“Quando uma floresta desaparece, outra não nasce imediatamente”

A investigadora da Universidade de Coimbra estuda, com a sua equipa, o efeito do aquecimento global na Serra da Estrela.

Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade da Extremadura, em Badajoz, contando com uma especialização pós-licenciatura na mesma instituição e doutorada em Biologia pela Universidade de Salamanca, Susana Rodríguez Echeverría tornou-se investigadora do Instituto do Mar em 2002 e, posteriormente, investigadora auxiliar na Universidade de Coimbra (UC), assim como docente.

Em 2019, tornou-se a investigadora responsável pelo projeto ESTRELA, pretendendo estudar “o efeito do aquecimento global na diversidade e funcionamento dos ecossistemas alpinos da Serra da Estrela”. Feliz com os resultados obtidos até agora, mas com esperança de prolongar esta investigação, a investigadora do Centro de Ecologia Funcional da_UC não esconde que gostaria de continuar a estudar aquela região montanhosa, com a sua equipa, para além de 2023. Até porque, nesse exato ano, depois do mês de junho, arrancará o Plano de Revitalização do Parque Natural da Serra da Estrela.

Como surgiu o projeto ESTRELA – Efeito do aquecimento global na diversidade e funcionamento dos ecossistemas alpinos da Serra da Estrela?

Este projeto de investigação é cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, através do programa Portugal 2020, no âmbito do Programa Operacional Regional do Centro, e também pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia através de fundos nacionais. Já tinha estudado outros ecossistemas e, por isso, nutria muita curiosidade pela Serra da Estrela. Adoro o sistema de montanha e, dentro deste tema das alterações climáticas, as montanhas que estão em clima mediterrânico são sítios muito vulneráveis. Verifiquei que não existia informação sobre esta região, única em Portugal, candidatámo-nos e conseguimos financiamento.

O vosso objetivo foi sempre o estudo das espécies de arbustos que lá se encontram?

O objetivo era estudar dois tipos de ecossistemas típicos do planalto superior da Serra da Estrela: as formações de arbustos e as pastagens. No caso dos arbustos focámo-nos, primeiramente, no estudo dos anéis de crescimento do zimbro (Juniperus communis ssp alpina) e do piorno (Cytisus oromediterraneus), espécies típicas da alta montanha na Península Ibérica e que em Portugal aparecem quase exclusivamente na Serra da Estrela, mas a verdade é que não estudámos mais espécies porque logisticamente seria complicado.

No comunicado explicam que constataram um maior crescimento destes arbustos nos últimos anos devido ao aumento de temperatura mínima na primavera e no outono, que resulta numa estação de crescimento mais longa. Que outras alterações verificaram?

Embora as duas espécies cresçam mais nos últimos anos porque a estação de crescimento é mais longa, respondem de forma diferente. Enquanto o zimbro começa a crescer antes devido ao aumento de temperatura na primavera, o piorno não responde à temperatura de primavera, mas atrasa o fim do crescimento pelo aumento de temperatura no outono. Também verificámos uma menor precipitação no inverno e temperaturas mais altas no verão. Estas têm um efeito negativo no crescimento do zimbro. Outra coisa que percebemos é que, devido às alterações nos usos do solo e dos ecossistemas, dá-se o aumento da quantidade de arbustos. Antes havia mais rebanhos e a diminuição do número de ovelhas tem permitido uma expansão dos arbustos a locais que antes eram pastagens. Os pastores contaram-nos isto e disseram-nos que começaram a aperceber-se esta mudança há 40, 50 anos.

Dos testemunhos dos pastores, houve algum que a tivesse marcado especialmente?

Por um lado, estas mudanças da paisagem são marcantes porque eles estão ali todos os anos e assistem a tudo. Também é muito interessante, dos pontos de vista social e pessoal, porque eles, ao falarem, explicam que a profissão é pouco valorizada e, durante muito tempo, e mesmo agora, quase ninguém a quer ter. Isto porque não é socialmente valorizada nem bem remunerada. Então, aqueles que estão lá realmente gostam daquilo que fazem e, por isso, continuam.

As condições laborais a que estão sujeitos também não facilitam…

Sim, é um facto. A maioria das pessoas com as quais falámos é adulta e havia um pastor que trabalhava com o filho jovem. As condições devem ter vindo a melhorar nos últimos anos mas mesmo assim, são duras: dormem nos próprios veículos ou em abrigos. As pessoas novas já não estão habituadas a estas adversidades.

Iniciaram o projeto no primeiro ano da pandemia de covid-19?

Pois, exatamente… Não correu muito bem!

