Assédio em Vila do Conde

O treinador de futebol feminino Miguel Afonso trocou umas mensagens por telemóvel com umas jogadoras e foi despedido. Lembrámo-nos de Bill Clinton, que teve sexo com uma estagiária no palácio presidencial e continuou Presidente. 

Em 1998, o Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, foi acusado por um jornal de ter mantido três anos antes relações sexuais na Casa Branca com uma estagiária, Monica Lewinsky. Num primeiro momento, o Presidente negou; depois mentiu ao Congresso e houve um processo de impeachment; finalmente, acabou por ficar. 

O primeiro encontro entre Clinton e Lewinsky foi descrito assim por um jornal brasileiro:

 «Quarta-feira, 15 de Novembro, 1995

Lewinsky testemunhou que teve seu primeiro contacto sexual com o presidente na noite de quarta-feira, 15 de novembro de 1995, enquanto estagiária da Casa Branca. Duas vezes naquela noite o presidente convidou Lewinsky a encontrá-lo perto do Salão Oval.

Na primeira ocasião, o Presidente levou Lewinsky ao estúdio do Salão Oval, e eles se beijaram. Na segunda, ela fez sexo oral com o presidente no corredor do lado de fora do escritório do Salão Oval. Durante esse encontro, o presidente tocou e beijou os seios nus de Lewinsky. Além disso, ele colocou sua mão dentro das calcinhas de Lewinsky e diretamente estimulou sua genitália».

Depois deste, ocorreram mais dez encontros, todos semelhantes. O caso era grave. O Presidente tinha sobre a estagiária um claríssimo ascendente, pelo que não devia em caso nenhum convidá-la para encontros sexuais, muito menos na Casa Branca. Mas a coisa passou – e ele ficou.

Há uns dias, o ex-treinador da equipa de futebol feminino do Rio Ave, Miguel Afonso, foi acusado de assédio por umas jogadoras de Vila do Conde e foi despedido do seu atual clube, o Famalicão. 

Já vi algumas das mensagens trocadas entre o treinador e umas jogadoras e não são propriamente ‘escandalosas’. Não são explícitas, não contêm palavrões nem linguagem ordinária. Podem ser consideradas ‘atrevidas’, no limite. Na mais ‘ousada’, o treinador convida uma jogadora a mostrar a sua «coragem», mas não diz de que ‘coragem’ se trata. É tudo por meias palavras.

E esse convite não surge a seco mas no meio de uma troca de mensagens. Ele ‘fala’, ela responde, ele volta a ‘falar’, etc. A rapariga, se quisesse, podia perfeitamente ter cortado o diálogo.

Devo dizer que não acho propriamente edificante aquele tipo de conversa. Mas daí a ser crime vai uma enorme distância. E não será com certeza razão para despedimento. Um treinador é despedido por, noutro clube, ter trocado mensagens supostamente atrevidas com jogadoras? 

Como tenho escrito, o assédio é um terreno muito pantanoso. Onde acaba a ‘sedução’, eventualmente inocente, e começa o assédio? Havendo atração entre homens e mulheres, é natural que entre uns e outros haja piropos, propostas, convites. Mal será quando os homens (e as mulheres) se tornarem indiferentes e deixarem de reagir aos encantos recíprocos. Nesse dia, o assédio acabará. Mas muito mais coisas terão acabado… 

Enquanto houver atração sexual, haverá casos de sedução nas relações de trabalho, porque é difícil separar completamente as relações profissionais das relações pessoais. É perfeitamente natural que um chefe (homem ou mulher) se sinta atraído por um subalterno e lho diga – ou lho faça sentir. Não há nenhum mal nisso. O problema é se houver chantagem emocional, ou violência psicológica ou física: pressões indevidas, ameaças, tentativas de sexo não consentido. Aí sim, haverá crime, Mas poderão considerar-se ‘crime’ mensagens ambíguas de sms? 

Por mais que se faça – e hoje há muita gente a trabalhar para isso – entre homens e mulheres as relações nunca serão ‘puras’, inócuas, destituídas de qualquer carga sexual – e ainda bem, digo eu. Isso só acontecerá quando o desejo acabar. Criminalizar situações de pequena ‘transgressão’ neste campo, sem qualquer carga criminosa, é um passo para uma sociedade assexuada, sexualmente indiferente, onde a atração não exista.

E termino como comecei: Clinton teve sexo com uma estagiária no palácio presidencial e continuou Presidente. O treinador Miguel Afonso trocou umas mensagens inócuas por telemóvel com umas jogadoras e foi despedido. Fará isto algum sentido? 

Vivemos tempos pouco saudáveis de um falso puritanismo e de perseguições inquisitoriais que não anunciam nada de bom.