Caos na Justiça. “Já nem existe papel em alguns tribunais para notificações”

Inquérito revela uma sobrecarga de trabalho e falta de recursos. Ao i, o procurador Paulo Castro diz que há magistrados a trabalhar 12 a 14 horas por dia, com consequências ao nível do desgaste físico e psicológico.

O inquérito de avaliação das condições de trabalho divulgado na segunda-feira pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) colocou a nu algumas das fragilidades daquela classe. Há uma carência de recursos humanos, há muitos magistrados de baixa médica e o estado das instalações onde trabalham também deixa a desejar.

Segundo a direção do SMMP, os dados divulgados na sequência do questionário realizado entre o último trimestre de 2021 e o primeiro semestre de 2022 permitiram obter um retrato “concreto, comarca a comarca, das necessidades existentes” no país.

Uma das principais conclusões deste estudo prende-se com a falta de preenchimento dos quadros, sendo que “no penúltimo movimento realizado, 20,5% dos lugares existentes não foram preenchidos (numa amostra de 611 ficaram por preencher 125 lugares relativamente ao quadro legal e destes 106 continuavam em março de 2022 por preencher)”.

“Contudo, dos 15,2% lugares que foram preenchidos em setembro/outubro de 2021, a verdade é que 36,8% o foram a título de reafectação, 31,6% com a colocação de auxiliares, 26,3% com magistrados dos quadros complementares e 5,3% por destacamento”, indica a estrutura sindical. 

Em declarações ao i, Paulo Castro, que integra a direção do SMMP, explica que “muitos lugares que vão a concurso para cada tribunal acabam por não ser preenchidos porque não há magistrados suficientes”, originando a que haja “substituições e acumulações”, através de mecanismos como a reafetação. 

Além disso, mesmo os lugares que são preenchidos, muitas vezes não têm os trabalhadores ao serviço. Os resultados do inquérito apontam mesmo que quase um quarto dos magistrados colocados (23,1%) não está efetivamente ao serviço, devido a situações de doença (37,3%), licenças de maternidade/paternidade (27,6%) e gravidez de risco (12,7%).

No que se refere à saúde e bem-estar, a maioria dos magistrados auscultados (51,1%) admitiu que já sofreu problemas de saúde em consequência do serviço, sendo 57,6% de natureza física e psicológica, 26% apenas psicológica e 16,4% apenas física. Um indicador que, aos olhos de Paulo Castro, traduz uma “sobrecarga de trabalho que vai sendo acumulada, com magistrados a trabalharem 12 a 14 horas por dia, ou mais”. 

“Pode passar a ideia que existe um número muito elevado de baixas, mas da realidade que conhecemos o magistrado está até à última para pedir a situação de baixa e acaba por agravar os problemas de saúde que tem”, indica. 

Isto porque a falta de recursos humanos não permite depois que essas ausências sejam supridas através do quadro complementar, uma vez que “o número de reformas acaba por suplantar em muito o número das novas entradas e também porque o número de candidatos graduados às vagas abertas é cada vez menor tendo em conta que a carreira começa a ser cada vez menos atrativa”, aponta o procurador. 

Seja pela falta de preenchimento de quadros, seja pelas ausências de magistrados por motivos de saúde, quase metade dos inquiridos (41,4%) “realizam mais trabalho do que aquele que consta no conteúdo funcional do seu lugar de origem”.

Na prática, isto significa que “o magistrado, já depois de concorrer para um determinado lugar, vê esse conteúdo funcional alterado e agravado com outro trabalho que não estava inicialmente previsto”. Uma realidade que, de acordo com Paulo Castro, pode muitas vezes obrigar a deslocações, o que implica mais despesas, além de maior disponibilidade e mais horas de serviço do magistrado.

A agravar a situação, no que respeita às condições de trabalho e suas infraestruturas, o retrato obtido também é “claramente desfavorável”, com quase metade dos edifícios a apresentar danos (45,5%), como infiltrações, problemas nos telhados e pavimentos, deficiências nas casas de banho e problemas nos elevadores, bem como a carência de materiais tão simples como o papel. 

“Agora, já nem sequer existe papel em alguns tribunais para notificações, por exemplo, portanto as coisas estão a chegar a um ponto bastante complicado”, denuncia a mesma fonte do SMMP.