Bruno Latour. A lucidez do filho pródigo da ciência moderna

Um iconoclasta no seio das ciências, que desafiou o valor transcendental dos seus factos, e que mais tarde se revelou um aliado decisivo frente aos ataques dos grupos de interesses que pretendem minar o consenso a respeito da crise climática, Latour morreu aos 75 anos, vítima de cancro do pâncreas.

Bruno Latour. A lucidez do filho pródigo da ciência moderna

Morreu no passado domingo o sociólogo e filósofo francês Bruno Latour, uma figura cuja centralidade seria difícil exagerar no que toca a um conjunto de debates e controvérsias nucleares no que respeita a tentar perceber o que realmente conhecemos e como lá chegámos, tendo originado um período de invulgar hostilidade no campo das ciências. Mas se a polémica parecia restringida aos limites do mundo académico, como os argumentos de Latour previam, as suas ramificações viriam a ter um alcance bem mais vasto, fazendo eclodir uma profunda crise de valores, que assentaria na própria noção de uma realidade partilhada. Isto veio a dar-se à medida que as tensões sociais e económicas chegavam a um ponto em que, para se fazerem valer politicamente, um conjunto de interesses que exigiam a continuidade do modelo em vigor, sentiram a necessidade de pôr em xeque a credibilidade da ciência moderna. Latour, que viria a ser acusado por muitos dos seus críticos de ter aberto a Caixa de Pandora que, supostamente, conduziu ao ambiente da Pós-Verdade em que estamos imersos, disse que foi precisamente pelo enorme respeito que tinha pela ciência que quis debruçar-se sobre as suas metodologias de investigação, analisando os procedimentos na base do apuramento dos factos científicos, demonstrando a forma como estes se sustentam por toda uma arquitectura humana, uma rede institucional que permite que as suas descobertas se tornem inteligíveis e alcancem expressão. Assim, aquilo que se obstinou em tornar claro é que os mais elementares factos da narrativa que construímos sobre um qualquer fenómeno não retiram a sua força de uma veracidade inerente, mas da autoridade das instituições em causa, a qual é assegurada pelo conjunto de práticas e garantias que sinalizam o seu compromisso com a busca da verdade. O que Latour pretendeu foi que se reconhecesse que a ciência não é um ponto de vista desinteressado, mas uma construção humana, em muitos aspectos falível, e que a força do seu método reside no conjunto de protocolos que assume para ir aperfeiçoando as suas pesquisas.

Mas ao apontar o calcanhar de Aquiles na forma como a ciência estabelece certos factos como verdadeiros, no entender daqueles que se lhe opunham, Latour teria apontado uma fragilidade que, fosse ou não essa a sua intenção, levou a uma perda de fé e a que um pernicioso ambiente de suspeita se instalasse, a ponto de se impor um relativismo cínico por parte de certos campos reaccionários que se permitem, assim, estabelecer uma equivalência entre os achados das instituições independentes e as contrafacções produzidas por organismos financiados no esforço de minar o consenso científico e aumentar o cepticismo à volta de questões tão prementes como a crise climática. O próprio Latour, que viria a tornar-se o sociólogo e filósofo mais lido e discutido internacionalmente na defesa da causa ecológica, também manifestou muitas vezes o receio de que as “armas” que desenvolveu no seu processo crítico tivessem sido “traficadas” para o outro lado, à medida que a máquina de propaganda das corporações se empenhava em fazer uma caricatura grotesca daquele processo de auto-crítica, que não era outra coisa senão mais um sinal do compromisso em representar de forma transparente os procedimentos científicos. Mas quanto mais lhe era assacada responsabilidade pelo ambiente de poluição das ideias em que vivemos, com a proliferação de teorias da conspiração e todo o enredo de equívocos e ruído dos factos alternativos, mais se provava como Latour foi presciente nas suas teses, tão vitais num momento em que a ameaça que se coloca perante as novas gerações é existencial. E mesmo se mostrava preocupação com a forma como as suas teorias haviam sido capturadas e travestidas por cientistas sem escrúpulos, todos esses que formulam os seus pareceres para acompanhar as licitações, Latour insistia que este ambiente em que a sociedade descende a novas formas de obscurantismo por erosão dos seus valores demonstra que a tradicional imagem dos factos nunca foi realmente sustentável. Assim, o regime da pós-verdade não nasce apoiado nas ideias de Latour, simplesmente validam-nas. E agora que estão sob ataque as redes que sustentam e dão crédito a certos factos cruciais, o contributo deste pensador passa pela noção de que, em vez de uma ideia de defesa dos factos como verdades absolutas ou transcendentes, o que é necessário é repensar a retórica da ciência, e em vez de apelar à crença no valor indisputável dos seus factos, demonstrar antes que estes se sustentam em robustas redes que articulam o trabalho de uma série de investigadores, os quais examinam e desafiam as conclusões uns dos outros, e que, no caso da análise climática, por exemplo, é preciso este tipo de arquitectura institucional que falta ao outro lado. Ou seja, a ciência é mesmo uma questão em conflito, e um bom motivo para se fazer a guerra. Isto a partir de um momento em que se pretende alterar comportamentos em larga escala e influenciar o impacto que as nossas sociedades têm na degradação das condições de vida no planeta.

