O único árbitro de Sernano

Mario Maurelli vivia precisamente em Sernano. Como todos os seus vizinhos tinha medo. Os partigiani matavam apenas soldados inimigos; os nazis matavam quem quer que lhes desse na gana. Não tinham nojo de atirar indiscriminadamente sobre mulheres e crianças. Os untermenshen não mereciam sequer um escrúpulo, quanto mais uma nota de piedade. Quando uma porta…

Em Abril de 1944, as forças nazis estacionadas em Itália estavam muito atrapalhadas. A famosa Linha Gustav, que fora erguida para impedir o avanço irreversível dos exércitos dos Aliados viria a rasgar-se por completo em Maio, com a facilidade com que caíra, anos antes, a inexpugnável Linha Maginot, orgulho da França. O fascismo e Mussolini já só suscitavam o ódio dos próprios italianos. Muitos partigiani batiam-se na secura dos socalcos da província de Macerata, procurando manter vivos os restos da sua pequenina aldeia de Sernano. Em grupos, dissolvendo-se na paisagem, batiam os terrenos em busca dos soldados de Hitler que caíam nas suas emboscadas. À noite, em redor das fogueiras, cantavam uma canção que se tornou um hino da resistência: «Stamattina mi sono alzato, o bella ciao, bella ciao/Bella ciao ciao ciao, stamattina mi sono alzato/Ho trovato I’invasor!/A lavorare laggiù in risaia/Sotto il sol che picchia giù!/E tra gli insetti e le zanzare, o bella ciao, bella ciao/Bella ciao ciao ciao, e tra gli insetti e le zanzare/duro lavoro mi tocca far!».

Mario Maurelli vivia precisamente em Sernano. Como todos os seus vizinhos tinha medo. Os partigiani matavam apenas soldados inimigos; os nazis matavam quem quer que lhes desse na gana. Não tinham nojo de atirar indiscriminadamente sobre mulheres e crianças. Os untermenshen não mereciam sequer um escrúpulo, quanto mais uma nota de piedade. Quando uma porta vibrava de murros na madrugada, o mais provável é que fosse a morte que anunciava assim a decisão macabra do destino.

Mario ficou aterrorizado. Sabia que esconder-se não era solução. Deitariam a porta abaixo e procurá-lo-iam por toda a parte até o desfazerem como um trapo. Foi abrir. Deparou com oficial de Wehrmacht com um sorriso muito pouco agressivo. Não vinha detê-lo nem conduzi-lo ao pelourinho da praça principal como tinham feito há poucos dias a Decio Filliponi, seu amigo, abatido na presença de todos os habitantes da aldeia como se fosse um cão. Vinha para falar de futebol. Mario Maurelli tinha sido árbitro antes da guerra. Os nazis precisavam de um árbitro. Ele fora o único que encontraram em Sernano.

Entre a realidade e a lenda a linha é mais estreita do que um fio de sediela. Umberto Nigri fez um documentário sobre La Leggenda di Sarnano. Mario e a sua porta que estremece à força de murros pouco antes do sol nascer estão lá. Do lado da realidade. Do lado da lenda há muito para contar. Na ideia do oficial de Wehrmacht, o objetivo era normalizar o estado quebradiço, ou mesmo depressivo, dos seus soldados. E, na sua cabeça braquicéfala, a solução surgiu em forma de um jogo de futebol. Mario Maurelli não lhe era um nome desconhecido. Como o alemão era apaixonado pelo jogo dos ingleses e sabia que Mario tivera a possibilidade de dirigir jogos internacionais, não hesitou em contactá-lo. Agora era-lhe solicitado (era uma forma muito simpática que a gentalha de Wehrmatch tinha de dizer ordenar) que não fosse apenas o organizador da partida e a arbitrasse como tratasse de arranjar um adversário desde que composto apenas por cidadãos italianos e naturais de Macerata. Para levantar o moral, os alemães preferem esmagar uma nação ou alguém que a represente e não um grupo de maltrapilhos apanhado por aqui e por ali à trouxe-mouxe. Mario sentiu-se envolvido numa camisa de onze varas. Mas, sem estranheza, o simpático oficial que o acordou fora de horas deixou-lhe a impressão de que não valeria a pena contrariar-lhe a vontade. Muito pelo contrário.

No dia 1 de abril de 1944 jogou-se um Itália-Alemanha sem igual nas entranhas da História. Maurelli tinha convencido quem ainda desse valor à sua companhia como ente vivo a apresentar-se num jogo destinado a ser perdido – afinal para servia uma derrota se o objectivo era o de animar os nazis? Um campo de terra batida, rodeado de soldados alemães a separar o público das linhas laterais à conta do pavor infundido por metralhadoras acabadas de polir, uma equipa alemã forte e possante fisicamente perante uns trinca-espinhas italianos cheios de fome e de percevejos e piolhos mas muito orgulhosos do papel que lhes cabia desempenhar. A morte não os assustava. Para dentro, cada um ia cantando: «E se io muoio da partigiano/O bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao/E se io muoio da partigiano/Tu mi devi seppellir». Antes do apito inicial de Mario, tinhaam feito um pacto: «Non si vince e si salva la pelle». Ah! Palavras que o vento leva… Ao intervalo, 1-0, golo de Gratini. Maaurelli desesperou-se: «Ci vuol fare ammazzare?». Lucarini leva as sua palavras a sério e deixa-se ultrapassar por um nazi que restabelece o empate. O resultado satisfaz os alemães. No dia seguinte, o verdadeiro jogo recomeça: entre a vida e a morte. Os partigiani tinham regressado às montanhas com as suas espingardas e fome no ventre.