O homem que desenhava com agulhas

Mais do que desenhar, Edward Gorey criou um universo muito próprio. A sua arte concilia elementos contraditórios, como a inocência e a perversidade, o cómico e o macabro. 

E dward Gorey era, sem qualuer dúvida, um homem peculiar. Tinha pouco cabelo e uma barba grisalha que encaixaria de forma muito convincente na personagem de um faroleiro resmungão. Adorava ler policiais e ver anúncios de televisão mas podia ao mesmo tempo ser imensamente erudito nas suas preferências. Por exemplo, era louco por música clássica, e em especial por Mozart. Só de Bach, a sua coleção contava qualquer coisa como 500 cds.

Estes e outros detalhes são revelados na biografia The Strange Case of Edward Gorey, um livro elegante de capa dura preta e lombada de tecido em que o seu amigo Alexander Theroux explora as contradições desta personalidade impossível de catalogar. «Era um homem de extremos espantosos», resume Theroux, que em seguida se interroga como era possível que Gorey nunca viajasse, «quando era facilmente uma das pessoas mais curiosas do planeta»; que tivesse assistido a todas as 23 temporadas do New York City Ballet de 1956 a 1979 sem perder uma única; que vivesse sozinho ao longo de 75 anos, embora escrevesse «livros tão interessados na vida das crianças»; que tivesse lido «praticamente todos os livros que existiram» e ao mesmo tempo fosse um consumidor ávido de televisão; que usasse «casacos de peles genuínos quando era um dos grandes amantes de animais da terra».

Todas estas singularidades ajudam a fazer luz sobre um dos mais originais, enigmáticos e prolíficos ilustradores do século XX. Nascido em Chicago em 1925, Edward St. John Gorey terá sido uma criança excecionalmente precoce, alegando que aos três anos já sabia ler. Estudou Francês em Harvard e depois do curso foi convidado para trabalhar no departamento artístico da Anchor Books, uma nova chancela da editora Doubleday, a desenhar capas, ilustrações e tipos de letras.

Além disso, claro, assinou livros em nome próprio – talvez uma centena. Mas Gorey não se limitava a desenhar: criou um universo muito particular habitado por meninos de antigamente, bicicletas desengonçadas, morcegos, lápides, salas forradas a papel de parede, senhores de cartola, caveiras, gatos, candelabros. Como a sua personalidade, a sua arte consegue conciliar elementos contraditórios, como a inocência e a perversidade, o cómico e o macabro.

«O que mais me atrai é uma ideia expressa por [Paul] Éluard», reconheceu um dia. «Ele tem uma passagem sobre existir um outro mundo, mas que fica neste. E Raymond Queneau disse que o mundo não é o que parece – mas também não é outra coisa. Estas duas ideias são os alicerces da minha abordagem».

O estilo de Gorey é resultado das suas ideias, mas também da sua técnica minuciosa. O livro de Theroux, mais uma vez, revela-se iluminador. Gorey – que, como sabemos, tinha gostos pouco convencionais – passava muito tempo a costurar. E, de facto, os seus desenhos parecem feitos com algo fino e aguçado como uma agulha. Umas vezes picam como alfinetes, outras vezes fazem só comichão – nunca na pele, claro, mas numa zona do cérebro onde só a arte mais autêntica consegue chegar.