Tony Miranda. ‘A verdadeira alta-costura é como uma segunda pele’

Foi para Paris com 14 anos e com os objetivos bem definidos. Aos 18 ingressou na casa de um dos maiores mestres de sempre da alta-costura francesa, Joseph Camps. Abriu o seu primeiro ateliê na capital da Moda e já vestiu várias personalidades no mundo da política, da aristocracia e do espetáculo. Aos 74 anos,…

Tony Miranda deixou Torrados, em Felgueiras, com 14 anos. Tinha Paris como destino e, na bagagem, o sonho de tornar-se um dos mestres da alta-costura. A mãe, costureira, foi a sua principal influência. Opai, sapateiro, queria que o filho lhe seguisse as pisadas. Corria o ano de 1962 quando, com 14 anos, chegou à ‘Pátria da Moda’. Por lá ficou nas quase três décadas seguintes, tendo trabalhado com Joseph Camps e Ted Lapidus. Vestiu várias personalidades no mundo da política, da aristocracia e do espetáculo, entre as quais se destacam o Xá da Pérsia, Reza Pahlevi, o Rei do Irão, Jacques Brel, Charles Aznavour ou Brigitte Bardot. 

Abriu o seu primeiro atelier de alta-costura na 61 bis, na Avenue Suffren e, mais tarde, a boutique Tony Miranda no nº5 da Rue Cambon. Voltou para Portugal no final dos anos 80 com a ambição de ensinar as próximas gerações e continuar assim a afirmar o nome do País na roda da alta-costura internacional. Já não procura reconhecimento. Aos 74 anos, a principal missão passa por lutar pela continuidade da profissão, que considera cada vez mais em vias de extinção. É perfeccionista (numa peça sua podem estar investidas mais de 150 horas de trabalho), dorme duas a três horas por noite e a reforma é um horizonte longínquo para este criador de moda, que se prepara agora para lançar uma nova coleção, no próximo dia 19 de outubro. ‘Recomeçar 2023’ é pensada para os novos tempos de ‘Liberdade’ e ‘Paz’. Começou a ser desenhada na pandemia e, por isso, é possível dividi-la em dois momentos, dos tons preto e branco à explosão de cor: «É um incentivo para sair para o mundo. Serão peças muito alegres! Roupa que incentiva a sair, a conviver, a estar com os outros». 

Tony Miranda recebe-nos no seu atelier, no número 92 da Avenida da Liberdade – prédio que comprou em Lisboa no final dos anos 90 –, e fala-nos do seu percurso, da carreira com mais de 50 anos, sobre alta-costura e da vontade que tem para o «tanto que ainda espera fazer» daqui para a frente.

Há precisamente 60 anos estava a rumar a Paris, na altura com 14… Verdade. Fiz os meus 14 anos durante a viagem. Hoje, olhando para esse dia, pensa: ‘Como é que foi possível?’? Era uma criança… Quando olho para aquilo que eu passei para chegar a Paris, sim. Mas voltaria a fazê-lo, de todas as maneiras. Foi uma aventura fantástica, era quase inconsciente. Tinha 14 anos. Mas a força de querer aquilo que eu tinha visto e aquilo de que tinha ouvido falar… eu não dormia. 

E os pais? Como olharam para essa decisão? A minha mãe compreendeu sempre. O meu pai achava que eu era maluco. Dizia-me: ‘Tu pensas que Paris é aqui ao lado? Se fosse aqui ao lado também eu já lá estava’.
Mesmo Lisboa já devia ser distante na altura… Sim, sim. Quem é que vinha a Lisboa?!

Como foi a infância em Torrados, em Felgueiras? Foi passada na escola até à quarta classe – fiz a terceira e a quarta classe no mesmo ano. Estava sempre com pressa de fazer mais qualquer coisa. A ideia de ver a minha mãe a trabalhar na costura… não me passava mais nada pela cabeça sem ser vir a trabalhar na costura.
Foi a sua principal influência? Foi a minha principal influência. O meu pai queria que eu fosse sapateiro e obrigou-me a trabalhar com ele, mas eu fazia tudo torto…

De propósito? Para não ter que seguir o ofício? De propósito, sim. Fazia tudo torto. E ele dizia-me assim: ‘Tu não vais ser ninguém. Vais ser um desgraçado’. Eu tinha um irmão que tinha um medo do meu pai… coitado. O meu pai dava com cada grito: ‘ISTO ESTÁ TUDO TORTO!’. O meu pai era dos melhores sapateiros que havia no concelho. Mesmo a nível nacional duvido que houvesse alguém melhor. Mesmo hoje, vendo o que o meu pai fazia, não deve haver pessoa que faça mais perfeito do que fazia o meu pai.