Bruno Latour demonstrou também que, face à gravidade da crise que enfrentamos, o actual clima de conflito civil planetário em curso não passa de uma interiorização no plano político e cultural de um enorme sentido de impotência, isto quando ninguém sabe o que fazer para aplacar a fúria da natureza, perante a agressão aos ecossistemas, e isto quando todas as medidas programadas para diminuir as emissões de dióxido de carbono, mesmo as mais eficazes, apenas resolvem uma pequena parte do impacto ecológico do nosso modo de vida. Neste contexto, quando parece haver uma guerra do presente ao futuro, das gerações mais velhas às mais novas, o Estado nos regimes democráticos não consegue solver estas oposições, não se consegue armar devidamente para a a mutação ecológica que lhe é exigida, sendo que, para contrariar a catástrofe, seria necessária a mobilização colectiva, universal, da sociedade civil. De resto, Latour vinca que é importante duvidar seriamente da ligeireza com que os poderes políticos nos querem convencer de que possuem os instrumentos eficazes e um controlo do tempo certo para realizar uma mutação ecológica.

A resposta, contudo, e por mais consolador que seja eleger a ciência como uma bússola que nos oferece orientações insofismáveis, não pode passar por aí, e é importante resistir à tentação de regressarmos a uma visão heroica da ciência. Perante os ataques de que esta é alvo, Latour entende que a única forma de reforçar a ciência passa precisamente por criar um regime aberto e em que se possa disputar os seus métodos e resultados.

Bruno Latour foi um radiante iconoclasta, um intrépido antagonista que recusou postulados e os argumentos de autoridade, e que fez valer o seu génio heterodoxo e indisciplinado, usando o pensamento crítico para perturbar velhas fronteiras, aquelas que barram o pensamento de avançar sobre os diferentes saberes com um ânimo bárbaro, embaraçando a impostura de alguns dos seus protocolos. Um híbrido de sociólogo, filósofo e antropólogo, muitas das suas teorias e análises foram sucessivamente ignoradas e recusadas antes de se se abaterem sobre os portões como um aríete, abrindo caminho para uma nova atitude perante o saber e as ideias, capaz de um exame bem mais implacável e de um percurso mais aventuroso, misturando rigor e fantasia, enervando os espíritos, chamando-os para a consciência do papel político que cabe à ciência desempenhar num mundo bem mais complexo e desafiante, ao ponto de se estabelecer um vínculo mais profundo e natural entre o campo das ciências exactas e o das ciências humanas, sem deixar de fora também o regime das humanidades. Nas suas últimas palestras, Latour passou a incorporar cada vez mais elementos teatrais, não recusando um efeito dramático e até espectacular às suas apresentações, de tal modo que o seu corpo chegava a ser engolido pelas imagens e pelo texto que projectava na superfície que tinha nas suas costas. Também foi curador de uma série de exposições de arte, sinalizando esse desejo levar ao limite a sua perspectiva transdisciplinar e inovadora. O seu doutoramento, em 1975, fora em teologia, com uma tese sobre exegese e ontologia. No fundo, a sua especialidade era essas cláusulas que fixam trilhos que não devem confundir-se, e tornou-se muito hábil em desmontar ficções a respeito de limites invioláveis. De resto, e como lembra Marino Niola num obituário publicado no diário italiano La Repubblica, é precisamente um oxímoro como “humanidades científicas” o que está no cerne da obra de Latour, autor para quem a oposição entre humanismo e ciência, mais do que estéril é enganosa, uma separação artificial e cada vez mais insustentável. De acordo com essa velha proposição, de um lado estariam ciências naturais, como a química, a física, a biologia, a genética, que se regem pela linguagem exacta dos números e a descrição muito concreta e objectiva de certas experiências, e, do outro, teríamos as matérias culturais, as humanidades, as quais, por sua vez, gozariam do primado das forças criativas, da intuição e da imaginação. Latour quis estilhaçar estas concepções num momento em que elas mesmas produziam cada vez maiores equívocos e uma anquilose das faculdades críticas, especialmente face a fenómenos como a ecologia, em que para se fazer uma análise não só das causas como dos efeitos é preciso uma compreensão em que se é necessário violar todas estas fronteiras.

