Serge Daney. O cinema, mais belo do que nunca

Depois de O Cinema que faz Escrever, um conjunto de ensaios de Serge Daney sobre cinema, surge agora Perseverança, um livro que é também uma longa entrevista a Serge Toubiana pouco tempo antes de morrer. Neste, o maior crítico de cinema francês pós Bazin mostra-nos toda a alegria do pensamento.

Texto de João Oliveira Duarte

Há aqueles livros que conservam em si uma manhã de festa. Nada há neles de ressentimento, de pequenez; em todos os momentos, nos lugares onde menos se espera, ou a propósito dos assuntos mais inusitados, encontramos uma alegria de pensamento dificilmente atingível, aquele entusiasmo febril ao qual se desculpa tudo. Tão rara, essa alegria, esse entusiasmo – que é também aquele da descoberta, da paixão sem limites -, que, no máximo, há um livro por ano que a transporta, ou nem isso. Perseverança, de Serge Daney e com tradução de Luís Lima, é um desses, um dos livros sem data, que parece ao mesmo tempo tão antigo – uma alegria imemorial do qual também se reclamou, o “luxo dos pobres”, reclamando o cinema para ela -, nunca atual, mas sempre intempestivo.

O percurso de Serge Daney é conhecido. O maior crítico francês de cinema depois de Bazin, Daney entrou cedo para os Cahiers du Cinema. Apanha o momento mais conturbando da famosa revista, na efervescência política pós-maio de 68, mas isso não o impede de traçar um retrato que, hoje, nos devia fazer pensar e ter alguma vergonha do estado das publicações (a vergonha, dizia um conhecido pensador, pode ser um dos mais fortes motivos do pensamento):

“Os Cahiers eram essa revista que dedicou três linhas frívolas, no final de um número, a um filme do qual o mundo inteiro assobiou a música: A Ponte do Rio Kwai, de David Lean! Ou eram impostores e snobes, ou então tinham uma ideia, motivações próprias, outros valores. Em todo o caso, não tomavam em consideração o gosto do público.”

A sua história confunde-se com os Cahiers, da mesma forma que se confunde com o jornal Liberátion, com a Trafic, revista de cinema que funda pouco tempo antes de morrer, em 1992, e, em última análise, com o próprio cinema – com os gloriosos anos que vão do final da II Guerra Mundial à morte de Pasolini, em 1975. É a época do cinema italiano, de Rossellini, Antonioni, da Nouvelle Vague, o “bando”, como Daney lhes chama numa longa entrevista a Régis Debray. Nem um grupo, nem uma clique nem mesmo uma escola – um bando é sempre mais ou menos que todas estas formas sociais, é uma orquestra de singularidades, cada uma com a sua singularidade irredutível, mas sem individualidade. Jean-Luc Godard, que o admirava, colocava-o numa tradição literária, de onde Daney, efetivamente, vinha, Gilles Deleuze, que sobre o cinema escreveu dois imponentes tomos, copiou-o de forma despudorada. Foi leitor – atento – de Roland Barthes, da psicanálise (fechou-se num quarto com a obra de Lacan durante dias).

“Perseverança”, título que seria aquele de um livro que nunca escreveu – morre com a epidemia do HIV – reúne um texto bastante conhecido de Daney (“O travelling de Kapò”), onde este nos mostra a génese do seu pensamento sobre o cinema através de dois momentos: a injunção moral de Jacques Rivette sobre um “travelling dianteiro que reenquadra o cadáver em contra-picado” (a abjeção de pretender fazer um filme belo e não um filme justo sobre a realidade dos campos de concentração), e Noite e Nevoeiro, de Alain Resnais – que tem de ser visto numa sala de cinema, e não no conforto do lar, sob pena de estarmos num outro tipo de abjeção. E abjeção é a forma como termina, uma outra, nossa contemporânea, cheia de bons sentimentos:

“Os cantores ricos – “we are the children, we are the world” – misturavam a sua imagem com a dos famintos. De facto, tomavam o seu lugar, substituíam-nos, apagavam-nos. Ao fundir e encadear estrelas e esqueletos num cintilar figurativo onde duas imagens tentavam torna-se uma só, o videoclipe executava com elegância esta comunhão electrónica entre o Norte e o Sul. Eis então, dizia para comigo, o rosto atual da abjeção e a forma melhorada do meu travelling de Kapò”.

É a forma como Daney pensa até ao fim uma outra injunção, uma de Jean-Luc Godard, quando este nos diz que “nunca nos devemos colocar onde estamos, nem falar no lugar dos outros” – e é a forma como reclama para o cinema uma dimensão realista e, mais importante ainda, quando afirma que este é uma arte de mostrar. “E mostrar é um gesto, um gesto que obriga a ver, a olhar. Sem este gesto, só há imagética. Mas se algo foi mostrado, é preciso que alguém acuse a sua receção.”

