‘É muito difícil termos um Orçamento que agrade a todos’

António Mendonça admite que proposta podia ter ido mais além, mas também lembra que ‘quem está fora do Governo critica, quem está dentro justifica’. O ex-ministro de José Sócrates lamenta o impasse de grandes obras, como o novo aeroporto e a alta velocidade.  E não hesita: ‘Há uma atitude permanente de desconfiança, em que se…

‘É muito difícil termos um Orçamento que agrade a todos’

O que achou da proposta do Orçamento do Estado? 

Os Orçamentos do Estado podem sempre ir mais além. Se tivermos em conta aquilo que tem sido nos últimos anos a experiência dos Orçamentos do Estado, independentemente dos governos, não há ninguém que se identifique com eles. Quem está fora do Governo critica, quem está dentro do Governo justifica. É muito difícil termos um Orçamento que agrade a toda a gente e este é feito num contexto terrível, envolto numa incerteza enorme. Hoje em dia já há certeza de que vai haver desenvolvimentos negativos com consequências económicas. O que se está a passar em termos energéticos tem repercussões a todos os níveis. É uma situação que não tem paralelo nos tempos mais recentes. E é um Orçamento marcado por isso, mas também é marcado pelas restrições que existem à autonomia da política orçamental em Portugal, nomeadamente ao nível da nossa dívida e com o enquadramento das regras europeias que vêm do Pacto de Estabilidade. Por outro lado, temos um histórico de dificuldades de intervenções externas e tudo isso acaba por condicionar e marcar a ‘proposta. Mas há uma característica que se justifica do ponto de vista de quem está no Governo que é um Orçamento precavido. Impera uma preocupação de cautela relativamente ao que aí vem, sabe-se que pode ser muito mau, mas importa ter capacidade de adaptação e flexibilidade suficiente para fazer face aos imprevistos. 

Daí ter dito que devia ser encarado como um Orçamento de guerra? 

Estamos a viver uma guerra e temos estado a localizá-la na Ucrânia, mas transcende. Por outro lado, também temos assistido a mudanças e a transformações muito fortes em termos da economia internacional, da própria globalização que já vem detrás. Provavelmente tem origem nos anos 70, com a primeira crise energética que houve e teve sucessivos desenvolvimentos que passaram pela queda do Muro de Berlim, pela implosão do fim do bloco soviético e depois pela crise de 2008/2009. Para quem olha para a história económica num sentido mais amplo percebe que o processo que se tinha se iniciado no final da Segunda Guerra Mundial permitiu construir as instituições internacionais que hoje temos: das Nações Unidas, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco Mundial e à Organização Mundial do Comércio. Não sabemos exatamente o que vem aí, o que vai resultar destas transformações todas, mas diria que são mudanças radicais que se manifestam, não só em Portugal, mas também em termos internacionais. Por isso, temos de ter um Orçamento para fazer face a tudo o que pode ocorrer. A guerra é um choque externo sobre a economia, mas de alguma forma veio acentuar tudo o que vinha detrás e que a própria covid já tinha acentuado. Temos aqui dois choques externos em termos de economia mundial que importa considerar. 

E não tínhamos recuperado de um e surgiu outro… 

Exato e não sei o que vem a seguir. Estamos a atravessar uma fase muito complicada a todos os níveis. 

As consequências estão à vista: aumento da taxa de inflação e a subida das taxas de juro. A continuar poderá provocar uma rasteira ao Governo? 

Sem dúvida, até julgo que parte significativa da cautela que o Governo tem com este Orçamento tem a ver com esta incógnita, que já não é assim tão grande. Podemos ter alguma certeza quanto a esta tendência para a subida das taxas de juro, pelo menos, no curto prazo, que pode ter repercussões na economia portuguesa, particularmente devido à elevada dívida pública e privada que temos. Embora julgo que temos de introduzir alguma nuance. Nos EUA, Jerome Powell disse claramente que temos de provocar uma recessão para fazer face à inflação. O maior perigo nos Estados Unidos é a inflação e assumiu isso claramente até nesta reunião que houve em Jackson Hole, em agosto. 

