Marcelo debaixo de fogo por causa de pedofilia na igreja

“Haver 400 casos não me parece particularmente elevado”, disse o Presidente sobre denúncias apuradas pela Comissão liderada por Pedro Strecht.

Por Joana Mourão Carvalho e José Miguel Pires

Depois de a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa ter revelado, esta terça-feira, que apurou 424 casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica, o Presidente da República não se mostrou, inicialmente, surpreendido, espoletando uma reação em uníssono por parte dos partidos com assento parlamentar.

“Não me surpreende. Não há limite de tempo para estas queixas, que vêm de pessoas de 80 ou 90 anos. Estamos perante um universo de milhões ou muitas centenas de milhares de jovens em contacto com a Igreja. Haver 400 casos não me parece particularmente elevado”, disse, ontem à tarde, Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas.

Entretanto, e após uma ‘chuva’ de críticas, tentou ‘redimir-se’ das declarações… duas vezes. “O Presidente da República sublinha, mais uma vez, a importância dos trabalhos desta Comissão, muito embora lamente que não lhe tenham sido efetuados mais testemunhos, pois este número não parece particularmente elevado face à provável triste realidade, quer em Portugal, quer pelo mundo”, referia um comunicado divulgado pela Presidência horas depois.

Na mesma nota, Marcelo Rebelo de Sousa sugeria que os número não correspondem à realidade, alegando que “vários relatos falam em números muito superiores em vários países, e infelizmente terá havido também números muito superiores em Portugal”.

De seguida, à RTP, Marcelo Rebelo de Sousa dizia não compreender as críticas, argumentando não ser a primeira vez que fala sobre o assunto. “Para os milhões de pessoas que contactaram com instituições católicas durante estes 70 anos, em ditadura e depois em democracia, eu acho curto o número de 400 e tal”, considerou, rejeitando desvalorizar a cifra. “Valoriza imenso precisamente os que tiveram coragem de ir. Acho curto porque é a minha convicção que há muitos mais”, vaticinou.

Críticas em uníssono Rapidamente, figuras da esquerda à direita na política nacional reagiram às palavras do chefe de Estado. “Sou católico e, por isso mesmo, os resultados da Comissão Independente que investigou os abusos sexuais na Igreja Católica chocam-me e envergonham-me. Um caso apenas já seria muito”, disse Miguel Pinto Luz, vice-presidente do PSD, no Twitter, censurando as palavras do chefe de Estado.

Na mesma rede social, Carlos Guimarães Pinto, deputado da IL, considerou que “o Presidente da República deve um pedido de desculpas ao país e às vítimas pelas declarações infelizes”, acusando ainda as suas declarações de serem “inaceitáveis“, sugerindo que “nem vale a pena discutir se o número está subestimado porque muitas queixas ficam por fazer”.

A este ‘coro’ juntou-se André Ventura, líder do Chega, que apelou ao Presidente para “pedir desculpa às vítimas” e para “não menorizar o seu sofrimento”. “Que declarações tão infelizes de Marcelo Rebelo de Sousa! Uma vítima de abusos sexuais, mesmo que fosse só uma, já seria muito grave”, lamentou.

À esquerda, as críticas também se multiplicaram. Também no Twitter, o deputado do Bloco de Esquerda Pedro Filipe Soares disparou: “400 queixas de abusos de menores validadas pela Comissão Independente e o comentário do Presidente da República é ‘o número não é particularmente elevado’. É este o Presidente de uma República laica e de um Estado de Direito? Lamentável Fosse um caso apenas e já era preocupante”.

A estas críticas juntaram-se Isabel Moreira, deputada do PS, que resumiu o assunto numa palavra: “Inaceitável”, Inês Sousa Real, do PAN, que considerou ser “incompreensível a desvalorização dos abusos sexuais de menores”, e Rui Tavares, do Livre, que disse “essencial reconhecer, corrigir e pedir desculpas aos nossos concidadãos que foram vítimas destes abusos”.

Obstáculos Pedro Strecht, o pedopsiquiatra e líder desta Comissão, afirmou que as notícias de eventuais ligações de membros da hierarquia da Igreja Católica a alegados encobrimentos de casos de abuso sexual não colocaram qualquer obstáculo ao trabalho que está a ser levado a cabo.

“A Comissão mantém-se atenta a todas as notícias respeitante a abuso sexual de crianças por membros da Igreja, ficando claro que até ao momento não sentiu qualquer limitação ou entrave à sua independência, nomeadamente por parte de qualquer membro daquela hierarquia”, declarou Strecht, que manteve a postura da Comissão Independente de não comentar, confirmar ou desmentir notícias.

Entre elas, por exemplo, as que visaram recentemente o bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, que terá, alegadamente, encoberto vários abusos na Igreja. “No final, e em apenso ao relatório a entregar à CEP, seguirá o nome de todos os membros da Igreja Católica reportados à Comissão, sendo que para o Ministério Público seguirá referenciação idêntica, mas apenas para pessoas que se encontrem vivas”, esclareceu o coordenador, na última conferência de imprensa antes da apresentação do relatório final em janeiro de 2023, que se realizou na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.