Mas explicava ao seu pai que ambicionava seguir pelo mundo da costura? Eu dizia-lhe que queria ir para a costura. Mas ele respondia que não era uma profissão de homens. E eu dizia então que queria ir para alfaiate: ‘Alfaiate não é de homens?’. E ele perguntava: ‘Mas quem é que te vai querer? E quem é que te vai ensinar?’ E lá vinha a minha mãe – que fazia roupa para a sobrinha do padre da freguesia – e dizia que já tinha falado com ele, porque os sobrinhos do padre eram alfaiates muito conhecidos. Eles eram quatro irmãos – todos alfaiates – e tinham muito nome, mesmo fora do concelho, na zona do Porto…

E foi assim que começou? Um dia o meu pai deu-me umas botas, que eu sabia que eram para um Sr. Doutor e tal… E eu pensei: ‘Se fizer mal, vai ser da maneira que ele se vai zangar e manda-me embora’. O meu pai tinha-me pedido para coser uma parte das botas – tudo à mão –, e tinha de ser perfeito, perfeito. Fiz tudo ao contrário. Tudo torto. Ele agarrou na bota, deu-me com ela na cabeça, agarrou naqueles chicotes que servem para fazer as plantas dos sapatos e deu-me tantas, tantas… A minha mãe levantou-se a chorar e disse: ‘Vai ser a última vez que tu vais fazer isso ao nosso filho. Não tens dó, nem piedade. Ele não quer a tua profissão, não quer. E olha que ele coseu torto propositadamente. Só tu é que não compreendes. Não tens inteligência suficiente’. E o meu pai continuava: ‘O quê? Ele não sabe’. Eu levantei-me e pedi ao meu pai para me entregar a bota. Tirei tudo o que tinha feito e refiz tão direito, mas tão direito…

Cresceu com a rigidez do pai e o colo da mãe, pode dizer-se assim? Sim, sim. Vinha da escola e ia trabalhar ao lado dele. Depois, quando nos fazia os sapatos, fazia sempre maiores para durarem para os três anos seguintes. E enquanto estavam grandes, metia algodão nas pontas. Quando regressava da escola, obrigava-me a ir à beira dele para ver se eu tinha jogado à bola com os sapatos. E quando eu sujava os sapatos e aquilo não saía… Passava pelo sítio onde a minha mãe tinha o carvão para passar a ferro, agarrava no carvão e esfregava. Ficavam todos pretinhos e, quando eu chegava, a minha mãe dizia: ‘Estás a ver como ele não jogou à bola?!’. Foi uma infância dura, mas com muito amor. Com muito carinho da parte da minha mãe. O meu pai tinha carinho, mas se demonstrasse, ele achava que não era um homem forte. A minha mãe explicava-nos isso, dizia que o nosso pai não era aquilo que parecia. 
E se sempre soube o que queria, aos 13 anos confirmou isso mesmo, quando assistiu ao desfile da Christian Dior, na pequena televisão que havia no salão paroquial de Torrados… Sim, era onde havia televisão. A partir daí não dormi mais até ir embora, para Paris. Saí de casa sem o meu pai saber. Só a minha mãe é que sabia. O meu pai só soube quando eu já estava em Espanha.

O facto de estar sozinho e o medo nunca o fizeram regressar? À força de querer e de ter um objetivo, sentia que ultrapassava tudo! Naquela viagem, eu era um puto e eu via homens a chorar, a dizer que não iam aguentar. Eu achava sempre que aguentava. Talvez fosse a inconsciência da idade.

Quem é que o ajudou nesses primeiros tempos em Paris? Isso foi tudo combinado. Havia um senhor que tratava das saídas, que recebia o dinheiro. Naquela altura, a viagem para Paris eram 12 mil escudos. Lá estava o filho dele à minha espera. Depois arranjava trabalho em vários sítios…

E aos 18 anos ingressou na casa de Joseph Camps, um dos maiores mestres da alta-costura francesa. Sentiu que estava finalmente no início do seu grande sonho? Quando entrei no Joseph Camps senti aquilo que penso que todo o costureiro – e todo aquele que queria realmente saber o que é alta-costura – sente, ou seja, que tinha que estar ali, na casa dele. Não era fácil lá entrar, porque ele dizia que as pessoas não ficavam. Estavam lá uma ou duas semanas e iam-se embora.

