Love Me Do PS: I Love You. A harmónica roubada de John e a zanga de Ringo Starr

Duas canções transformaram-se num single. Não um single qualquer, o primeiro single gravado pelos Beatles. Foi posto à venda no dia 5 de Outubro de 1962, cumpriram-se agora 60 anos. A canção principal tinha sido escrita muito tempo antes, o grupo nem sequer existia.

Richard Starkey não estava contente. Ah, não. Definitivamente, Richard não estava contente. Chamemos os bois pelos nomes. Claro que Starkey não é nenhum boi nem tem nada de bovino. É uma expressão: só isso. Richard Starkey = Ringo Starr. Para facilitar o desenvolver dos acontecimentos.

Love Me Do tinha sido uma espécie de brincadeira. Ainda não havia Beatles nem nada. Havia a Liverpool do final dos anos 50 e a sua vida das docas e grupos de rapazes e de raparigas que andavam, por ali à solta, como se apanhassem gipsofila por entre as papoilas e atravessassem campos de morangos para sempre. John gostava do som da harmónica.

Levava jeito para aquilo. Tal como levava jeito para assobiar. Paul afinava a voz e cantava: «Love, love me do/You know I love you/I’ll always be true/So please, love me do/Whoa-oh, love me do…» Queriam fazer vozes diferentes para acrescentar uma base mais melódica à canção, mas John não conseguia cantar e tocar harmónica ao mesmo tempo. Era demais para uma boca só, se me faço entender.

Passaram-se uns anos e John Lennon e Paul McCartney gravaram finalmente essa experiência de adolescentes. Agora com outra componente. Na bateria estava o amigo Pete Best. A razão, afinal, porque Richard Sarkey, ou melhor, Ringo Starr, não se encontrava de bom humor. Nessa altura parecia que qualquer bicho careta era candidato a ser o baterista dos Beatles. Pete Best e Andy White gravaram cada um deles uma versão de Love me Do. Ringo haveria de gravar a sua.

Mas havia muita gente em redor dos rapazes de Liverpool que embirrava com Ringo e com o seu estilo desalinhado.

Diziam mesmo pelos corredores do estúdio da EMI, em Abbey Road nº 3, que Ringo nem sequer era o melhor baterista dos Beatles se qualquer um dos outros três estivesse disposto a cumprir esse papel. Vendo bem a sua estreia junto com John, Paul e George no The Cavern, em Liverpool, tinha sido um bocado humilhante. Ouvira gente bastante irritada ao gritos: «Peter forever. Ringo -never!» Francamente aborrecido, há que dizê-lo.

Mas, à medida que o tempo ia passando, a bandalheira instalou-se e a irritação deu lugar à palhaçada. «Where’s Pete?», berravam uns; «Traitors! We want Pete!», exclamavam outros; havia quem espetasse o dedo do meio no ar, de forma bem visível: «Pete is Best!» E Ringo, dando o que podia nas baquetas, escondido no meios dos instrumentos de percussão engolia a afronta.

Haveria de vingar-se e de ser o último a rir ao tornar-se um dos mais carismáticos membros da banda, talvez aquele de quem se esperava algo de absolutamente inesperado, if I may say so. Mas naquela altura os Beatles ainda nem eram Beatles. E Pete Best, bem… esse era Pete Best.

Peter… e depois…

Randolph Peter Best não nascera Best. Nascera Scanland, no dia 24 de Novembro de 1941. Mas, claro, um tipo que tinha o descaramento de adotar o apelido de Best, que era o que tinha herdado da mãe, a proprietária de um bar em Liverpool chamado Cashba Coffee Club havia de ter a sua piada. Foi ele o primeiro baterista de John, Paul e George, que começaram por se intitularem os Quarrymen, e o primeiro baterista dos Beatles, sobretudo na sua fase underground vivida em Hamburgo onde, no bairro de St-Pauli, valia tudo menos… Enfim, valia tudo.

Foi George Martin, o produtor da EMI, que começou por embirrar com Peter. Nessa altura já ele e Brian Epstein, manager dos Beatles, primeiro meio a brincar e depois a sério como o caraças, estavam decididos a pôr a música dos rapazes de Liverpool em vinil. E, estando-se bastante nas tintas para a chamada camaradagem profissional (ou não muito profissional se atendermos à forma como iam levando as suas vidas), John, Paul e George, não obrigatoriamente por esta ordem, interiorizaram que era muito mais importante gravar um disco do que estarem a matar neurónios por causa de um baterista. Best, sempre razoavelmente alinhado, mexia bastante com o público feminino, o que era algo a ter em conta.