A Fed tem subido mais os juros do que o BCE… 

Também a dinâmica da economia americana é diferente da europeia. Quando olhamos para a crise 2008/ 2009 e para os seus desenvolvimentos vimos que os Estados Unidos foram sempre muito mais rápidos, muito mais flexíveis a darem uma resposta. Baixaram imediatamente as taxas de juro, utilizaram a política orçamental como forma de combater a crise e tomaram imediatamente decisões de intervir nas empresas financeiras. Ao passo que a Europa politicamente tem maior dificuldade em tomar decisões e chegar a consensos. Em 2008 sobe as taxas de juro, quando era visível o que iria acontecer e não contente com isso, em 2010, quando viu a economia a recuperar um bocadinho levou a cabo uma nova subida das taxas de juro e mergulhou novamente a Europa na crise de 2012/2013, que teve repercussões sobre a economia portuguesa. Essa recaída da economia europeia transformou a crise do euro numa crise de dívidas soberanas e países como Portugal acabaram por sofrer bastante mais do que outros, quando a essência da zona euro seria para responder às assimetrias.

O Orçamento prevê que os juros no crédito à habitação possam ser deduzidos. É suficiente?

Há uma preocupação que compreendo e não é só do Governo português é das próprias instituições internacionais – se virmos o recente relatório do Fundo Monetário Internacional vemos que há esta orientação no sentido de haver medidas mais direcionadas do que propriamente medidas de caráter transversal. De certa maneira, o Governo ataca um pouco isso, em que há uma grande preocupação por camadas, seja ao nível das famílias, seja ao nível das empresas, mas também há uma preocupação com micro, pequenas e médias empresas. No entanto, julgo que seria necessário pensar em medidas de natureza mais transversal e que abrangesse o conjunto da economia. Compreendo e respeito que é preciso acautelar os setores mais sensíveis, mas todos são afetados pela crise e mesmo os setores mais dinâmicos que, até podem ter rendimentos mais elevados, quer ao nível das empresas, quer ao nível das famílias, saem extremamente prejudicados, às vezes, até mais. E aqui há um fator de injustiça ao não serem beneficiados de uma forma tão direta pelas medidas que são tomadas. Até porque, em princípio, a equidade é feita através dos impostos. São setores, camadas, famílias, empresas que, em princípio, pagam mais impostos e não podem estar a pagar duplamente mais impostos, ainda por cima sem terem acesso a compensações. Há aqui um problema que temos de encarar, provavelmente a médio e a longo prazo, que é ver os resultados destas medidas dirigidas aos setores mais desfavorecidos, com características muito assistencialistas que, a médio e a longo prazo, podem criar entraves, dificuldades ao dinamismo económico e social, através de uma compressão das chamadas classes médias.

Que se queixam que são sempre esquecidas…

Exatamente e não tem sentido porque são setores importantes. Também temos de ver que o conceito de classe média é um bocado volátil. Não há uma grande definição se é até 2000 e qualquer coisa, se é até mil e qualquer coisa. É um conceito pouco preciso e cada um define a classe média do modo que lhe interessa. Tenho tendência a incluir na classe média os setores dinâmicos da sociedade, pessoas altamente qualificadas, com um lugar de responsabilidade, seja no privado, seja no público e que importa mobilizar para contribuírem para a resolução dos problemas que estamos a atravessar. O que assistimos é a uma compressão ao nível dos rendimentos, a um encostar do salário médio ao salário mínimo, etc., que pode tirar dinamismo à economia. Quando olhamos para o passado e particularmente a seguir à Segunda Guerra Mundial, o que verificamos é que houve um processo de alargamento das classes médias, do alargamento dos rendimentos que foi importante para as taxas de crescimento desse período. Vimos que do período pós-guerra praticamente até aos anos 70 foram anos de grandes taxas de crescimento. Até Portugal, nos anos 60, 70 chegou a crescer a taxas de dois dígitos. 

