Ele falava com os passarinhos

Outubro é o mês em que os fanáticos do drible festejam o seu rei – Manoel Francisco dos Santos -, o Anjo das Pernas Tortas de Vinícius de Moraes, o Mais Brasileiro de Todos os Brasileiros de Nelson Rodrigues, o rapazinho meio aleijado que viveu para sempre brincando com uma bola, desesperando adversários.

Manoel dos Santos nasceu em Outubro, dia 28 de Outubro de 1933. É possível que muita gente nunca tenha ouvido falar de Manoel Francisco dos Santos. Mas é impossível que essa muita gente nunca tenha ouvido falar de Garrincha. 

No primeiros meses de 1970, Elza Soares, a segunda mulher da sua vida (teve-as de todas as cores, de várias idades e muitos amores, mas só casou com duas), foi convidada para realizar vários concertos em Itália. Ficou alguns meses na Europa e trouxe Garrincha com ela. A princípio, Garrincha convenceu-se de que haveria clubes italianos interessados no seu concurso, nem que fosse apenas para disputar uns jogos amigáveis, como era prática no Brasil. Bateu à porta de vários. Mas, após o fracasso do Mundial de 1966, a Itália fechara as suas portas a jogadores e treinadores estrangeiros. Os italianos reconheciam-no nas ruas de Roma. Chamavam-no: «Garrinccia! Garrinccia!». Mas o seu futebol tinha acabado.

Em Abril, Elza Soares veio actuar em Portugal. Garrincha procurou o Benfica. No Estádio da Luz, trocou bolas com Eusébio, vestido de fato e sapatos, para alegria do povo e dos fotógrafos. Deu entrevistas e ofereceram-lhe um almoço. O Benfica nem quis ouvir falar da hipótese de o ter: nesse tempo não havia estrangeiro que vestisse a camisola encarnada. E Garrincha era apenas o fantasma de Garrincha.

Em volta de Garrincha, as lendas espalharam-se como estrelas. Ou, se quisermos ser mais cinematográficos: Ele era a lenda!  Não há jornalista no Brasil que não saiba contar uma história de Garrincha. Como aquela em que um repórter o aborda à saída do relvado e lhe pede: «Ei Garrincha! Dê aí um alô pró microfone». E ele retorquiu: «Alô microfone!». Mais tristes são as histórias dos finais da sua carreira, quando Garrincha ganhava dinheiro jogando avulso pelos clubes mais desconhecidos do Brasil, atraindo ainda assim multidões às cidades do interior. Alguns velhos campeões brasileiros, como Bellini, capitão no título mundial de 1958, iam com ele. Mas Garrincha ganhava 400 dólares, o dobro dos outros. E no fim dos jogos, bebia até cair. Uma vez, em Rio Preto, houve um adversário que não estava disposto a ser fintado por aquela caricatura gorda de Garrincha. Então Bellini avisou-o: «Escute. Ninguém veio aqui para te ver ou para me ver. Vieram para ver o Garrincha. Por isso finja que foi driblado». Garrincha bem tentou. Mas desequilibrou-se e caiu sozinho. Alguém no público gritou: «Esse cara está bêbado!» Bellini ajudou-o a sair do campo. Garrincha nem percebia o que lhe estava a suceder. Nas suas veias corria pouco sangue por entre o álcool.

De Garrincha, diziam alguns que tinha uma finta sempre igual: parava frente aos defesas, a bola ligeiramente adiantada, meio caído para a direita, como se os convidasse a tirar-lha – quando eles faziam um gesto, tocava a bola para as suas costas, parecia que ia cair, e partia como uma seta, deixando-os para trás. A finta podia ser sempre a mesma, mas nunca ninguém descobriu a forma de pará-lo. O público ria-se. Nélson Rodrigues escreveu: «Garrincha foi o jogador que ensinou o público a rir». E continuava: «Soa o riso da multidão – riso aberto, escancarado, quase ginecológico. Dizem os técnicos do Velho Mundo: «Só dribla para a direita!» Era a falsa verdade que se tornaria universal!

Um dia, o Vasco da Gama surgiu com uma táctica revolucionária para parar Mané Garrincha: usava três jogadores em fileira para o impedir de chegar à linha de fundo de onde partiam os seus centros mortais. Garrincha destruiu a táctica do Vasco: fintava os três.