Latour recebeu o Prémio Holberg, em 2013, e o Kyoto, em 2021,  cada um deles sendo considerado o equivalente ao Nobel das humanidades e ciências sociais, e o júri do primeiro destacou precisamente a importância da sua obra na “reinterpretação da modernidade”. E em janeiro de 2020, o Magazine Littéraire incluiu-o na lista dos dez pensadores mais influentes do mundo, ao lado de nomes do calibre de Marta Nussbaum, John Searle, Jürgen Habermas, Judith Butler ou Slavoj Žižek. Por sua vez, um perfil no “The New York Times”, em 2018, considerava-o “o mais célebre e mais incompreendido filósofo francês”. E isto porque, se a sua influência parece ter, hoje, um alcance global, muitas vezes as suas ideias são ainda absorvidas segundo uma compreensão bastante atávicas dos desafios que se nos colocam. E o principal contributo de Latour foi actuar como uma bactéria higienizante, desmistificando uma série de elementos que continuam a dividir e segmentar os esforços de compreensão da realidade, produzindo uma obra eclética, culta e que pretendia chegar a todos. Assim, ao longo de uma carreira de cinco décadas, nesse esforço de extravasar os diferentes campos do saber, partindo da teologia, sociologia e da antropologia, Latour urdiu um fio condutor que influenciou campos tão diversos como a gestão empresarial ou a teoria literária. Esse fio que atravessa toda a sua investigação é a ideia de que os factos não se autonomizam de um certo código social, mas que é preciso uma chave interpretativa e todo um esforço para que o seu conteúdo articule as relações entre pessoas, ideias e objectos.

Esta ideia de que mesmo os factos científicos não são elementos puros que estão lá para ser descobertos, mas que emergem de um longo processo em que há avanços e recuos nos laboratórios e que são apurados e afinados através de debates a partir de resultados imperfeitos ou incompletos, e que acabam por se firmar ou não sempre num determinado contexto político ou social, levou muitos a tomarem Latour como alguém que veio fundamentar uma perda de fé na noção de uma verdade objectiva. E o facto é que muitas vezes, até pela sua natureza desabusada, ele contribuiu para que a imagem que se tinha dele fosse a de alguém que não deixava escapar uma oportunidade de ser provocador. As facécias abundavam nos seus ensaios, como aquele seu comentário, num texto de 1988, de que o faraó egípcio Ramsés II não podia ter morrido de tuberculosa por que a bactéria só foi descoberta em 1882.

“Algumas das minhas críticas raiavam, sem dúvida, o ridículo”, admitiu numa entrevista à revista Science, em 2017. “Não é que eu fosse anti-ciência, mas devo confessar que me dava um certo gozo irritar os cientistas. Pode-se dizer que não faltava uma boa dose de entusiasmo juvenil no meu estilo.”