É uma miragem há muitos anos…. 

Hoje em dia é uma miragem e a situação também é diferente. Temos de olhar para o crescimento, não apenas em termos quantitativos, mas também qualitativos. Mas voltando às classes médias, estas foram fundamentais para sustentar a democracia que se generalizou. A Europa foi durante muito tempo um modelo e uma referência para o mundo inteiro. Estamos a ver exemplos pela Europa fora, até com expressão ao nível político, com a chamada emergência e afirmação da extrema direita que vai buscar muito do seu apoio e da sua influência a esse sentimento de não proteção por parte dessas camadas. Isso é extremamente negativo e nesta situação de aperto vamos ter de encontrar respostas para isso. Desse ponto de vista, o Orçamento é um pouco tímido, devia abranger mais e devia ser mais transversal nas medidas. É preciso entender que medidas muito pontuais, muito direcionadas correm o risco de introduzir um fator de desorientação. Sem esquecer a complicação que é, neste momento, olhar para o sistema fiscal em Portugal. Tem de haver uma política de simplificação do ponto de vista do sistema fiscal e dos incentivos que são dados para que sejam claros e transparentes. 

Mesmo assim, as previsões do Governo são mais otimistas do que as do FMI…

Eventualmente poderemos estar demasiado otimistas. Mas se olhamos para o Orçamento de 2022 também se dizia que o Governo era otimista e o que aconteceu é que acabou por superar as expectativas e a taxa de crescimento foi superior à que estava prevista. É evidente que houve uma série de fatores que não foram considerados, designadamente a recuperação do turismo e tudo o que isso traz consigo, mas foram fatores conjunturais que não se repetem necessariamente no próximo ano. 

A receita pode falhar…

Pode falhar. Há aqui uma incógnita, mas também um certo otimismo do Governo que se pode justificar à luz de introduzir confiança na sociedade. Se for o Governo a dizer ‘isto vai ser uma desgraça para o ano. Isto vai cair não sei quanto, poderia gerar dinâmicas económicas e sociais que não fossem as mais favoráveis. Temos de olhar para o Orçamento e para quem está no Governo, que tem responsabilidades porque quem está de fora não tem. Se estivessem lá outras forças políticas não penso que o Orçamento fosse muito diferente daquele que é hoje. Como disse há restrições de várias naturezas e a margem de manobra é sempre limitada em qualquer Orçamento, seja ele qual for. Agora, se me pergunta se é o ideal digo que não há orçamentos ideais. Penso que há alguma timidez, particularmente, no que diz respeito à reposição de poder de compra. Quando olhamos para aquilo que foi o dinamismo da economia portuguesa em 2022 vemos que está muito assente na procura interna. E se o contexto internacional está agravado, em que já se sabe que o comércio internacional vai ter impactos negativos temos de valorizar a procura interna e, desse ponto de vista, a reposição ou, pelo menos, tentar que não haja uma queda do poder de compra interno porque será um estímulo à própria economia. Não podemos ver apenas os rendimentos ou os salários como custos. Temos de ver os salários também como rendimento que pode ser utilizado para criar dinamismo económico. Aquilo que é um custo para uma empresa é procura para outra empresa. 

A proposta prevê um atualização dos escalões do IRS em 5,1% …

Deveríamos, não é agora a altura, repensar o número de escalões. A taxa que é aplicada em Portugal de 46/48% quando comparada com a Europa vimos que o nosso nível de rendimento é muito baixo. Estas coisas têm de ser estudadas do ponto de vista técnico para ver quais são os impactos. O problema é que o regime fiscal tem sido sucessivamente um acumular de medidas de natureza pontual. É uma manta de retalhos e deveria ser pensado sem pressões para transformar o sistema fiscal num vetor de dinamismo económico. Estamos há muitos anos com taxas medíocres de crescimento e era importante repensar como podemos introduzir uma dinâmica de crescimento da economia portuguesa. Claro que estamos dependentes da situação europeia, mas o facto de sermos uma pequena economia também pode ter vantagens que temos de saber aproveitar. 