Além deste conhecido texto, “Perseverança” reúne uma longa conversa entre Daney e Serge Toubiana tida em fevereiro de 1992 (Daney morreria em junho do mesmo ano). E esta conversa, esta longa entrevista, mostra todo o fulgor do pensamento de Daney, a alegria do pensar – mesmo aí onde o fim já se adivinhava.

“Alguém que nunca possuirá nada, que detestava a ideia de posse, que não possui efetivamente nada no mundo, ou seja, livros e discos, em suma, alguém que não pode senão possuir-se, viver prazeres simples ou simples felicidades. Isto é de uma simplicidade tão absoluta e básica que daí decorre como que uma certeza: partilhá-las, pertencer simplesmente à espécie humana, aquela que é, como dizia a minha mãe, “feliz por nela viver e nela se ver claro (belo programa para um cinéfilo, já agora)”.

Daney afirmava o cinema como uma “arte de baixo, da vida” como sublinha na entrevista a Debray – uma arte impura, que “não se alimenta de si própria”, contrariamente à publicidade, que fabrica puras imagens -, cinema que é, em última análise, uma experiência da sala de cinema, de entrar sozinho ou com uma pessoa qualquer (o “qualquer” é aqui importante), onde “as cenas mais bonitas ou os planos mais belos começam com uma ceninha de nada, como esta, tão importante como os momentos de bravura.”. É este “luxo dos pobres” que Daney equivale ao ténis (o cinéfilo é aquele que responde ao serviço do outro), à viagem ou mesmo ao postal, “produção comercial modesta e anónima”: “eu nunca parava de partir, nos filmes ou nas vidas no mapa ou no território, como se prosseguisse uma missão sem fim: partir, partir para perto, partir para longe, ir a Melun, ir a Xangai, e voltar como se de nada fosse”. Menos um turista, mesmo aquele que transborda de saber, do que um vagabundo semi-clandestino que faz questão de se sentar “encostado ao muro, debaixo do sol, com o cuidado de não importunar”, que tem “a preguiça do lagarto que deixa sempre para amanhã”: “as viagens só servem para isto, para fabricar mais disto: essa possibilidade de felicidade que não se conta.” E é isto, esta felicidade que não conta (um plano que fica na cabeça, uma expressão, um rosto, uma figura), que constitui a cinefilia, em conjunto com esses outros irmãos sem pais que são os filhos do cinema:

“Esta felicidade é clandestina. Tal como foi semi-clandestina para mim a paixão do cinema. É certamente o meu destino de homossexual, o homem das multidões, o judeu errante ao engate que só tem o seu próprio corpo, o seu próprio corpo para lhe obedecer, um corpo de que ele não cuida, que trata sem consideração, como uma máquina amigável, destinada a caminhar e a cansar-se, a encher-se e a esvaziar-se, a foder, e que, por fim, será a primeira a sair do jogo”.

Esta irmandade que não envolve laços de sangue é a desses filhos do cinema, os cinéfilos, a transbordar de uma paixão voraz, para os quais o cinema não era apenas um domínio cultural – ir ao cinema como se poderia ir ao teatro ou a um concerto -, mas um “destino quase comparável ao de um homem, com toda a sua grandiosidade e trivialidade”. Esta experiência de uma intensa liberdade, mas também de uma angústia sem fim (“o cinema, lugar dos pais mortos”: haverá formulação mais ambígua?), que era aquela dos cinéfilos, mas, igualmente, dos cineastas, que dava lugar a uma experimentação sem limites tanto de um lado como do outro, que era, em última análise, coletiva e nunca apenas individual (o indivíduo é a morte do cinema, como afirma a dada altura), é já há algum tempo uma vaga recordação – permanece confinada a um ou outro nome, a um número cada vez menor de pequenos grupos disseminados pelo mundo.

“Perseverança” é a memória – não nostálgica, nunca nostálgica – de uma outra possibilidade, mesmo que esta possibilidade seja sempre uma traição aos filmes porque tende a lê-los segundo razões mais ou menos inconfessáveis (mas o cinema é também sair do cinema, como defende Daney). Mas é mais, ou não apenas isto, é a alegria do pensamento que faz com que cada página tenha pelo menos uma afirmação digna de nota (apetece dizer de Daney o que Sartre dizia de Gide, que não consegue dizer banalidades). É o cinema, mais belo do que nunca, como a Paris bela como nunca da revolução.