Por ser duro? Sim, por ser muito complicado. E hoje conheço essa realidade porque em minha casa se passa exatamente a mesma coisa. Muitos dos jovens rapazes vêm de manhã e ao meio dia já não voltam. 

Há pouco tempo li um artigo sobre os jovens e moda e eles explicavam que eram autodidatas: compraram uma máquina de costura e depois aprendiam por eles mesmos através de vídeos no Youtube ou noutras plataformas. Acha que se está a perder esse conceito de aprender com os grandes mestres? Há uma coisa que tem que se reconhecer: primeiro é preciso gostar mesmo e ter essa força e querer. Segundo: é preciso aprender as bases, como é que se dá a volta sobre uma peça, sobre os diferentes corpos… Só mais tarde se pode voar sozinho. Não há história nenhuma de alta-costura – seja Pierre Cardin, Balenciaga e todos estes… Eles aprenderam no banquinho a puxar a agulha. 

E os mais jovens procuram-no muito? Houve uns tempos em que ainda me consumia com isso. E tentei ter uma escola, falei na altura com o presidente da Câmara [Municipal de Guimarães]. O problema é que eu ensinava, mas não ia estar a pagar; dar o meu trabalho e o dos meus funcionários acho que já era uma grande coisa. Ter uma escola era um dos meus sonhos quando regressei a Portugal. Esta arte vai acabar. Agora os franceses começam a abrir mais um bocadinho os olhos porque foram eles que começaram a abandonar um bocadinho este conceito, diziam que o futuro era o pronto-a-vestir e que a linha couture e alta-costura acabavam por desaparecer… Mas há uns anos começaram a perceber que talvez não fosse assim. Durante muitos anos, no meu atelier, em Guimarães, cheguei a receber muitos estagiários alemães, franceses, italianos… 

Quem eram os melhores? Posso dizer que os mais dotados eram os alemães. E as mulheres alemãs tinham uma vontade de aprender tudo e depressa… Depois as coisas também mudaram um bocadinho, porque tive a infelicidade de perder o meu filho, que era o meu braço direito. Eu não quero um estagiário em minha casa para ele andar a fazer recados, nem andar a dobrar tecidos. Quero que ele aprenda. Não quero que esta profissão, que é tão linda e fantástica, acabe. Nesta profissão, em qualquer país do mundo encontra-se trabalho, não haja dúvidas. E não é preciso falar línguas. As mãos é que falam. Os melhores funcionários que tive eram surdos-mudos. E porquê? Porque eram pessoas que se concentravam e estavam ali apenas focadas no trabalho.

Na alta-costura é fácil encontrar grandes mestres que tenham essa vontade de partilhar o conhecimento? Isso era a mentalidade do meu antigo mestre, quando ainda estava em Portugal. Quando precisei daquele dinheiro para ir para França, ele ajudou porque também tinha medo que eu lhe tirasse a clientela mais tarde. O sol quando nasce é para todos. Porque havemos de cortar as pernas a alguém que poderá ser um grande artista? Eu tenho pena porque fiz essa proposta ao presidente [da Câmara Municipal de Guimarães]: poderia dar X horas de aulas por semana no meu atelier, para eles aprenderem… Ele disse que sim, que sim, que já estava tudo pronto… e nunca mais disse nada. É como a maioria dos políticos, eles não querem saber de nada. Mas tenho pena. Mesmo em Itália e na Grécia, que eram os países da moda, em questões de fabrico – havia muitos alfaiates –, mas agora não há ninguém. 

E tem alguma justificação? Acha que é pelo facto de a moda, sobretudo a alta-costura, ser um nicho em Portugal? Agora e cada vez mais há gente que começa a compreender e a saber o que é bom. Fazer essa distinção entre o que é bom e o que não vale nada. Porque as pessoas viajam, saem e veem. Não estou a falar de pessoas que colocam um trapo para baixo e um trapo para cima e agora é tudo moda. Mas, por exemplo, os italianos, que têm muito dinheiro, sempre foram a Paris para se vestirem. Paris é Paris. Quando queres realmente estar na verdadeira moda é Paris. Eu necessito de ir a Paris várias vezes, é como uma bolha de oxigénio. Vou a Paris, sento-me na avenida a tomar um café e lá estou a ver quem passa… Passa ali tanta gente… E venho de lá cheio de ideias, cheio de vontade de criar, de fazer…

Vai quantas vezes por ano? Quando me lembro. Agarro na minha mochila e lá vou…

E vai à Avenue Suffren [onde em 1979 abriu o seu próprio atelier] e ao número 5 da Rue Cambon [onde abriu a boutique Tony Miranda mais tarde]? Sempre. Tenho sempre que lá ir. E, às vezes, até choro. Agora está lá um pronto-a-vestir. Por um lado saio contente, por outro lado venho triste.