É ter a tal ambição de crescer….

Há economias da mesma dimensão que a nossa na Europa e que têm sucesso, não há nenhuma razão para estarmos esmagados pela nossa escala. 

Muitas vezes usamos o argumento da periferia…

Somos periféricos, mas a nossa periferia também pode ser importante, não nos podemos esquecer que temos um lugar no mundo. O mundo de hoje deve-se, em grande parte, a nós. Fomos nós que iniciámos a globalização moderna com a nossa aventura marítima. Olhamos como se fossemos periféricos da Europa. Não, somos centrais e fomos centrais no mundo. O português é uma língua que existe em praticamente todas as partes do mundo. Temos relações com África, América, com Ásia e temos de ter capacidade de aproveitar o potencial que existe. 

Isso deve-se à falta de ambição, falta de estratégia? 

Acho que é tudo. É falta de ambição e falta de estratégia, ou talvez uma certa assunção da pequena escala. Pensamos mais em sermos a periferia da Europa do que podermos ter um papel no mundo.

Sines foi usada como uma espécie de tábua de salvação…

Francamente, quando não sabemos o que fazer Sines aparece sempre como a grande solução e salvação para tudo. É interessante ver que Sines é um projeto que vem de muito detrás. Uma das coisas que também é característica da nossa democracia é que não temos grandes projetos novos para apresentar ao mundo. São projetos que vêm detrás. Uma das fraquezas da Europa é a inexistência de um sistema energético comum, também os princípios em que assentava eram profundamente errados. O princípio marginal do gás, em que o mais caro é que revelava o preço mostrou que estava errado. Tudo deveria ser repensado e, desse ponto de vista, parece que nós e os espanhóis conseguimos estar uns passos à frente. Ainda esta semana ouvi Ursula Von der Leyen a dizer que a experiência portuguesa e espanhola deveria ser utilizada como referência para aquilo que há a fazer na Europa. Agora o que é interessante ver é que é preciso ter uma crise para as pessoas refletirem sobre o que estão a fazer e como é possível na Europa não se pensar estrategicamente.

Fala-se agora nas compras coletivas de gás, seguido o exemplo, das vacinas….

Só nos lembramos das coisas quando nos caem em cima e estas coisas têm de ser repensadas. Temos de ter um pensamento estratégico e não se sente que exista. Temos uma capacidade de resposta às situações, mas depois regressamos ao business as usual. Isso não pode acontecer. Isto é verdade para Portugal, em que temos de introduzir um vetor estratégico, em termos de gestão do nosso futuro, mas a própria Europa também tem de pensar em termos estratégicos, porque está numa situação difícil, em que não sabe exatamente o lugar que está a ocupar nesta alteração de relações de força, nesta alteração de relações económicas que está a ocorrer no mundo e está a perder o seu pé. Estamos sempre com aquela ideia de que agora que é que isto vai rebentar e não pode ser. Tem de se dar confiança aos cidadãos de que a construção europeia é uma realidade forte e deve ser desenvolvida. Tem de ter um papel e uma voz. Isso não está a ocorrer, quando ouvimos Ursula Von der Leyen a falar e, até diz coisas muito certas, mas parece que vem sempre desfasado no tempo. 

Quando fala em projetos de impasse, um desses casos é o famoso aeroporto e não está mencionado no OE… 

Não, pelo menos, que tenha notado. Os últimos dados que temos é que vamos ter um ano para refletir sobre as hipóteses para tomar uma decisão. O que se tem visto é uma ausência de estratégia e de capacidade para tomar uma decisão. Claro que se pode invocar restrições financeiras e isso é um argumento válido mas andamos há 50 anos a discutir o aeroporto. 

