bater com as portas. Fazer tudo com modos bruscos, quer se trate de agarrar um coelho pelas orelhas, dar um beijo, ou pegar uma criança ao colo”, lê-se numa passagem de “Os Anos”.

Seis décadas depois, com mais de vinte livros publicados, Ernaux escavou o seu próprio corredor, e os contornos da história que nos vem contando não se alteraram muito, como se se orientasse por uma obsessão de fazer justiça ao lugar de onde veio, as condições que viu serem impostas àquelas pessoas, aos seus pais, dois merceeiros, vingar-se da sua vergonha de classe, e ajustar contas consigo mesma, com todo o sucesso que estes livros lhe trouxeram. Por isso há um certo desespero nas páginas que escreve, um desejo de ser extremamente fiel aos detalhes, de representar de forma o mais minuciosa e escrupulosa possível as coisas que viveu, talvez porque receia que as suas memórias possam não ser outra coisa senão uma forma de organizar o esquecimento. Como se lê em “Une Femme”, livro de 1987, a sua mãe “conhecia todas os truques domésticos que ajudavam a aliviar a tensão da pobreza. Esta sabedoria… morre com a minha geração. Eu não passo do arquivista”, escreve Ernaux.

Talvez seja um juízo demasiado duro, sobretudo agora que se Macron garante que o tempo da abundância acabou. Talvez aquela mesma sabedoria desperte de novo para ajudar a aliviar a pressão perante a concatenação de crises que está hoje sobre nós. E talvez o imenso cuidado desta arquivista se revele uma força de vinculação presciente, impondo-se a sua obra como uma barragem frente ao tempo, articulando a necessidade de se opor à perda da realidade fugidia do presente. Assim, aluna brilhante que, numa altura em que trabalhava numa dissertação “sobre a mulher no surrealismo”, e estava empenhada em concluir o curso de pois construir um percurso de intelectual e eventualmente de escritora, realizou tudo isso sem trair as suas origens e até um certo sentido de revolta. E se há uma passagem que representa enfaticamente esta noção ela surge-nos no obra já citada, no período em que relembra os anos da II Guerra, contando-nos do que fez uma camponesa quando “os Boches [estavam] em fuga a atravessar o Sena em Caudebec em cima de cavalos exaustos/ a camponesa que largou um grande peido num compartimento do comboio que ia cheio de Alemães e proclamou alto e bom som para toda a gente ouvir ‘ se não vão perceber, pelo menos vão sentir o cheiro’”.