O Estado, a precariedade e Frei Tomás

por Alberto Mateus Vaz Advogado da Cerejeira Namora Marinho Falcão Há cerca de um mês, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) voltou a fazer justiça, ao condenar um ente público, neste caso um Município, a converter um contrato de trabalho a termo de uma trabalhadora, num contrato a tempo indeterminado, depois de mais de 13 anos…

por Alberto Mateus Vaz
Advogado da Cerejeira Namora Marinho Falcão

Há cerca de um mês, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) voltou a fazer justiça, ao condenar um ente público, neste caso um Município, a converter um contrato de trabalho a termo de uma trabalhadora, num contrato a tempo indeterminado, depois de mais de 13 anos com um vínculo laboral precário.

Neste caso, o Município, por razões de ‘urgente conveniência de serviço’, havia contratado uma trabalhadora, celebrando, para o efeito, um contrato de trabalho a termo, com a duração de 12 meses, renovável por igual período. Este vínculo, sob a aparente mudança de funções, foi sendo sucessivamente prorrogado, contrato a termo após contrato a termo, durante 13 anos, findos os quais, a Edilidade decidiu cessar o contrato de trabalho. Face esta decisão, a trabalhadora intentou uma ação contra o Município.

Dir-se-á, sem receio, que esta postura abusiva por parte do Estado merece um conjunto de reflexões.

Em primeiro, é desagradável constatar que nada disto constitui uma novidade, pois existem milhares de portugueses, ligados ao Estado com este tipo de contratos, seja no ensino, com professores, seja, na saúde, com enfermeiros e auxiliares, seja institutos e na administração autónoma, os quais são recorrente e abusivamente prorrogados, sem que os profissionais gozem de um vínculo estável, legal e garantístico, levando, muitas das vezes, a que tenham de recorrer aos meios judiciais para ser feita justiça.

Em segundo, não se concebe como o Estado, cujo déficit humano é gritante nalguns setores, decorrente das sucessivas políticas de ‘emagrecimento’ e da elevada idade dos seus trabalhadores, que acusam um elevado desgaste físico e psicológico, não vislumbra que, entre outros motivos, a fragilidade que impõe na contratação dos seus trabalhadores leva a que muitos optem pelo setor privado, por emigrarem ou por mudarem de profissão ou vocação. O Estado tem vindo a perder a imagem de ser um ente atrativo, seguro e de procura por parte dos novos profissionais.

Em terceiro, não se pode conceber que a Estado possa impor regras diferenciadas para si e para o setor privado. Ainda que a contratação em funções públicas careça de todo um procedimento próprio, com regras e timings bem distintos, gozando, aqui, os privados de outra liberdade e celeridade, certo é que no que respeita à contratação e vínculos propriamente ditos, o Estado impôs normas bem distintas. No setor privado, um contrato a termo certo é convertido num contrato sem termo, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 147.º e do número 4 do artigo 149º do CT, bem ao invés do que se mostra definido no artigo 63.º número 2 da LGTFP.

Com efeito, foi sobre este preciso ponto, que o STA e o Tribunal de Justiça da União Europeia, acertada e contundentemente, se pronunciaram. Isto é, o STA foi confrontado com a existência de normas comunitárias – Diretiva 1999/70/CE – e um diploma interno, LGTFP, cujos regimes preveem consequências distintas, em situações de sucessões consecutivas de contratos de trabalho a termo, por parte de entidades públicas.

Pode ler-se, com agrado, no acórdão que «(…) a solução adotada para os contratos a termo no setor público é radicalmente oposta à do setor privado”, não prevenindo, em caso algum, a celebração abusiva de sucessivos contratos a termo (…)».

Significa isto que, a diferenciação criada pelo direito nacional, não tem fundamento na legislação europeia, cuja diretiva não distingue entre os setores público e privado, bem como não se justifica por qualquer razão relacionada com a prevenção de abusos na contratação a termo e no combate à precariedade no emprego público.

Conclui, inclusivamente, o STA que: «Pelo contrário, ao impedir a conversão dos contratos em contratos sem termo, aquela diferenciação favorece os abusos na contratação, na medida em que facilita a constituição de vínculos precários, que não geram obrigações permanentes para os serviços públicos, colocando os trabalhadores contratados a termo no setor público numa situação de ainda maior fragilidade e dependência económica em relação à sua entidade empregadora».

Pelo que, estribando-se na posição do TJUE e na sua interpretação das normas em confronto, concluiu o STA que o regime legal português, que proíbe em absoluto a conversão de contratos de trabalho a termo celebrados por entidades públicas em contratos de trabalho por tempo indeterminado, viola o Direito da União Europeia, nomeadamente o art. 5º do Acordo-Quadro anexo à Diretiva n.º 1999/70/CE do Conselho, de 28/06/1999.

Destarte, uma vez mais foi feita Justiça – ainda que demorada – em prol da salvaguarda dos direitos da parte mais desfavorecida e prejudicada, por uma atuação ilegal, abusiva e recorrente do Estado português, que teima – diria até – propositadamente, em pedir aos cidadãos, aos empresários e a todos os agentes económicos – e em particular aos seus trabalhadores – que, tal como Frei Tomás: «Olha para o que eu digo, não olhes para o que ele ».