E ficou surpreendido com a hipótese de Santarém? Falava-se sempre no Montijo, Alcochete… 

Não conheço exatamente o que está por detrás de Santarém e o que levou ao seu aparecimento. Vou procurar informar-me mais sobre o que está por detrás. De qualquer forma, acredita que nestes anos todos nunca se tenha colocado a hipótese Santarém? Porquê? Quando todas as hipóteses foram estudas: Portela, Portela mais uma, Portela mais duas, Montijo, Alcochete. Todas essas localizações foram estudadas. E agora de repente aparece outra? No passado também houve algumas que apareceram, como Monte Real.

Também apareceu Ota….

A Ota foi hipótese durante muito tempo. Depois houve alteração, foram efetuados estudos. Mas durante todo este processo houve uma convergência para Alcochete, por várias razões. O Laboratório Nacional de Engenharia Civil teve a oportunidade de dirigir estudos que foram muito exaustivos, do ponto de vista técnico, económico, financeiro e ambiental. Todas as condições estavam reunidas para avançar para Alcochete, mas não avançou, Na altura, supostamente por razões financeiras, embora estivesse prevista uma solução que incorporava por parte da empresa que tomasse conta da ANA de avançar para o aeroporto. Não se pode estar continuamente a alterar decisões. Agora vão-se fazer novamente os estudos todos. Há uma coisa que é clara para mim e posso estar equivocado mas tenho ideia que a Portela acabou. É uma questão de tempo, não faz sentido ter um aeroporto praticamente no centro e temos de encontrar uma solução alternativa. 

Já há muitos anos que fala no seu esgotamento e, a partir desta semana, foi permitido voos noturnos… 

Não se pode fazer isso, as pessoas não podem ser incomodadas no seu descanso por voos noturnos. Na Europa, a tendência é para os aeroportos internacionais com grande movimento estarem bastante afastados das cidades. Ainda agora estive em Estocolmo e estava a 50 quilómetros da cidade e num quarto de hora num comboio que anda a 200 quilómetros estava no centro. 

A famosa alta velocidade é mais outro projeto que se fala há muito tempo e também não há meio de avançar….

Não, porque há um ‘inativismo’ nacional relativamente aos grandes projetos, aquilo que são mudanças estruturais. Gosto sempre de utilizar este exemplo, provavelmente toda a gente o conhece, no final do século XIX, quando foi inaugurada a primeira linha férrea em Portugal que ia de Lisboa para o Carregado, gente de grande peso na cidade opunha-se a este projeto. O próprio Alexandre Herculano chegou a falar sobre isso, embora depois tenha mudado de opinião, dizia que iria desagregar a sociedade portuguesa, desagregar os campos e trazer gente para a cidade. Outros diziam que era uma forma dos espanhóis invadirem Portugal. Há sempre uma aversão em relação a tudo o que é novo. Estes argumentos voltaram-se a ouvir quando foi lançado o projeto de alta velocidade. No final do século XIX, o Rei Dom Pedro V até se insurgiu dizendo que eram um bando de estúpidos, que não estavam a perceber que iria iniciar uma época de desenvolvimento em Portugal e iria favorecer novas dinâmicas para o desenvolvimento do país. A Ponte 25 de Abril, por exemplo, demorou entre a ideia de a construir e o começo da sua construção, praticamente 100 anos e entretanto foi construída a ponte de Vila Franca. E quando foi construída, na inauguração havia uma convergência à esquerda e à direita relativamente à ponte. A direita achava que era uma obra que iria provocar despesismo e que Portugal não estava preparado. O próprio ministro das Finanças, da altura, temia que os outros ministros quisessem depois também ter dinheiro para fazerem as coisas que queriam, enquanto a esquerda dizia que era uma obra de fachada do regime, para gastar dinheiro quando podia utilizá-lo para fazer mais escolas e ter mais atenção aos bairros de lata que existiam em Lisboa. Imagine o que seria hoje Lisboa sem ter a ponte. Lisboa precisava de mais travessias para o outro lado até para fazer a sua integração e dinamizar toda a zona sul que está com carências de projetos dinamizadores. Isto mostra que há uma atitude permanente de desconfiança, olha-se para as coisas meramente como despesa e não como investimento, apesar de ter potencial para gerar retornos que ultrapassam tudo aquilo que pode ter sido gasto.