Mas Epstein, que tinha muito pouco interesse por espécimes do sexo oposto, resolveu armar em duro. Estava na altura de ser ele a conduzir os Beatles até ao mundo das estrelas, e levou-os muito para além da Via Láctea. Sem Peter. Chamou-o ao seu gabinete no dia 16 de Agosto, precisamente quinze dias antes de as gravações terem início, e despachou-o muito pouco cortesmente. Na véspera, Best tocara com John, Paul e George, e nessa noite também. Depois desapareceu. Diria mais tarde: «Acho que nunca mais voltámos a falar uns com os outros».

Para o seu lugar foi chamado Johnny Hutchinson, dos Big Three. Durou menos que um pau de fósforo. «Sou amigo do Pete», respondeu Johnny. «Nunca faria uma patifaria dessas com ele!». A partir daí a vontade de Lennon e McCartney prevaleceu: Ringo já tinha feito uns concertos com eles para tapar buracos numa fase em que tocava com os Rory Storm and the Hurricanes. Era a vez de entrar definitivamente nos The Beatles. E lá ficou até ao fim da aventura.

A dureza de uma gravação

Os Beatles preparavam-se para dar um passo largo e definitivo na sua vida. Gravar um disco é sempre marcante. Ainda por cima o primeiro de todos. Bruce Welsh, dos Shadows, resumiu a gravação em estúdio com uma palavra só: «intimidating!» Ponto de exclamação e tudo. Mas os Beatles eram diferentes, foram sempre diferentes, e continuaram diferentes até no momento de se separarem de forma irreversível.

Tinham um jeito completamente adolescente de encararem as dificuldades e entraram para o estúdio tão descontraidamente como se estivessem a passear em Hyde Park. Ron Richards, o responsável-mor pelas três horas consecutivas de gravação levadas a cabo no dia 4 de Setembro, no Estúdio nº 3, ficou encantado: «Eles sabiam perfeitamente o que fazer. Foi algo de tão simples que se tornou desarmante».

Nessa tarde, os rapazes de Liverpool ensaiaram seis canções, tendo no final selecionado as duas que deveriam entrar no single: Love Me Do e How Do You Do It?, esta última por influência de Martin que se convenceu de que iria ser um êxito tremendo. Pois bem, nem sempre Martin tinha razão, embora estivesse absolutamente convencido disso. Já Love Me Do foi uma exigência, um pedido e quase uma súplica da banda: era um original!

E, nesse tempo, um original significava muito para os grupos que os compunham já que, no momento das gravações, se limitavam a papaguear tudo aquilo que os produtores lhes enfiavam à frente dos queixos. Os Beatles teimaram em Love Me Do. Era algo de pessoal. E levaram a sua avante. Martin viria a confessar uns anos depois que, para ele, pessoalmente, Love Me Do daria um satisfatório Lado B para o single. Foi atropelado pelos acontecimentos sem ter tempo de se desviar da enxurrada que havia de lhes seguir.

À moda de Cliff Richard

George Martin tinha a sua ideia bem fixa. How Do You Do It? seria a música do Lado A do primeiro single gravado pelos Beatles. Soava-lhe agradavelmente a Cliff Richard, que estava absolutamente na moda, e nem sequer pensou que os quatro rapazinhos de Liverpool tivessem as suas próprias ideias e, pior ainda, a capacidade de se baterem por elas coletivamente até à exaustão.

Assim sendo, a poucos dias de entrarem no estúdio, as questão mantinham-se. Martin insistia que Ringo não tinha capacidade para dar às músicas o push necessário para as tornar atrativas. Por seu lado, os rapazes descartaram totalmente How do You Do It? de forma que não dava grande espaço a réplicas: «We just don´t want this kind of song. It’s  a different thing we’re going for… something new».

Ainda havia uma questão que precisava de ser resolvida com urgência. Brian Epstein estava intranquilo em relação ao nome que a banda devia optar. A sua cabeça voltava a andar à roda de Cliff Richards e da forma clara como assumia a liderança clara do grupo que se chamava precisamente Cliff and the Shadows. Fez vários exercícios de construção: Paul McCartney and The Beatles ou John Lennon and The Beatles, mas o facto é qie nada disso lhe soa va bem. Não havia uma liderança clara entre os moços de Liverpool.

Paul era o menino-bonito e mais bon-vivant do que outra coisa. John era muito terra a terra e podia ser verdadeiramente azedo. E entregar o protagonismo a um deles podia descambar numa fratura do fantástico equilíbrio que eram capazes de manter. «Foi depois de pensar em tudo isto que acabei por perceber que, afinal, estava perfeito tal e qual como estava. Eram os Beatles e ponto», referiu Martin na excecional biografia escrita por Bob Spitz.

