Yannis Ritsos. “O mundo poderia ter sido belo”

Acaba de publicar-se entre nós um dos mais admiráveis testemunhos da resistência política no século XX, os Diários do Exílio que o poeta grego Yannis Ritsos escreveu a partir dos campos de concentração nas ilhas do mar Egeu.

Tornou-se difícil saber de que consiste, hoje, o mundo enquanto reflexo da experiência humana. Perante a vertigem dos acontecimentos na sua rápida sucessão, e nesta voracidade de um ritmo que nos supera e quase traga, numa época onde o próprio ar já nada tem dos elementos de um tempo em que a medida das coisas era definida pela nossa capacidade de apreensão, onde quer que nos encontremos, a sensação que temos é a de que estamos obrigados a sufocar de exílio, no meio de seduções insanas, incapazes de impor qualquer sentido ou resistência, à medida que a impotência nos devasta. E uma vez que nada se pode fazer, seguimos pelos dias, como quem continuasse a andar e a afastar-se, como quem não pudesse senão continuar a perder-se. Voltamo-nos para as antigas referência em busca de algum amparo, como aquele “Torso arcaico de Apolo”, no poema de Rilke, e é como se às coisas fôssemos buscar o ânimo que nos falta: “Tudo nele te vê, te está a olhar./ Tens de dar novo rumo à tua vida”. Este recorte é feito por João Barrento, no belo ensaio que abre o seu recente livro “A Nave dos Loucos”, remetendo-nos a seguir para a mulher de Parasceve, no livro de Llansol, “que reaprende a ver (e a ser) ao olhar os cacos de um vaso quebrado; formas de percepção e reacção que com certeza andam por aí, no nosso mundo, mas podem ser alargadas e reforçadas”. Perante este desterro, não físico, mas da própria sensação mais íntima que temos do mundo, à medida que somos empurrados para “uma espiral vertiginosa e enganadora”, cabe à poesia interceder pelas coisas, devolver-nos a uma relação mais própria, a uma ordem capaz de restituição, algo que seja até anterior ao sangue. Descobrir a obra de um poeta como o grego Yannis Ritsos tem esse efeito, como comprovou Louis Aragon, um dos grandes responsáveis não apenas por dar a conhecer aos leitores franceses, e depois a todos aqueles que, pelo mundo fora, vinham beber nessa língua o ar mais fino do tempo, mas ainda alguém que se empenhou para que o poeta fosse libertado do confinamento político a que foi sujeito pelo Regime dos Coronéis, depois do golpe que estalou na noite de 21 de Abril de 1967. Aragon falou do sobressalto que lhe provocou a leitura dos versos de Ritsos, sendo um autor de que nada sabia, e tendo-lhe estes chegado à mão logo que foram traduzidos do grego, e antes ainda de serem publicados: “Descobri-o por etapas, de um poema para o outro. Quase que ia dizendo de um segredo para o outro, porque com cada poema o que eu sentia era a agitação de uma revelação.” Pode apreciar-se a força primeiro discreta e, logo, num segundo momento radiante, de versos que nos surpreendem com algo tão súbito quanto doce, versos como estes, do poema “Noite antiga”: “Lá em cima a noite caiu cedo. Noite/ transparente, vasta como o dia; o olival indistinto,/ as ervas queimadas pelo sol entre os mármores,/ o teatro nu, dependurado do declive. Caído,/ e virado, um capacete enorme. Quando chover,/ ficará cheio de água: os estorninhos, o veado,/ o leão, o touro, Crisótemis, os três cães/ do guarda florestal e a lua virão ali beber.” Esta imagem serve bem para ilustrar a forma como os leitores em todo o mundo foram chegando aos versos de Ritsos, um autor que nos embala no “sussurro de uma vida comum”, que nos prepara para ir ao encontro do mundo, “sem gritos, como uma longa e maravilhosa detonação do silêncio”, usando ainda a relação de espanto que levou Aragon a estabelecer com ele esse laço mais profundo, que passa por estar investido no destino do outro, mesmo