Arrepende-se de ter regressado a Portugal, no final da década de 1980? Não é arrepender-me porque há coisas boas que aconteceram aqui. 

Mas sente que cá nunca foi reconhecido? Não dão reconhecimento praticamente a ninguém. No início chateava-me um bocadinho, mas agora já não me diz absolutamente nada. Eu nunca parei. Às vezes dizem-me: ‘Ah, tu lançaste-te no turismo’. Mas é assim… não foi só aqui, já em Paris adorava fazer negócios com as imobiliárias: comprava prédios velhos antigos e, depois, renovava-os. 

A tal veia empreendedora que também tem… Verdade. Renovava-os por completo, dizia tudo aquilo que era para fazer nos apartamentos… Vendia aquilo como quem vende pão quente na padaria. E esse bichinho ficou. Quando voltei para Portugal continuei. 

O que tem a dizer em relação à fast fashion? Hoje é possível encontrar peças de roupa a 5, 10 ou 15 euros… As pessoas têm que compreender que por esses valores não podem comprar grande coisa. De maneira nenhuma, não pode ser. Não paga o trabalho, os tecidos, nada… Nem sei como é possível. Para mim não é roupa, são negócios. Se as pessoas são felizes assim… esta liberdade que se dá às pessoas, acho que é fantástica. Mesmo na questão das tendências, acho muito melhor como está atualmente. Antes, em Paris, só funcionava assim: eras obrigado a seguir determinada tendência e, depois, quando apresentavas uma coleção quase todos se copiavam uns aos outros. É maravilhoso ter começado a existir esta liberdade de tendências – cada um cria a sua própria tendência, a sua própria cor. Quando uma pessoa fabrica milhares de peças tem que se preocupar que aquele modelo funcione. Quando és um artesão da moda fazes aquilo que gostas – podes pensar que hoje não vendeste esta peça, mas vais vender a outra que será um pouco mais cara para compensar.

Um fato seu pode ter mais de 150 horas de trabalho: falamos de algo exclusivo, com materiais de alta qualidade… Eu tenho ali umas casas à mão que têm 400 pontos. E as pessoas dizem assim: ‘Ah, eu vejo uma casa igual’. E eu digo logo: ‘Não, não é nada igual. É impossível ser igual’. 

E esta nova obsessão que as marcas de alta-costura parecem ter com o ‘velho’? Ainda há pouco tempo deu-se a polémica com os Paris Sneakers da Balenciaga. Acho que, às vezes, as pessoas já não sabem o que fazer para se mostrar, para dar nas vistas… Se eles acham isso uma coisa diferente, eu não acho piada nenhuma, sinceramente. Andar com os ténis todos sujos… é o tal espaço para todas as tendências. Agora que há muita gente que se aproveita e ganha muito dinheiro…

A moda também se faz muito através da influência digital? Por exemplo, a Rainha Letizia usa um vestido e esse modelo esgota imediatamente em todas as lojas. Sim, sim. No caso da nossa clientela as pessoas estão-se marimbando para o nome: ou gostam daquilo que tu fazes ou não vêm a tua casa. Em Paris, havia um cliente grego, que era dos homens mais milionários, e dizia sempre para o Ted [Lapidus] não colocar etiqueta, porque só ia dar trabalho à empregada dele, já que ia ter que tirá-las quando chegasse a casa. Dizia sempre que não fazia publicidade para ninguém. Um dia, o Ted lembrou-se de criar uns botões com o T e pôs no blazer. E eu avisei: ‘Oh Ted, não faças isso, vais perdê-lo como cliente’. Ele dizia: ‘Ele vai adorar! Não há costureiro nenhum que faça’. Mas se ele não queria a etiqueta por dentro, por que razão havia de querer os botões por fora…

E confirmou-se o desfecho que previu? Quando lhe apresentou o blazer com os botões eu saí e, de repente, oiço com cada grito. Dizia que não voltava mais, que era uma falta de consideração, perguntava como era possível achar que algum dia ia levar uma peça assim… Depois fui beber café com ele e ele disse-me: ‘Tony, eu venho aqui porque sei que não é ele que toca nas minhas peças. No dia que tu saíres daqui, eu saio contigo’. E veio.  