Foi secretário de Estado de um Governo que acenou com a alta velocidade, que ficou esquecida e foi agora recuperada novamente por um Governo socialista…

Acho perfeitamente natural que, mais tarde ou mais cedo, esses projetos venham a ser recuperados. Julgo que Lisboa é a única capital que não está integrada nas redes transeuropeias de transporte e não há razão nenhuma para Lisboa não estar ligada a Espanha em alta velocidade, nem para não termos uma linha em condições para ligar Lisboa ao Porto. É inadmissível o tempo que se gasta, as dificuldades que existem em termos da deslocação. A tendência vai ser o transporte ferroviário de alta velocidade substituir o avião nas curtas e nas médias distâncias. Em termos de poupanças energéticas e de alteração de paradigma energético há muito que já o deveríamos ter feito. Isto só peca por atraso, já vai desfasado no tempo. Vamos ver se no meio desta coisa toda se concretiza e se não há nenhuma surpresa aí pelo caminho. Espero que não, acho que é importante levar estes projetos para a frente, como também acho que é importante que estes projetos estejam integrados: alta velocidade, localização do aeroporto, articulação entre o setor ferroviário e o rodoviário, articulação entre as linhas de alta velocidade e as convencionais. É preciso ter um pensamento integrado e de consenso. Não é apenas um consenso político é também um consenso técnico. Não são os políticos que têm de decidir se alinham mais para a esquerda ou mais para a direita. Não podemos arriscar a perder o comboio, porque quando tivermos a avançar já os outros estão noutro caminho. Na China já há comboios a andar a 510 quilómetros por hora e já se estão a fazer ensaios para ir de 800 a 1000 quilómetros por hora através de túneis. 

E Portugal continua a falar de velocidades de 200 kms/h…

Exatamente. Como disse a 200 quilómetros hora vim agora do aeroporto para a cidade de Estocolmo. Isto é para ver como estamos a ficar atrasados relativamente àquilo que são as fronteiras tecnológicas e é importante que o país aproveite. Não podemos estar permanentemente a ouvir como se ouvia há uns anos que ‘não precisamos de alta velocidade’. Isso não tem sentido absolutamente nenhum, porque devemos apostar no futuro, já que esses projetos também têm efeitos de arrastamento sobre a própria economia. Lembro-me que quando tinha responsabilidades no Governo estava a discutir com o meu colega do Ensino Superior e da Investigação – Mariano Gago – formas de maximizar os impactos da introdução de alta velocidade em Portugal e ver em que medida é que as próprias empresas se podiam organizar para dar resposta. Chegámos à conclusão que poderíamos praticamente ir a 75% a 80% de incorporação nacional. Ou seja, esses projetos também têm de ser pensados do ponto de vista dos impactos na economia nacional. 

E recorrendo a verbas comunitárias, como o PRR? 

Num país, como Portugal, em que o peso do investimento no PIB é baixo comparativamente à média europeia significa que precisamos de investimento. 

Em relação às empresas, o que acha das medidas avançadas no Orçamento?

Há um acordo de concertação social e queria dar uma nota de satisfação em relação a isso, porque é importante para o país a vários níveis, não apenas porque se vê que é possível chegar a consensos, mas também porque é importante para introduzir confiança e estabilidade, em termos da gestão política e económica. Mas há um aspeto em que tenho algumas reservas, que é a ideia de dar benefícios às empresas porque aumentam os salários, acho que é pôr os contribuintes a pagar os salários das empresas. Devia haver aqui alguma separação, as empresas têm de pagar os salários, de acordo com a capacidade que têm.

