Jogada de Marcelo deixa PSD desconfortável

Marcelo lançou Passos na corrida a Belém para ‘desviar atenção’ da polémica com abusos na Igreja, diz-se no PSD, onde há quem estranhe e recorde a relação conturbada entre os dois.

Jogada de Marcelo deixa PSD desconfortável

Saído de uma semana difícil em que foi atacado em todas as frentes – até pela sua família política e incluindo o seu amigo Marques Mendes –, após as declarações infelizes sobre abusos sexuais na Igreja, Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou a presença de Pedro Passos Coelho nas comemorações do centenário de Agustina Bessa Luís, no domingo, para lançar de forma dissimulada uma candidatura presidencial do antigo primeiro-ministro. E voltou a fazê-lo nesta sexta-feira, em Gaia, reafirmando que o ex-líder do PSD é «um ativo político para o futuro».

«Isto foi claramente o professor Marcelo a tentar desviar as atenções de um problema que ele próprio tinha criado», comenta ao Nascer do SOL um destacado dirigente do PSD, considerando que o Presidente lançou esta questão com o intuito de colocar o país político a discutir a hipotética candidatura de Passos Coelho.

Na cúpula social-democrata, a evocação do nome do ex-primeiro-ministro foi entendida como uma «manobra de diversão» para tentar apagar do palco mediático as tiradas polémicas sobre os números apurados pela Comissão Independente para os abusos sexuais na Igreja. «Já ninguém fala do assunto e ainda não passou uma semana», continua a mesma fonte.

O desconforto dos sociais-democratas com esta estratégia ficou ainda mais à vista quando Luís Montenegro foi confrontado pelos jornalistas com esta tentativa de puxar Passos Coelho de volta à política. Apesar de o líder do PSD ter reconhecido que o antigo primeiro-ministro é «uma das pessoas mais qualificadas que Portugal tem» e que ainda «tem muito para dar ao país», não deixou passar ao lado a oportunidade de deixar um recado a Marcelo: «Não vale a pena estarem a fazer filmes à volta disso, não vale a pena fazerem futurologia, não vale a pena estarem a tentar retirar, extrapolar o que quer que seja».

De resto, nos corredores sociais-democratas pede-se contenção nas palavras dirigidas a Marcelo. Por um lado, os sociais-democratas não querem alimentar mais polémicas, por outro, não convém transparecer uma certa dessintonia com o Presidente, apesar de dois pesos pesados do partido – Paulo Rangel e Miguel Pinto Luz – terem ampliado o coro de críticas às declarações do Presidente sobre os abusos na Igreja. 

Ainda assim, nos bastidores do partido ‘laranja’ há quem estranhe esta colagem de Marcelo a Passos. «É a primeira vez que um Presidente da República em segundo mandato começa a opinar sobre o seu sucessor, normalmente, são mais recatados», desabafa outro ilustre social-democrata ao Nascer do SOL.

 

O divórcio absoluto

No atual PSD, com mais saudosistas do passismo, este endosso precoce ao antigo primeiro-ministro foi ainda razão de maior estranheza também pela relação conturbada entre estas duas personalidades. As feridas foram abertas em 1996, quando Passos, apoiante da primeira hora de Marcelo para a liderança do PSD, acabou por, no Congresso de Santa Maria da Feira que elegeu o novo presidente social-democrata, recusar-se a aceitar qualquer cargo na direção,  depois do então líder social-democrata o ter relegado para o oitavo lugar da lista ao Conselho Nacional, órgão máximo do partido entre congressos.

Vinte anos depois, em 2016, Passos não queria que o PSD tivesse como candidato presidencial Marcelo e o azedume entre os dois ficaria a nu quando na moção de estratégia global que levou ao congresso do partido, em fevereiro de 2014, escreveu que o partido não devia apoiar alguém que fosse um «catavento de opiniões erráticas em função da mera mediatização gerada em torno do fenómeno político».

