O Bernardo, o ‘quarto vigor’ ou ‘ucal chocolate’ e o país real

No país real, a casa não tem sofá, o desconforto térmico chama-se frio, o edredão chama-se cobertor e a vaca é um animal quase sagrado, tão raro é o surgimento na mesa de refeições. A saúde conhece-se através das filas do centro de saúde, que começam muito antes do centro abrir, e dentista é algo…

por Francisco Gonçalves

Bernardo (nome fictício) cresceu no seio de uma família de classe média alta, num bairro de classe média alta, da área metropolitana de Lisboa. Foi, desde sempre, um privilegiado – sendo que privilegiado não se refere a ter mais do que merece, mas apenas ao facto de ter mais do que a média tem. Numa sociedade pobre como a nossa, quem vive bem melhor do que a média é privilegiado.

Desde cedo que os temas políticos da moda, como o ambiente e a desigualdade social, motivaram o jovem Bernardo. Aproximou-se, por isso, como muitos dos seus vizinhos e amigos, da extrema esquerda urbana, atraído pelo discurso inflamado e pelas soluções fáceis, decorrentes do desconhecimento da vida e do País real.

A esquerda urbana, ou a esquerda ‘quarto vigor’ ou ‘ucal chocolate’, conhece os melhores restaurantes e pastelarias de Lisboa, o Bairro Alto e as tascas da moda, mas não conhece, exceto através das campanhas eleitorais ou do trabalho das associações, as periferias empobrecidas. Não conhece o país real, os cafés onde não se vende os seus leitinhos de eleição, aos quais desde sempre se habituou.

No país real, a casa não tem sofá, o desconforto térmico chama-se frio, o edredão chama-se cobertor e a vaca é um animal quase sagrado, tão raro é o surgimento na mesa de refeições. A saúde conhece-se através das filas do centro de saúde, que começam muito antes do centro abrir, e dentista é algo que se ouviu falar, mas que não se tem meios para pagar. Escola é pública e, normalmente, má, o bullying faz parte da poesia do quotidiano. O lar ou centro de dia, quando existem são (quase sempre) ilegais.

A realidade em que muito portugueses vivem não faz parte do quotidiano do Bernardo e apenas aparece, de tempo em tempo, na televisão ou nas páginas dos jornais. Esta realidade é o terreno fértil do crescimento da frustração dos cidadãos que não se sentem cidadãos, a quem não são dadas oportunidades e que não vêm futuro para si e para os seus. Este é o terreno onde os populistas cavalgam livremente, no qual os cidadãos um dia dizem basta, ou ‘chega’, e castigam os políticos que, verdadeiramente, nunca se interessaram por eles.

Não confundir esta esquerda urbana e ignorante da vida com a antiga esquerda, a comunista, que fazia opção de classe e que sabia não poder ser burguesa para mudar o mundo. A atual esquerda urbana é burguesa, mas tem toda a pretensão de conhecer o que não conhece. A antiga esquerda estava do lado dos pobres, de quem precisava para fazer a revolução socialista.

A atual esquerda urbana não quer saber dos pobres, não é esse o seu ‘mercado alvo’. O ‘mercado alvo’ desta nova esquerda são os burgueses acomodados das grandes cidades, que se sentem bem e não querem que nada mude.

Fazem parte do grupo dos egoístas bonzinhos. Produzem uns discursos simpáticos e politicamente corretos, mas preferem hortas urbanas a casas para pobres, ou jardins a parques empresariais. Bernardo quer fazer parte da revolução. Ao contrário de Engels, que conheceu a fundo a vida do proletariado, e Marx, que defendia a filosofia ‘da Terra para o Céu’, os novos esquerdistas querem fazer uma revolução sem conhecer a realidade, impondo ‘do Céu para a Terra’.

O que Bernardo, e os seus correligionários não sabem, porque não podem saber, até porque não frequentam, é que não há ‘quarto vigor’ ou ‘ucal chocolate’ no país dos que não têm futuro. O Bernardo e os seus amigos impedem que se construa um caminho de esperança para os portugueses. A hipocrisia e o cinismo da esquerda urbana saem muito caro ao futuro do país. Aliás, qual futuro?