à distância, mesmo sem o ter conhecido pessoalmente. Naquele artigo de Março de 1971, que só agora circulou entre nós, distribuído na apresentação de “Diários do Exílio” (Edições do Saguão), que teve lugar há dias na Poesia Incompleta, e que passará a ser incluído no volume como um extra-texto, o autor francês dava notícias da situação de Ritsos aos seus leitores, dizendo que fora libertado de Leros, e mais tarde da prisão domiciliária em Samos, na casa da sua mulher – que é médica. “Foi agora transferido para Atenas e está curado da sua velha doença (tuberculose), que o tem torturado; agora está livre…” O poeta viria a morrer na capital a 11 de Novembro de 1990 devido a complicações decorrentes de um aneurisma da aorta, como nos informa o posfácio desta nova edição que lhe é dedicada entre nós, sendo este assinado pelo italiano Claudio Russello, que é hoje um dos grandes estudiosos desta obra, e que adianta que, do seu corpus literário oceânico, que além de poemas incluía peças de teatro, prosa, ensaios e “a imensa doçura da sua correspondência privada”, muito estava então ainda por publicar. Tendo sido o mais prolífico poeta grego do século XX, a sua obra encontra-se actualmente reunida em 14 volumes, mas, como nos informa Russello, no seu espólio encontra-se ainda uma enorme quantidade de versos, prontos a serem descobertos. O mais curioso é que quem quer que beba deste enorme capacete terá a sensação de estar sorver goles de uma água disputada entre estrelas muito distantes entre si, das mais sumptuosas às mais clandestinas, sendo esta sempre uma obra extremamente vigiada e vigilante. E se ali se recolhem exemplos tão diversos entre si, e que variam no tom, no registo mais contido ou exaltado, no compromisso ideológico, assinando obras de “circunstância”, ao passo que noutros momentos estabelece um regime muito próprio de diálogo com os mitos da cultura helénica. A surpresa começa na forma como Ritsos se distancia “do tom áulico que caracterizou a poesia grega precedente”, e se se afasta do ímpeto cantante e desse vigor aparentemente inesgotável que caracterizou os poetas do Egeu, entre eles Odysséas Elytis e Yorgos Seferis (autores que ganharam o Nobel), Ritsos consegue erguer uma obra que assume um compromisso político e de resistência civil admirável a vários títulos, preferindo a simplicidade da linguagem, dirigindo-se a todos os homens, mas, ainda assim, consegue-o sem abdicar desse enigma profundo que atravessa a experiência humana, e os seus versos, por mais simples que seja, demoram-se como só os melhores, cheio de surpresas num mero gole de água das chuvas. É aquele sabor a relâmpagos de que falava Tonino Guerra, esse “pudor que saboreia a sua ofensa”… Que devagar se lêem estes versos, capazes sempre de reforçar o silêncio enquanto comentário decisivo.

Com os seus inventários ou descrições reduzidas ao osso, com essa aspereza e balanço de um sussurro, Ritsos consegue chamar a nossa atenção para a importância do vazio que anima a relação entre isto e aquilo. Ele parece buscar incessantemente nas coisas essa ordem profunda, anterior ao sangue. Hostil e viva, delicada, como a distância imensa que, através da composição, permite criar num verso o isolomento de uma estrela solitária. Assim, temos a sensação que, com o simples acto de nomear certas coisas, se consegue vê-las por dentro. E o que de mais justo se pode dizer sobre a poesia de Ritsos é que esta nos restitui a um ar amadurecido, à clareza de um homem que deteve o tempo, e ao que dele permanece desperto na sua vigília absoluta de objecto, essa ordem que nos assombra. “Escondo-me atrás de coisas simples, para que me encontres./ Se não me encontrares, encontrarás as coisas,/ tocarás o que a minha mão já tocou,/ os traços juntar-se-ão de nossas mãos, uma na outra.”