Quais foram as vossas principais dificuldades?

O projeto tinha começado em 2019, mas no terreno só no ano seguinte. Por um lado, tivemos problemas para nos deslocarmos, trabalharmos no laboratório com as amostras que tínhamos, etc. Por outro lado, foi bom porque não havia pessoas nem o perigo de alguém mexer nas estruturas.

Estiveram na Serra da Estrela durante o pico da pandemia?

Fomos lá poucas vezes. Havia aquele alívio das restrições por motivos profissionais e tínhamos documentos que atestavam que íamos em trabalho. Fomos menos vezes do que aquelas que gostaríamos, claro.

As temperaturas mais altas e o consequente crescimento acelerado também afetam a qualidade nutritiva das pastagens para o gado?

Ainda não sabemos, estamos a fazer testes este ano. Temos estas estruturas em cinco pastagens diferentes, cervunais, e em três delas verificámos que a temperatura mais alta leva a que as plantas cresçam mais, mas em estudos noutros sistemas tem-se entendido que este aumento muda a relação com os nutrientes do solo. As plantas podem crescer mais e não se tornarem mais nutritivas. Os trabalhos estão atrasados e o fim do projeto foi adiado por causa deles.

Em relação à temperatura, contaram com a ajuda do Instituto Português do Mar e da Atmosfera.

Sim, com dados do Observatório das Penhas Douradas. O que acontece nas montanhas é que o relevo e a topografia são muito variados e ter só um ponto de informação de clima não é representativo daquilo que acontece nos outros locais da montanha. Há várias coisas feitas com diversidade de animais e plantas, mas poucas sobre o funcionamento e a dinâmica destes ecossistemas.

A Serra da Estrela é um ponto de atração turística, mas parece que em termos académicos não há tanto interesse? Talvez pouco financiamento?

Sim. Já houve alguns estudos sobre os climas, microclimas, geologia, relevo… Mas, depois, os estudos dependem muito do financiamento disponível. Em determinados anos os temas relacionados com a Serra podem não ser considerados tão atrativos ou então os grupos também não pegam neles. Também tem a ver com a deslocação até aos locais. Agora, com o geoparque, pode haver um interesse científico maior porque está a promover a divulgação de várias áreas científicas.

Com que frequência têm ido verificar as condições das estruturas?

Mensalmente. Desde o início de abril ou maio até agosto, todas as semanas. Recolhemos amostras de solo para explorar a diversidade do mesmo e os tais ciclos de nutrientes e, posteriormente, fazemos amostragens para vermos a diversidade das plantas e o seu crescimento. Temos trabalho de campo e também no laboratório.

Os incêndios não são o vosso foco

mas, na vossa opinião, este tipo

de vegetação potencia a propagação

do fogo?

Estudamos um local acima daquele onde ocorreram os incêndios, mas os arbustos, em geral, queimam com muita facilidade e rapidamente. Há muitos fatores, como sabemos, que influenciam isto, mas também temos de pensar que existem tantas formações de arbustos porque as florestas são queimadas frequentemente e a regeneração natural passa sempre pela presença de arbustos. Quando uma floresta desaparece, outra não nasce imediatamente: temos plantas mais pequenas, pastagens, vegetação lenhosa com os arbustos, etc. Mas se os fogos forem tão frequentes e não conseguirmos chegar a essa etapa, ficamos sempre pelos arbustos. É claro que, se estivermos perante incêndios da dimensão daqueles que aconteceram na Serra da Estrela, é extremamente difícil alguma árvore sobreviver.

Os arbustos que estudam não foram afetados?

O fogo não chegou ali. Tradicionalmente, tem havido uma gestão das árvores e dos arbustos, mesmo na zona alta, em que eram feitas queimadas controladas para surgir mais pastagem.

Como assim, para haver mais pastagem para o gado?

Sim! Queimavam os arbustos para terem uma área maior ocupada por pastagens, que crescem mais rápido, e, assim, ter mais alimento para os animais. No entanto há alguns arbustos que rebentam e esta gestão acaba por contribuir para que cresçam mais que outros arbustos não tão bem adaptados ao fogo.

Já foram lá depois dos incêndios?

Claro, mas não trabalhámos na zona mais queimada. Queremos visitá-la nas próximas semanas.

Gostariam de estudar mais espécies ou fazer algo específico naquela região?