Bruno Paul Louis Latour nasceu a 22 de junho de 1947 na Borgonha, em Beaune, capital mundial do vinho, no seio de uma família com grande tradição na viticultura. O pai, Louis, representava a quarta geração à frente da Maison Louis Latour, onde a mão, Yvonne Riboud, também trabalhava. Era o mais novo de oito irmãos, tendo crescido todos entre as vinhas e levados a tratar delas, uma experiência que Bruno detestava. E uma vez que recaíra sobre um irmão mais velho a responsabilidade de seguir todos os aspectos do negócio de família para um dia tomar conta dele, Bruno pode dedicar-se inteiramente aos estudos. Mas reconhecia o papel capital que a sua infância teve para o levar a compreender a forma como as relações humanas influenciam a paisagem natural ao redor. Aos 17 anos, foi enviado para Saint-Louis de Gonzague, uma das mais prestigiadas escolas de Paris, onde ele se viu entre a prole da elite francesa. Ainda que fosse oriundo de uma família rica, bastante culto e católico, sentiu-se muitas vezes atingido e enxovalhado pelo virulento snobismo que caracterizava aqueles meandros na capital. Como escreve Ava Kofman no perfil que lhe dedicou em 2018 no The Times, fizeram-no sentir como um orgulhoso herói provinciano de um romance de Balzac que chega a Paris e não demora a dar-se conta de que não sabe orientar-se entre os enredos e intrigas desse outro mundo. Foi naquela escola que Latour começou a estudar filosofia, sendo que o primeiro que se viu obrigado a ler foi “A Origem da Tragédia”, de Nietzsche, que ele reconheceria mais tarde que, ao contrário de toda a confusão das matemáticas, o atingiu com a clareza de algo que se mostra perfeitamente racional. Latour viria a ter a nota mais elevada no exame nacional, mas nem com todo o sucesso académico deixou de se sentir bastante constrangido com o ambiente que encontrou depois na Universidade de Dijon, onde entrou em 1966. Começa a desenhar-se então o seu cepticismo face a todo o positivismo heróico com que esbarrou nas aulas de ciência e filosofia, virando-se para Nietzsche para lhe corrigir a postura e afiar as suas percepções críticas. Mais tarde, e para escapar ao serviço militar, trabalhou na Costa do Marfim, num programa similar ao Corpo da Paz. Um dos trabalhos que lhe foi confiado foi o de analisar porque razão é que as empresas francesas contratavam tão poucos locais para as posições de executivos. As empresas queixavam-se de que aqueles que concorriam a essas posições não tinham a preparação nem a inteligência para desempenhar essas funções, mas Latour viria a demonstrar que o problema estava na formação, na forma como esta se baseava em teorias abstractas, em vez de a educação ser norteada pela aplicação prática dessas teorias. Esse foi a primeira vez que Latour se confrontou com os mecanismos ocultos e a rede de preconceitos que impedem que sejam apontadas falhas bastante evidentes que demonstram que o problema está antes naqueles que implementam certas políticas discriminatórias. Foram essas suas pesquisas que em breve o levariam ao Salk Institute, onde chegou depois de um convite de Roger Guillemin, um endocrinologista francês que viria mais tarde a ser laureado com o Nobel da medicina.

Numa entrevista à revista Cult, Latour explicou qual era o cenário à época em que começou a fazer as suas primeiras investigações: “Fazíamos a antropologia dos outros, mas não a antropologia de nós mesmos, com excepção das margens, dos aspectos marginais da nossa sociedade, do que sobreviveu: da magia, das festas, da sociabilidade. Mas jamais fazíamos a antropologia do próprio centro a partir do qual realizamos as nossas actividades. Aprendi antropologia com excelentes antropólogos na África negra, e, quando regressei à Europa, fiquei surpreso com esta assimetria. Quando fazemos antropologia (no exterior da nossa cultura), estudamos coisas que nos parecem realmente centrais para as comunidades nas quais passamos a viver. Mas, quando o olhar recais sobre aos europeus ou os ocidentais, pensamos que a antropologia se refere somente à parte marginal.”

Esta atitude muito crítica dos pressupostos sociológicos viria a fazer de Latour, como lembra Niola, um autor de culto sobretudo entre as tribos ecológicas, antiespecistas, animalistas, antiocidentalistas, não binárias, às vezes confusas, todas fortemente antagónicas de uma modernidade que endureceu as categorias e produziu uma série de novos condicionamentos. Latour quis demonstrar como a realidade é sempre um híbrido e se furta a classificações demasiado estanques, e bateu-se para denunciar a forma como as separações artificiais às quais obedecemos são o fruto de um saber subserviente aos interesses de uma política de dominação, que, entre outros desequilíbrios, está na origem do actual desastre ecológico. Para superar este regime, Latour propôs um “parlamento das coisas”, o qual passaria por uma reconversão das funções políticas tradicionais, cabendo aos especialistas actuarem enquanto representantes de coisas, objectos, animais, plantas, ambientes. “O efeito seria o de limpar a ideia de representação de qualquer resíduo antropocêntrico”, frisa Niola. E foi numa tentativa de levar a cabo este programa de reeducação, o qual deveria começar por expor os interesses subjacentes a cada descoberta científica, que Latour quis tornar-se um antropólogo dos cientistas, mas também dos burocratas. Assim, em vez de o seu trabalho de campo ser feito junto de populações em lugares remotos e exóticos, fê-lo nos laboratórios de neuroendocrinologia do Salk Institute em San Diego ou nas salas secretas do Tribunal de Contas francês, de forma a trazer à tona os pressupostos sociais e económicos de uma ciência que nunca foi tão neutra como quis parecer.