O que é para si a alta-costura? A verdadeira alta-costura é aquela peça que é simples, tem aquele toque de trabalho que dá a forma da mulher ou do homem, que se olha e nota-se logo a diferença. É uma segunda pele. As pessoas que estão habituadas a isso, gostam disso. Tenho um cliente da Síria que, quando eu lhe meto um casaco, vê logo: ‘Neste fato não tocaste. É verdade ou não?’. Diz-me sempre: ‘Tu faz aquilo que tu quiseres, mas faz tu’. Nota tudo até ao pequeno pormenor. A alta costura é o pormenor, não é folhos para aqui, folhos para acolá… 

Foi também o pioneiro do blazer para senhora. É sempre a minha maior venda lá para fora. Mas diziam-me que era de velha. Quando as pessoas dizem que não gostam de andar iguais a toda a gente é mentira. Só gostam quando os outros andam, quando já está tudo igual na rua. 

E foi uma peça que se tornou indispensável em qualquer closet feminino… Há pouco tempo a Stéphane Rolland deu uma entrevista e o jornalista perguntou: ‘Se as mulheres só pudessem escolher uma peça, qual diria para usarem?’. E dizia: eu daria um conselho, se eu soubesse fazer bem o blazer, diria para levar o blazer. Até me comoveu. Uma vez diziam que o blazer tinha sido criado por outro designer, que copiava muito na altura a Ted Lapidus e o Pierre Cardin disse: ‘Como vocês estão enganados, não seguem a moda. Foi na Ted Lapidus e foi um jovem estrangeiro que lá estava’. 

Como foram os mais de 10 anos que esteve na Ted Lapidus? Entrou em 1967 e, depois, entre 1969 e 1979 foi o diretor da área criativa… Foi o melhor que me podia ter acontecido. A clientela maior que tenho ainda é de lá. Deu-me conhecimentos em tudo. E eu só saí porque a casa estava a cair. O dinheiro começou a trabalhar-lhe a cabeça, o Ted Lapidus só começou a fazer asneiras. Já não queria fazer alta-costura, dizia que levava muito tempo e não trazia dinheiro. Foi sempre a descer. Depois começou a criar uma linha estilo Chanel, que não tinha nada a ver. O Ted Lapidus eram as jovens todas que se deitavam no chão para conseguir apertar as calças. Quantas e quantas tínhamos lá no salão deitadas no chão… era assim, uma época fantástica. 

Depois abriu o seu primeiro atelier. Já vestiu várias personalidades, desde Chefes de Estado à aristocracia e ao mundo do espetáculo [o Xá da Pérsia, Reza Pahlavi, Omar Bongo, antigo presidente do Gabão, o Príncipe Saud bin Faisal Al Saud e artistas, incluindo Brigitte Bardot, Jacques Brel, Charles Azvanour, Sylvie Martin e John Hallyday].  É fantástico quando alguém te manda um email e diz assim: ‘Tony, tenho uma viagem oficial em X país. Vou passar lá X dias. Já sabes como é. São três/quatro reuniões por dia. O clima é este’. Três/quatro reuniões por dia é muito fato. E isto é fantástico. 

Algum cliente mais excêntrico? Ou mais complicado? Tenho clientes excêntricos porque também faço roupas para festas privadas. Mas são trabalhos fechados que são impossíveis de divulgar ou falar sobre eles.

E algum que o tenha marcado de forma especial? Tenho um tapete de seda natural pendurado lá em casa, numa parede que apanha com sol. E há pouco tempo perguntaram-me se eu queria que o levassem para lavar, porque ali estava a estragar-se muito. E eu disse que não, que era para ficar ali. Cada vez que olho para ele recordo-me do Rei do Irão. Uma gentileza de homem. Diziam que ele era um fascista, mas ele dava liberdade a toda a gente, cada um fazia o que queria. Esse homem foi fantástico.

Qual a peça que lhe dá mais gozo fazer? E a mais difícil? Gosto de um clássico bem feito. Sabe porquê? Porque num clássico consegues ver a arte. Gosto de ir para o atelier dar aquela forma ao ferro, durante horas… Um fato clássico de senhora, um blazer com calças ou uma saia e uma linda blusa… Todas as peças têm o seu grau de dificuldade. A alta-costura não pode ser encontrada nas ruas, está em pisos, o atendimento é feito por marcação. Seja aqui, em Paris ou noutro sítio.