Tantas coisas! Por exemplo, tivemos duas estudantes de mestrado, este ano, que estudaram um arbusto pequenino que cresce por todo o lado e queríamos fazer o contraste com as outras espécies. É claro que, com este problema dos incêndios, estamos a pensar em fazer um estudo acerca da regeneração de algumas das áreas ardidas se tivermos financiamento: para percebermos se os sistemas conseguem regenerar-se ou precisam de alguma ajuda. Porque, muitas das vezes, as plantações que se fazem depois destas situações não são efetivas. Também gostaríamos de estudar o efeito dos microclimas: ter estações meteorológicas em sítios com altitudes diferentes, na Serra, para fazermos estudos biológicos e relacionarmos os mesmos com os ecossistemas. Poderíamos saber que tipo de vegetação podemos e devemos ter em cada tipo de clima. E, assim, entenderíamos qual é a vegetação mais resiliente às alterações climáticas e também ao fogo.

Em agosto, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) divulgou que as espécies mais afetadas pelas chamas tinham sido o pinheiro-bravo e o carvalho.

Provavelmente tem a ver com o facto de serem as espécies mais abundantes na área queimada no vale do Zêzere.

O que falha mais, em termos governamentais, naquilo que diz respeito ao financiamento para estes projetos?

Há pouco dinheiro e, às vezes, anos em que os timings das convocatórias não são cumpridos. Não sabemos quando teremos uma resposta e é difícil planificar o trabalho. Mas o problema principal é geral: pouco dinheiro para a investigação.

O ICNF e as outras entidades apoiaram-vos desde o início?

Foram sempre muito positivos, interessados no projeto, temos colaborado sobretudo com o Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE) da Câmara Municipal de Seia. Há um biólogo que trabalha no CISE que tem sido essencial para identificar as espécies porque conhece muitíssimo bem as áreas. O ICNF ajuda-nos mais com autorizações e logística. E o geoparque também, já ajudaram em vários momentos e podemos sempre falar com eles quando necessitamos de algo. Para nós, é mesmo importante contarmos com a colaboração de todas estas pessoas e instituições. Têm mais informação que, para nós, é difícil de encontrar.

Na semana passada foi inaugurado mais um miradouro na Serra.

Este tipo de construções afeta

a flora e a fauna?

Desconheço o impacto desta obra em particular, mas as construções em sistemas naturais têm sempre algum tipo de impacto. No ponto de vista de encher os espaços naturais com construções, como miradouros, baloiços, passadiços, desvirtua esses espaços. Por exemplo, a proliferação de passadiços têm sido um pesadelo para nós porque, às vezes, são construídos em zonas sensíveis e não se presta atenção às espécies vulneráveis. Tem de se analisar a utilização dos passadiços em diferentes contextos: por exemplo, quando são utilizados em áreas dunares têm um papel positivo porque evitam o pisoteio da vegetação dunar e, portanto, a destruição da duna. Por outro lado, quando são construídos em cima de caminhos ou trilhos de montanha é um impacto desnecessário. Muitas das vezes a construção do passadiço pressupõe a destruição dos trilhos tradicionais e dos habitats de espécies vulneráveis da flora e fauna e o seu desaparecimento. A instalação de passadiços com vários quilómetros de comprimento em zonas de montanha não me parece sustentável, deveriam ser apenas confinados a áreas de acesso mais difícil e onde não afetam a biodiversidade ou a geodiversidade da zona.

Devia haver mais interesse na preservação?

Exato, estas construções podem ficar muito bonitas mas, se calhar, era mais importante preservar aquilo que já existia.

“Há uma coisa que eu recuso é que seja o Governo a dizer ao território o que é que deve ser feito no Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE). Todos estamos de acordo numa coisa, a gestão do Parque tem que mudar. Todos estamos de acordo, tal como está não é gestão. Todos estamos de acordo que, mesmo em dois meses, se fez uma grande mudança”, disse a ministra da Coesão no dia 8 de outubro. Concorda?

Os municípios inseridos no Parque Natural deviam decidir ou contribuir para a tomada de decisão. São eles que estão ali e não lhes devem ser impostas medidas sem serem ouvidos. Seria bom haver um diálogo com a população local e com profissionais, como nós, que podemos contribuir com conhecimento sobre as dinâmicas dos sistemas naturais.

O Plano de Revitalização do PNSE vai começar após junho de 2023 e esse é o ano em que retirarão as estruturas da Serra. Não faria sentido o estudo prolongar-se?

Pois, faria todo o sentido, também acho! O projeto acaba nesse ano e, por enquanto, não temos dinheiro para prolongar o estudo. Quanto mais tempo estudarmos os efeitos, mais conhecimento teremos. Há estudos deste tipo que decorrem há 15 anos e continuam a gerar dados novos. Queremos contribuir com o nosso conhecimento e fazer parte do mesmo, se nos for dada essa oportunidade.