Se uma obra poética tiver esta capacidade de assombro, a relação irá persistir e gerará em nós o sentido da falta num tempo posterior, em que o sentido se fragilizou de tal modo que o mundo parece ter perdido o gosto. Onde está o real? Esta é a pergunta que nenhuma geração pode deixar de fazer. Ainda que todos já o saibam de cor, ou sobretudo perante essa confiança imbecil. E cumpre sempre a uns poucos, aqueles que atravessam o mundo com o sentido da falta, e de um certo temor calado, fazer esta pergunta. Como escreve o poeta chileno Enrique Lihn, “nada é suficientemente real para um fantasma”. É preciso ir buscar o mundo a algum lado, pois aquilo que mais nos confronta não está em toda a parte. Há algo de inelutável numa época como a nossa, uma sensação de perda, como se a própria capacidade de segurar o tempo nos escapasse. E há um poema, desses mais escolhidos e persistentes que Eugénio de Andrade poliu e deixou à vista naquele precioso volume que se chama “Trocar de rosa”, em que Ritsos imagina esse regresso que seria como uma restituição a um sentido profundo de pertença a este mundo: “As estátuas foram as primeiras a partir. Depois/ foi a vez das árvores, dos homens, dos animais. O local/ tornou-se deserto. Não havia senão vento./ Jornais e lixo corriam pelas ruas./ À noite, as lâmpadas acendiam-se sozinhas./ Um homem chegou, deitou um olhar em redor,/ tirou uma chave, enterrou-a no chão/ como se a devolvesse a qualquer mão subterrânea/ ou plantasse uma árvore. Depois ergue-se, subiu/ a escadaria de mármore e demoradamente olhou a cidade./ Uma a uma, com parcimónia, as estátuas regressaram.” E aqui é evidente como as estátuas representavam o vigor das representações que se pretende que a memória defenda do esquecimento. E se a obra de Ritsos assume um peso tão singular nesta exigência de resgate, mais impressivos do que os seus longos poemas e aqueles que se caracterizam pela coração ideológica, são os tantos mais breves, onde registou diariamente a experiência do seu duro confinamento em campos de concentração espalhados por várias ilhas do mar Egeu. Estes poemas “escritos como um pequeno acto de resistência diária à angústia do exílio” (Russello), entre 27 de Outubro de 1948 e 1 de Junho de 1950, e que foram escritos nas ilhas Limnos e Makrónisos, não foram inicialmente pensados para publicação, e se só mais tarde seriam revistos para esse fim, carregam esse elemento derradeiro da paixão de um homem, a sua capacidade de suster perante restos odiosos uma rara medida de encanto, que consegue ser tão modesto e eloquente ou caloroso, porque é algo com que já não se podia contar. “Esforçamo-nos/ por prender a nossa atenção a uma cor a uma pedra/ ao trajecto de uma formiga. Um abelhão/ que se passeia por uma folha seca faz tanto barulho/ como um eléctrico ao passar. Assim compreendemos/ o silêncio que fez morada em nós.” Mesmo os poemas mais longos, aqueles que foram escritos antes que, além de todos os outros constrangimentos que já lhe tinham sido impostos, Ritsos se visse ainda obrigado pelos guardas a ficar-se por dez linhas e não mais que isso, todos eles exprimem e respeitam antes de tudo esse sentido da privação, da vida que foi subtraída aos prisioneiros. Por isso, parece sempre que debaixo da sua mão “o papel cobre-se de signos, como um osso de formigas” (Enrique Lihn). E é importante vincar que estes poemas, que não podiam estar mais distantes do deleite dessas composições que rimam e se enchem de artifícios verbais, quase sempre se cingem ao uso do plural, ao “nós” daqueles prisioneiros que se resignaram a ser esquecidos. E apesar de uma boa dose de resignação, nunca cessam de exprimir aquela dose de espanto que é ainda um secreto ânimo revoltoso: E nós, como é que cabemos/ nestas camaratas, neste arame farpado, neste tempo?” É um “tempo de pedra” este, um tempo em que “todas as coisas param: como o relógio de um homem assassinado”. Mas ainda há esse silêncio que os revira e torna íntimos de coisas que para a maioria dos homens passam despercebidas: “A mão amputada da noite: o farol quebrado da lua: as migalhas do nada.” Na habituação àquele tempo que se faz para degradar toda a paixão e convicções, para que os homens reneguem a possibilidade de um mundo melhor, diante daquelas “paisagens bexiguentas”, temos uma perspectiva sem igual para essa forma de desacato fabuloso que se dá quando um homem se decide a imaginar um novo conto de fadas a partir dos elementos mais amargos e odiosos: “e quando as noites caminham pela estrada como é possível/ que encontremos de madrugada na parede das latrinas/ os buracos dos pregos dos astros?”