No dia 11 de Setembro, o grupo regressou a Abbey Road para mais uma sessão de gravações. Richard Starkey não estava apenas aborrecido. Estava de rastos RonRichards, um dos produtores da EMI, tinha trazido o baterista da Vic Lewis’s Orchestra, um veterano de 32 anos, para fazer a parte da bateria. Perante o desespero de Ringo, perguntou-lhe se seria capaz de tocar maracas. Depois convidou-o a ouvir a sessão de gravação na sala de misturas. Era demais para o pobre Starkey. Sem ninguém dar por ela saiu pela porta fora e começou uma longa caminhada por Oxford Street. Não imaginava que dentro de pouco tempo ser-lhe-ia impossível andar pela rua com tal descontração.

Fez-se luz e… História

«Love, love me do/You know I love you/I’ll always be true/So please, love me do/Whoa-oh, love me do…» A voz de Paul e a harmónica de John faziam maravilhas. Lennon aprendera a tocar num velho aparelho oferecido pelo seu tio George, o falecido marido da sua tia Mimi, mas agora usava com orgulho uma muito mais sofisticada que, pura e simplesmente roubara numa loja de instrumentos musicais em Arnhem, na Holanda, no regresso de Hamburgo. Na brincadeira, Paul dizia: «John vive convencido de que vai ser preso um dia e, por isso, quer ser como nos filmes, o homem da harmónica na cadeia».

Todos estavam num sino. A gravação correra excecionalmente bem, não havia grandes arranjos para fazer, todos distribuíam sorrisos uns pelos outros, exceto, claro!, Ringo Starr que voltara para não passar ao lado dos acontecimentos:

«Quando ouvi George Martin dizer em voz alta que tinham, finalmente, arranjado um baterista profissional, fiquei devastado. Nunca percebi porque é que ele tinha tantas dúvidas sobre a minha capacidade. Já tinha tocado com os rapazes várias vezes. Ele depois veio pedir-me desculpas, sempre foi um tipo educado, mas para mim foi como se o tivesse dependurado num bengaleiro para nunca mais de lá sair». Paul também deu a sua versão sobre o assunto: «No nosso primeiro single, George levou a dele avante e Ringo só tocou pandeiro, coisa que o magoou bastante. Fugiu para Liverpool. Mesmo que todos concordássemos que fez um belo trabalho, ter ficado de fora no início da aventura deixou-o de rastos».

Nesta fase era How Do You Do It? que estava em equação. Por mais que Brian Epstein e George Martin quisessem que essa canção fizesse parte do single, depararam com um mundo de contrariedade intransponível na sua frente. Em primeiro lugar, a canção não era dos Beatles e o autor, Mitch Murray, não gostava da versão tocada pelos moços de Liverpool. Ora, isso reforçou a sua posição, ainda por cima perante a insistência de Martin para que fosse esse o Lado A do single.

Paul, John e George eram de opinião que já tinham tocado covers que daria para o resto das suas vidas. Por isso, apresentaram outra solução, esta caseira, da autoria de Paul McCartney. Muito se falou sobre o tema da música, que teria sido criado por McCartney em Hamburgo e dedicado à namorada que deixara em Liverpool, Dot Rhone. Ele desmentiu: «Que tolice! É simplesmente uma canção baseada numa carta. Não tem nada de real. Só imaginação».

E, desta forma, P.S.: I Love You também foi gravada a 11 de Setembro. Ron Richards avisou os rapazes que por causa de haver um título parecido num jingle publicitário, não podia entrar no Lado A do single. Algo que resolveu, finalmente, a questão há tanto tempo em suspenso. White manteve-se na bateria e Ringo teve a seu cargo as maracas. 

Paul McCartney voltou a ser a voz primordial, tal como em Love Me Do: «The only place I call home/You are/Every hope and dream I’ve ever had/You are/In other lifetimes, without any doubt/I’ll keep choosing you…» Entretanto, Brian Epstein trabalhava duramente na alteração da imagem dos Beatles, inventando os fatos estreitinhos e os cabelos inconfundíveis.

E todos eles esperavam ansiosamente pelo dia 5 de Outubro quando o single saiu para as bancas. Não teve grande impacto. Preocupados, os diretores da EMI puseram todos os seus funcionários a ligarem para a secção de discos pedidos da Rádio Luxemburgo, a única estação que tinha uma, e lançaram-se na compra de centenas e centenas de exemplares. Brian Epstein aparecia diariamente abraçado a vários caixotes adquiridos em lojas diferentes. Sucesso nem que fosse à força. Não tardaria muito para que eles valesse fortunas.