Repetidos e até ‘trepetidos’

Será normal ter livros duplicados quando há tantos que desejaríamos e nos faltam?

N o filme Teoria da Conspiração, de 1997, Mel Gibson veste a pele de Jerry Fletcher, um taxista de Nova Iorque que vê sinistras intrigas por todo o lado. Se existem ou não motivos para isso não vem aqui ao caso. Gostaria antes de chamar a atenção para uma cena perturbadora em que a personagem interpretada por Julia Roberts, uma advogada, penetra no ‘covil’ de Fletcher e se depara com dezenas de exemplares de À Espera no Centeio (The Catcher in the Rye), de J.D. Salinger. «Há mais alguns debaixo da cama», admite o peculiar taxista. «Não sei explicar porquê, mas sempre que vejo um tenho de o comprar… E, se não vejo, tenho de o encontrar».

Não levando a coisa a tais extremos, há na minha biblioteca uns quantos livros em duplicado. É o caso d’Os Lusíadas: uma versão mais modesta, para o dia-a-dia, e outra mais encorpada, com uma robusta capa de pele curtida pelo tempo. Outras vezes são livros que estão em tradução e na língua original, por exemplo o longo romance de Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Li-o na edição dos Livros do Brasil; depois fui adquirindo os vários volumes na versão ‘definitiva’ da Pléiade; e finalmente iniciei uma terceira coleção (ainda não terminada) da tradução de Pedro Támen para a Relógio d’Água. Não é o caso único de uma obra ‘trepetida’…

O exemplo de O Declínio e Queda do Império Romano, o clássico de William Gibbon, é paradigmático. Comecei por uma edição baratucha de capa mole. Um dia, ofereceram-me uma edição mais bonita e cuidada. Por fim, perante a oportunidade de adquirir os oito volumes ilustrados da Folio Society, não resisti. (Confesso que ainda não ganhei coragem para me abalançar sequer à versão ‘curta’ de 1252 páginas, quanto mais aos oito volumes…)

Estas duplicações e desdobramentos não me impedem ainda assim de saber exatamente o que tenho e onde o tenho. Mas um destes dias, excepcionalmente, surgiu uma confusão, quando fui à procura dos dois exemplares de A Imagem do Tempo. Trata-se do belíssimo catálogo de uma exposição belíssima que visitei um par de vezes quando era estudante universitário. Muitos anos depois, encontrei um exemplar em inglês na montra da Ferin. Era caro (50€) mas valia o preço, opis encontra-se esgotado. Dali a uns tempos, apareceu num leilão um exemplar, em português, a dez ou doze euros. Como não aproveitar?

Buscando nas estantes, só encontrava a versão inglesa. Da portuguesa, nem sombra. Teria feito confusão? Teria mesmo licitado? Se calhar já estava a delirar, como a tal personagem do taxista. Acabei por desistir da busca e dei o caso por perdido. Até que, ao procurar outro volume qualquer, lá estava ele deitado, com a lombada caprichosamente escondida por um conjunto de livros estacionados em segunda fila. Era só um livro repetido, mas nem por isso deixei de suspirar de alívio.

Fará isto algum sentido? Não creio. Mas, ao mesmo tempo, certos livros são tão bons que não há mal nenhum em tê-los em duplicado. Naturalmente, À Espera no Centeio é um deles.

Uma nota final: a escolha da obra de Salinger para a obsessão doentia do taxista interpretado por Mel Gibson não foi aleatória. À Espera no Centeio está associado a várias teorias da conspiração e até a homicídios. Mark David Chapman, o assassino de Lennon, tinha um exemplar consigo quando foi apanhado. E estava assinado, não com o nome do proprietário, mas com o do protagonista: Holden Caulfield. Estranho, não é?