Um mundo de filhos

Garrincha teve treze filhos – dez raparigas e três rapazes. Os rapazes parecem ter sido marcados pelo seu destino trágico. Manuel Garrincha dos Santos Júnior, o Garrinchinha, filho de Elza Soares, morreu dois anos depois do pai, apenas com nove anos de idade. Neném era filho de uma sua antiga namorada de Pau Grande, Iraci. Esse, os portugueses tiveram a oportunidade de conhecer. Quando foi descoberto em Pau Grande, por um olheiro do Fluminense, era um fenómeno igualzinho ao pai: ponta direita, magrinho, pernas tortas. Mas o menino cresceu em tamanho e não em talento. O Fluminense bem tentou explorá-lo, convencido de que poderia ter outro Garrincha igual ao primeiro. O jornal O Globo chegou a fazer uma primeira página de pai e filho, com uma bola no meio. Quando perceberam que Neném Garrincha nunca seria como Mané, venderam-no para a Europa. Veio para o Belenenses, mas não teve sucesso. Serviu, quanto muito, para animar jornais. De Portugal seguiria para a Suíça. Morreu em 1992, num acidente de automóvel, com 28 anos. Já a mãe de Ulf Lindberg garantiu toda a vida que ele também é filho de Garrincha. Nunca ninguém a desmentiu, nem mesmo a cara do rapaz que é chapada a do pai. Ulf vive em Halmstad. E nunca quis ser mais do que jogador de bairro.

A socióloga brasileira, Patrícia Melo, escreveu um dia esta frase no seu livro O Matador: «Porque todos nós, o Ser Humano, odiamos o sucesso do outro Ser Humano, por isso odiamos Pelé. Pessoalmente não odeio o Pelé, pessoalmente tu não odeias o Pelé, mas a nossa alma odeia o Pelé porque não morreu alcoolizado, na miséria, humilhado. A humilhação é algo que nos cai bem». Não, Pelé não morreu alcoolizado, na miséria, humilhado. Quem morreu alcoolizado, na miséria, humilhado, foi Garrincha. No dia 20 de Janeiro de 1983, no Hospital Neurológico do Alto da Boavista, no Rio de Janeiro. No dia seguinte, num dos muros da cidade, alguém escreveu a letras negras: «Obrigado Garrincha, por você ter vivido!».

Pode ser que haja, no Brasil, muita gente que odeie Pelé; mas ninguém odeia Garrincha. O jornalista inglês Alex Bellos, que passou largos anos no Brasil recolhendo histórias sobre o futebol brasileiro, explica assim o fenómeno: «Pelé simboliza a vitória; Garrincha simboliza o prazer do futebol. O Brasil não é um país de vencedores, é um país de gente que gosta de se divertir. A Pelé chamam “O Rei”: veneram-no; a Garrincha chamam “A Alegria do Povo”: adoram-no». Nelson Rodrigues acrescentava no seu magnífico exagero: «Jogado por outro homem o mesmíssimo futebol, seria o desastre». Por seu lado, João Pedro Stedile, um dos fundadores do Movimento dos Sem Terra, dizia: «Garrincha era a síntese do brasileiro: pobre, criativo e solidário. Era um pobre trabalhador de têxteis que, com a sua simplicidade e o seu talento para o futebol, encheu-nos de alegria».

O pequeno pássaro

Quando Manuel Francisco dos Santos nasceu, no dia 28 de Outubro de 1933, em Pau Grande, Distrito de Magé, a pouco mais de cinquenta quilómetros do Rio de Janeiro, o seu defeito nas pernas já era evidente: a sua perna esquerda curvava para fora e a sua perna direita curvava para dentro. Tornou-se uma criança pequena e meiga. A sua irmã mais velha, Rosa, costumava dizer que ele se parecia com um passarinho, um garrincha. A alcunha pegou. Dizem os seus biógrafos que Garrincha passou a sua juventude a caçar, a pescar, a fornicar e a jogar futebol. E que tinha um talento intuitivo para todas essas atividades.

Por causa das suas pernas tortas, Garrincha era capaz de se escapar com rapidez para as direções mais imprevisíveis. Tornou-se um jogador fantástico, mas foi, pela vida fora, simples, descuidado e sem ambições. Chegou ao Botafogo aos 19 anos, quase obrigado pelo seu amigo Mané Caieira, que via nele um talento sem igual. Antes disso, apresentara-se no Vasco da Gama e no Fluminense. No Vasco, mandaram-no para casa porque não trazia botas; no Fluminense foi-se embora a meio do treino para apanhar o último comboio para casa. No seu primeiro treino no Botafogo, colocaram-no frente a frente com Nílton Santos, o defesa esquerdo da selecção brasileira. Fintou-o sempre que quis e cometeu ainda o sacrilégio de lhe passar a bola por entre as pernas. Diz a lenda que Nílton Santos aconselhou o seu treinador: «É melhor ficarmos com ele. Prefiro tê-lo por mim do que contra mim».

