Brasil. Centrão ao volante

Lula promete criar pontes com o Centrão ‘não bolsonarista’. Tem Tebet e Ciro do seu lado, já Bolsonaro conta com Moro.

Os caciques que mandam nos bastidores de Brasília vão começando a saltar do barco de Jair Bolsonaro, apontam analistas, apesar dos surpreendentes resultados do Presidente brasileiro na primeira ronda. Na prática, o famoso Centrão – um grupo parlamente informal de deputados, acusados de cultivar proximidade ao poder Executivo e de trocar votos por favores – já conseguiu o que queria, cavalgando a onda do bolsonarismo e ficando com cerca de 47 % dos assentos no Congresso Nacional. Garantindo que o próximo Presidente brasileiro, seja ele quem for, terá de se sentar à mesa com o Centrão para governar.

A dependência de Bolsonaro já vem da altura em que deputados federais e governadores se insurgiam contra a sua gestão da pandemia, exigindo que implementasse confinamentos ou acelerasse a compra de vacinas. Foi aí que o insulto de «genocida» se colou ao Presidente, mas este sobreviveu politicamente graças à atempada intervenção do Centrão. Bolsonaro acabaria até por integrar o Partido Liberal (PL), o maior partido do Centrão, entregando a este grupo parlamentar postos na direção de agências federais ou em empresas estatais.

Aliás, já são apontados custos para isso. Sendo que ainda ainda esta semana a Polícia Federal encontrou evidências de corrupção na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), entregue ao Centrão. 

Um gerente desta empresa pública no Maranhão foi acusado de receber cerca 250 mil reais (quase 50 mil euros), algo suspeito de ser o pagamento por fraudes em concursos públicos, beneficiando em particular a empreiteira Construservice. Esta operação policial serviu para «desarticular o núcleo da organização criminosa composto por servidores públicos que auxiliavam nas fraudes licitatórias e no desvio de recursos», frisou a Polícia Federal em comunicado, que apreendeu o equivalente a 260 mil euros em dinheiro, além de itens de luxo como relógios importados. 

O esquema que bate certo com o modus operandi que o Centrão é acusado de seguir. O Governo de Bolsonaro também não sai do escândalo bem visto dado que, sob pressão deste grupo parlamentar, reservou à Codevasf pelo menos 140 milhões de reais (mais de 27 milhões de euros). Sendo parte de uma grande «turbinada de milhares de milhões de reais em emendas parlamentares», o polémico ‘orçamento secreto’, avançou a Folhapress. Escrevendo que o Presidente brasileiro «sempre negou corrupção em seu Governo», mas que após uma sucessão de escândalos do género «agora adapta o discurso».

‘Deus pecar’

Se há coisa pela qual o Centrão não é conhecido é pela lealdade. E Inácio Lula da Silva sabe bem disso, após ter visto este grupo com o qual negociara tantos anos virar-se contra a sua sucessora, Dilma Rousseff, durante o impeachment. Ainda assim, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) não mostra rancor, querendo criar pontes com a ala «não bolsonarista» do Centrão. 

«A única coisa impossível é Deus pecar», respondeu Lula, questionado sobre o assunto na noite de domingo passado, quando começava a ficar claro que este grupo parlamentar iria dominar o Congresso Nacional.

«O Centrão não é um partido político. É um conjunto de interesses que você lida com eles de acordo com as circunstâncias», salientou Lula. «Quando acabar a eleição, você conversa com cada partido individualmente. Aos 76 anos, arrumei mulher para casar outra vez, por que não vou consertar o Centrão?», rematou o antigo Presidente. Prometendo também contar com a participação de banqueiros e empresários no seu futuro Governo, graças ao seu vice, Geraldo Alckmin, um ‘tucano’ – alcunha da direita brasileira – histórico do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). 

O PT até já abriu conversações nos bastidores com dois dos grandes partidos do Centrão, o Partido Progressista (PP) – onde o próprio Bolsonaro militou, entre 2005 e 2016 – e o Republicanos, avançou o Globo. Deixando o Presidente em alto risco de, durante a campanha para as eleições de 30 de outubro, perder apoio da extensa máquina partidária do Centrão, talvez a única capaz de competir a nível de implantação local com a militância petista.

Até Valdemar Costa Neto, líder do próprio partido de Bolsonaro, tem um longo historial de negociar com o PT. Aliás, foi condenado a sete anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no Mensalão, um escândalo que quase derrubou o Governo de Lula, após se descobrir que o PT estava a comprar votos de deputados do Centrão. Costa Neto «não queimou os navios», avaliou Luiz Carlos Azedo, colunista no Correio Braziliense, notando que o «Centrão sai de fininho da campanha de Bolsonaro», ao mesmo tempo que Lula, que já conta com os votos da maioria dos brasileiros mais pobres, se aproxima das elites. 

Entrentato, Simon Tebet e Ciro Gomes, os candidatos que ficaram em terceiro e quarto lugar na primeira volta, respetivamente, vieram a público apoiar o antigo Presidente, desequilibrando ainda mais a balança. Ciro – que se desdobrara em ataques a Lula, apesar de ter sido ministro deste – lá apelou ao voto, relutantemente, lamentando que a escolha se tenha «afunilado a tal ponto que restem aos brasileiros duas opções, a meu ver, insatisfatórias». Tebet foi mais entusiástica. «Nos últimos quatro anos, o Brasil foi abandonado na fogueira do ódio e das desavenças. A negação atrasou a vacina. A arma ocupou o lugar do livro», declarou a ex-candidata. «Reconheço no candidato Lula o compromisso com a democracia e Constituição, o que desconheço do atual Presidente».

A estes apoios a Lula têm-se somado nomes sonantes, como o antigo Presidente Fernando Henrique Cardoso, vulgo FHC, ou Joaquim Barbosa, um antigo juiz do Supremo Tribunal Federal que fez a vida negra ao PT durante o processo do Mensalão. Talvez seja parco consolo para Bolsonaro ter conseguido recuperar alguns dos seus velhos aliados na segunda volta como Sérgio Moro.

O antigo juiz, cuja decisão de condenar Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro foi anulada pelo STF, considerando que os direitos do arguido não foram respeitados, fora nomeado ministro da Justiça por Bolsonaro, que não teve de enfrentar o dirigente petista nas presidenciais porque este fora preso por Moro. Imediatamente surgiram alegações de conflito de interesses, mas Moro manteve-se no Executivo, até se incompatibilizar com o Presidente, acusando-o publicamente de interferir no trabalho da Polícia Federal, numa altura em que esta investigava os seus filhos.

Mesmo assim, após ser eleito senador pelo União Brasil, Moro veio expressar apoio a Bolsonaro para a segunda volta. «Lula não é uma opção eleitoral, com seu governo marcado pela corrupção da democracia», escreveu o antigo juiz no Twitter. «Contra o projeto de poder do PT, declaro, no segundo turno, o apoio para Bolsonaro».

Já a Transparência Internacional não poupou criticas a Moro. Há anos que esta ONG, que publica o Barômetro Global da Corrupção, «vem documentando e denunciando inúmeros episódios de corrupção no governo Bolsonaro e as vastas evidências de crimes cometidos pelo próprio Presidente da República e seus familiares», lia-se em comunicado. «Associar a luta contra a corrupção ao apoio ao candidato Jair Bolsonaro é prestar imenso desserviço à causa e desvirtuar o que ela fundamentalmente representa».