Como quem se sente docemente cercado pela bruma de impossíveis presságios, o poeta torna-se a mais modesta das presenças, na medida em que está ali em representação de qualquer outro homem, e mostra-se capaz de um desafio impensável aos piores constrangimentos a que possa ser sujeito. E, assim, é do mais desolado dos gestos, destas notas escritas nos maços de tabaco, de papelinhos densamente riscados que eram escondidos nos sapatos, que vemos como alguns homens foram capazes ainda de se manter vivos e hostis ao plano daqueles que procuravam fazer deles mais um número servindo o seu assentimento e conformismo a algo de criminoso. “O mundo poderia ter sido belo.” Este verso, com que Ritsos remata um dos últimos poemas do livro, é dos mais duros e tocantes, e é essa insistência em que havia um outro caminho melhor, é isso que se torna insuportável nessa forma de trucidar homens e impor uma realidade abjecta sempre com a desculpa de que não havia alternativa. Mesmo posta de castigo, mesmo na situação mais degradante, a poesia é sempre a insistência nessa outra razão que tem faltado, mas que não deixa de estar ao nosso alcance. E esta é uma das obras mais importantes que se publicaram entre nós nestes últimos largos anos, e que seguirá este percurso que a torna cada vez mais actual e actuante num tempo em que “os jornais envelhecem passado uma hora. É difícil dar notícias num mundo que se consagrou a um movimento constante de obsolescência, à obtuosidade de processos redundantes e que resistem a confrontar o núcleo desesperado daquilo que faz mover as nossas sociedades. Seria preciso ver as coisas por dentro, e, mais do que ser isso o que Ritsos faz aqui, exemplarmente, por o fazer nas condições mais duras, estes poemas admiravelmente traduzidos por José Luís Costa e Rui Miguel Ribeiro, dão-nos notícias, ensinam-nos a fazer o contrário do que é feito por quem faz os jornais e esse admirável mundo novo que tão cedo envelhece. Fazer o contrário, resistir a um mundo que é cada vez mais e só ruído, passa por saber do que é feito o silêncio, de que se fazem as frases que por fim nos calam. E a verdade é que, se trocarmos as imensas privações a que foram sujeitos aqueles homens deportados para aquelas ilhas severas, de costas rochosas e abruptas, que serviram para ensaiar um regime de absoluta desmoralização, se pensarmos neste regime de seduções insanas que, pelo processo inverso, pretende promover a mesma dissolução dos valores e do ânimo moral dos homens, é como se todos nós hoje fôssemos prisioneiros em campos de diversão fatigantes ou de perseguição de ilusões individuais que apenas geram exaustão. E, deste modo, não estamos tão longe assim daqueles homens, ainda que eles estivessem de castigo como esses heróis insuportáveis ou incompreensíveis para a maioria de nós, homens que acatam as piores penas por não serem capazes de abrir mão dessa hipótese de um outro mundo. Homens que perderam tudo, menos essa fabulosa força íntima que fazia do seu silêncio uma coisa cheia de dignidade. “Sombras carregadas de pedras/ o arame farpado/ esqueceste-te da pronúncia correcta/ do teu nome./ Um gato preto corre/ com a lua presa à cauda./ Que estranho –/ Um silêncio tão grande/ E ninguém acorda.”