Às vezes arrepia-se, quando passeia pelas ruas e olha para as montras? Às vezes rio-me sozinho e penso: ‘Como é possível?’. [Levanta-se e pega num blazer]. Está a ver estes pontinhos todos? Tudo à mão. São horas e horas e horas.

Quantas horas estão neste blazer? 120 horas. Pode ir até 150 horas. [Amarfanha o blazer e mostra como não ficou amarrotado, nem vincado]. As pessoas criticam muitas vezes sem saberem o que dizem.

Em Portugal fala-se de moda sem saber? Quando não se sabe é mais fácil criticar. Uma vez perguntaram a um dos novos criadores se em Portugal havia alguém que fizesse alta-costura e ele respondeu: ‘Ah, não, não há ninguém’. E depois veio ter comigo a dizer que tinha cometido uma gafe. E eu disse: ‘Eu acho que fizeste de propósito. Quiseste dizer que fazes alta-costura. Mas não fazes. Se quiseres aprender podes vir ter ao meu atelier, ainda estás a tempo de aprender’.

E foi? Não, não, o orgulho… Mas sabe, as pessoas vivem mal. Um deles um dia disse-me: ‘Eu mal ganho para comer, as pessoas acham que eu vendo às toneladas’. Mas para ensinar também já não pode ser a partir de certa idade. Porque depois crias raízes e vícios que não é possível voltar atrás. E muitos querem é desenhar, depois dão à costureira, ela faz e eles dizem: ‘Apresentei uma coleção’. Para isso, nem é preciso saber desenhar. Eu não sou um bom desenhador, mas se me aplico também consigo. Quando tenho uma ideia à noite ou quando estou a dormir, depois faço o esboço no papel…

Mas dorme muito pouco. Duas, três horas por noite? Sim, sim. Sempre fui assim. 

A parte do corpo a que dá mais valor são as mãos? Quando um funcionário vem ter comigo, a primeira coisa que faço é olhar para as mãos e para os dedos. E quando vejo dedos muito grossos… Para estes trabalhos temos agulhas muito, muito pequenas e fininhas, num dedo grosso perdem-se…

Ainda acontece ter que refazer uma peça desde o início? Sim, sim… Quando me enervo ainda lhe dou um golpe com a tesoura. 

Um criador nunca consegue reformar-se? Não penso na reforma. Mas talvez em baixar um bocadinho [o ritmo] e ter mais tempo para mim. Gosto de desporto: de jogar golfe, de jogar ténis, mas ainda tenho muito pouco tempo. A costura e as viagens absorvem-me muito tempo.

É um mercado muito competitivo? É importante ter outro negócio em paralelo com aquele que tu gostas, ajuda muito. Se não fosse assim, não podia ter estado durante os últimos dois anos da pandemia a pagar aos meus funcionários que estavam todos em casa.

Daí também a entrada no ramo imobiliário? Adquiriu este prédio onde estamos, na Av. da Liberdade, no final dos anos 1990. Foi uma aposta muito grande. Mas a verdade é que paguei mais caro pelo m2 naquela altura do que se comprasse agora. Tenho os documentos que podem provar. Isto pertencia ao maior banco da época, que era o Paribas, tinham comprado aos suecos por uma fortuna. Queriam pôr aqui uma agência, mas depois desistiram. E eu achei que era a parte mais bonita da Avenida [da Liberdade], era a zona mais plana… Depois do meu filho falecer, abandonei a boutique, nós estávamos no prédio todo [continua com o 2º e 3.º piso]… Mas era impossível conciliar tudo, com as viagens para fora, o atendimento privado… 

Continua a fazer a ponte entre Guimarães e Lisboa. Não é muito cansativo mesmo para quem está habituado a dormir tão pouco? Já não acho tanta piada às viagens de carro, antes adorava. Mas a agenda depende sempre das marcações que tenho.

Em algum momento teve o reconhecimento do seu pai? Sim. Estava muito orgulhoso do meu trabalho. Pena que não chegou a ver outras coisas. Mas um dia deu-me a mão, apertou-me e disse-me: ‘Enganei-me em tudo em relação a ti’.

Olhando para trás, tem o sentimento de dever cumprido? Uma parte sim, mas ainda quero mais. Enquanto continuar a sonhar… ainda tenho muito para fazer.