«A relação era muito próxima, a maioria das pessoas pode não se recordar, mas quando Marcelo Rebelo de Sousa foi candidato ao PSD foi Pedro Passos Coelho que escreveu o seu programa eleitoral», recorda outra fonte social-democrata. «Desde aí foi um divórcio absoluto. E, portanto, estas declarações são ainda mais bizarras por causa disso», resume.

Na cabeça dos sociais-democratas está claro que Pedro Passos Coelho «é o último interessado» em receber o apoio de Marcelo, ainda mais a quatro anos de distância das presidenciais.

 

O castigo a Marques Mendes

Há muito que à direita não se faz tabu sobre quem são os candidatos mais fortes à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa. Tanto Luís Marques Mendes como Paulo Portas são apontados como os que reúnem melhores condições para poderem apresentar-se a votos quando o momento chegar.

Talvez por isso o PSD se deite a adivinhar que o Presidente ao lançar este debate da sucessão tivesse ainda como propósito sancionar aquele que se afigura como favorito nas sondagens.

«O dr. Luís Marques Mendes é conselheiro de Estado e, portanto, também se pode fazer aqui outra leitura, porque no domingo no seu espaço de comentário na SIC foi crítico do Presidente Marcelo. Pode-se fazer esta leitura menos benévola de que também aqui foi um castigo a Marques Mendes, apontando outro nome que não o dele para a sucessão», comenta um dirigente do partido.

Na mesma linha de Luís Montenegro, sem querer fazer futurologia, a mesma fonte acrescenta que este é um assunto «extemporâneo» e que os partidos só se devem pronunciar a posteriori, pois esta é «uma escolha extremamente pessoal». «Vai ser um jogo de sombras, porque o primeiro a avançar vai condicionar todos os outros», antecipa.

 

O risco das figuras simbólicas

O endorsement de Marcelo a Passos também não passou ao lado dos socialistas. «Este foi mais um dos desvarios do Presidente da República, que dá cada vez mais nota de um desnorte total», afirma António Galamba, em declarações ao Nascer do SOL, acusando o chefe de Estado de ainda não se ter conformado  com o facto de haver uma maioria absoluta nem adaptado à função que desempenha. «Fala demais, como se tem verificado nos últimos tempos, mas também vai longe demais em temas em relação aos quais não tem que ter voz ativa», critica, acrescentando que «não faz qualquer sentido um Presidente da República estar a pronunciar-se sobre temas que só se colocarão daqui a alguns anos».

Para o antigo deputado do PS, esta atitude do Presidente também faz parte de uma estratégia que alguma direita tem «no sentido de recuperar Passos Coelho para encontrar uma solução que seja uma alternativa credível e mobilizadora à direita». «Só que Marcelo Rebelo de Sousa já não é comentador, é árbitro, se quer fazer parte do jogo não pode ser Presidente da República», vinca.

Questionado sobre os nomes que vão surgindo à esquerda para encabeçar uma candidatura a Belém, um baralho onde constam o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, bem como o primeiro-ministro António Costa e ainda o secretário-geral da ONU, António Guterres, o antigo dirigente socialista diz que «ainda é muito cedo» para apontar um candidato que seja eficaz. «A política e a realidade estão demasiado voláteis para estar a lançar cartas com esta antecedência toda e os portugueses também começam a ficar cansados por sistematicamente lhes acenarem com cenouras», justifica.

Outra incógnita que ninguém ignora é a possível candidatura de Henrique Gouveia e Melo. «Uma candidatura do chefe do Estado Maior da Armada enquadra-se se o país quiser continuar a ter na Presidência figuras simbólicas, se quiser continuar a persistir nesse caminho. Todos vemos bem o resultado que teve a figura simbólica atual», compara António Galamba, reconhecendo ainda em Marques Mendes outro exemplo do modelo que já foi testado e que está agora em funções. «Como político deixa muito a desejar e como comentador utiliza esse trampolim para tentar criar oportunidades para se afirmar», atira o socialista.