Os invencíveis!

Garrincha espantou o Brasil e espantou o Mundo. Tornou-se, com Pelé, o símbolo do futebol brasileiro: mágico, alegre, dançado, brincalhão. Para os brasileiros, a verdade da magia daqueles que foram os seus maiores jogadores de todos os tempos está expressa neste facto: Pelé e Garrincha jogaram 41 jogos juntos pela selecção canarinha – com eles em campo, o Brasil nunca perdeu! E, na canarinha, Garrincha só perdeu um: precisamente o último, no Mundial de 66, contra a Hungria.

Viveu apaixonado pelo futebol, pelo álcool e pelas mulheres. Durante toda a carreira nunca deixou de aproveitar os momentos livres para regressar a Pau Grande e jogar no seu velho campo pelado, descalço, com os seus amigos de infância. Depois, bebia com eles quantidades federais de cerveja. Também por isso foi um fenómeno. Nunca teve regras, nem nos relvados nem na vida. Uma vez, o treinador da selecção brasileira, Vicente Feola, tentava dar instruções aos seus jogadores, no balneário, antes de um jogo importante. Garrincha, como sempre não prestava atenção: lia uma revista de quadradinhos. Feola disse-lhe: «Tu vais para dentro do campo e fazes o que quiseres». Era essa a táctica de Garrincha. 

As suas pernas tortas deram-lhe dinheiro, muito dinheiro. Dinheiro que guardava em casa, dentro de gavetas, debaixo do colchão, no interior de jarros de flores. Dinheiro que gastou em profusão com amigos que dele abusaram até ao fim, com as várias mulheres que teve, com os treze filhos (dez raparigas, oito da primeira mulher, Nair) de que foi pai. Um teste psicológico feito pelos responsáveis da selecção brasileira antes do Mundial de 1958, declarou taxativamente: «O seu nível de agressividade é zero; a inteligência é abaixo da média – não tem sequer capacidade para dirigir um autocarro». Esse mesmo teste disse de Pelé: «Falta de sentido de responsabilidade; infantilóide». Pelé tinha desculpa: contava apenas 17 anos. Talvez tenha sido por causa dos resultados desse teste que Garrincha e Pelé ficaram de fora da equipa nos dois primeiros jogos do Mundial. O Brasil foi medíocre. A partir do terceiro jogo, com ambos em campo, o Brasil foi sublime. E Campeão do Mundo pela primeira vez.

Quatro anos depois, Garrincha (sem Pelé, lesionado) levou o Brasil às costas para o seu segundo título mundial. Vinicius de Moraes apelidou-o de «Anjo das Pernas Tortas». E começaram aí os dias tristes da sua degradação. As cartilagens dos joelhos cediam a olhos vistos, o alcoolismo acentuava-se, as depressões multiplicavam-se, tentou o suicídio por mais de uma vez. A sua relação com a cantora Elza Soares foi vista por muitos com inveja e valeu-lhe, até, inimigos que jamais conhecera. Garrincha arrastava-se no campo e na vida. O Botafogo obrigava-o a jogar, mesmo sofrendo dores insuportáveis, para não perder os cachets milionários que a sua presença na equipa valia. Quando Garrincha já não passava de uma sombra patética do enorme jogador que tinha sido, deixaram-no seguir para o Corinthians, Flamengo e Olaria, onde continuou a arrastar-se, gordo e coxo, atraindo atrás de si milhares e milhares de pessoas que se recusavam a aceitar que a «Alegria do Povo» chegara ao fim.

No dia 18 de Janeiro de 1983, Garrincha teve alta do Hospital do Alto da Boavista, onde estivera internado cinco dias para desintoxicação. No dia 19 passou toda a manhã a beber cachaça. No regresso a casa sentiu-se mal e tombou inanimado no chão do quarto. Vanderléa, a sua terceira mulher, chamou a ambulância. O seu cérebro, coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino delgado e rins estavam parcialmente destruídos. Às seis horas da manhã, um edema pulmonar matou Mané Garrincha. No seu túmulo, no cemitério de Raiz da Serra, em Pau Grande, escreveram: «Garrincha/Alegria de Pau Grande/Alegria de Magé/Alegria do Brasil/Alegria do Mundo». E alguém acrescentou por baixo: «Ele foi uma criança doce/Ele falava com os passarinhos».