E não receberem um bónus? 

Tenho sérias reservas em relação a essa situação porque pode introduzir distorções relativamente ao futuro. As empresas podem sempre dizer que só empregam se derem um bónus. Numa situação pontual como esta que estamos a atravessar pode-se justificar, mas julgo que esta abertura pode ter efeitos perversos na economia.

É abrir uma caixa de Pandora?

Exatamente, não tenho a certeza se gera incentivos à inovação das empresas e ao aumento da produtividade e da competitividade. Sou daqueles que acha que deve haver uma política salarial de reconhecimento do trabalho das pessoas e não sou adepto de uma política de salários baixos. Acho que também não podemos ter salários artificialmente altos, particularmente com a intervenção do Estado através dos impostos. Julgo que isso pode introduzir perversidade no funcionamento da economia. 

E como vê a questão da aplicação de um imposto sobre lucros excessivos?

Aí a situação é diferente. Não quero falar de nenhuma empresa em particular, porque é preciso conhecer a realidade. Tanto no tempo da covid como agora há empresas que pela situação privilegiada que estão, porque estão em setores específicos tiram uma vantagem impressionante. E se, nesta altura, são exigidos sacrifícios eles também têm que ter. É o caso da energia. Não podemos dizer que é só a guerra da Ucrânia que está a gerar esta subida de preços, claro que está mas também está a haver aproveitamentos muito sérios por parte das empresas energéticas. Ainda recentemente, a OPEP tomou a decisão de reduzir a produção, isso significa um aproveitamento que não faz sentido nenhum. Por isso, esse imposto sobre lucros extraordinários não me escandaliza. Quando comparamos a atividade e o produto dessas empresas, a sua importância com outras vimos que estão numa outra dimensão, numa outra estratosfera. Não são meras empresas privadas, já têm uma influência brutal, mesmo ao nível político e, determinam, muitas vezes, as decisões que são tomadas a nível internacional. Não vejo mal serem chamadas à responsabilidade. É o caso, por exemplo, das empresas do mundo digital, das tecnológicas, etc. Vimos a dificuldade que foi impor a taxa dos 15%, quando vemos que essas empresas têm uma grande capacidade de fugir aos impostos e de terem uma produção espalhada pelo mundo inteiro. É evidente que neste contexto também pode haver situações particulares desta ou daquela empresa, neste ou naquele país que importa considerar. Uma coisa é falar em termos gerais do que deve ser feito, outra coisa é vermos a aplicação de alguma coisa que é definida a nível geral e se faz sentido ou não. Mas isso compete aos governos analisar as situações particulares em concreto e atuar em conformidade. 

Tem-se falado muito do desgaste do Governo e das polémicas em torno das incompatibilidades dos ministros. Como vê esta questão?

Temos de distinguir entre aquilo que existe efetivamente e o que se procura criar à volta delas. Quanto à questão das incompatibilidades não quero falar porque não conheço as situações. Agora também é importante ver que as pessoas, antes, depois, durante, etc., têm as suas vidas e têm de assegurar a sua existência. Mas também acho que quem está no Governo tem de ter muitos cuidados. Hoje em dia ir para um Governo é um risco. Entra-se para o Governo com um currículo e sai-se com cadastro. Por isso, qualquer pessoa que integra o Governo tem de ter muitos cuidados e deve pensar duas vezes para ver como está a sua vida, as relações que tem… Não conheço as situações particulares, só conheço aquilo que vem na comunicação social. Mas também julgo que existe do lado da oposição essa preocupação de desgastar com tudo e mais alguma coisa o Governo, porque tem maioria absoluta. É importante não nos deixarmos levar pela espuma dos dias. Como já tive funções governativas tenho uma grande compreensão por quem está a exercer essas funções, seja quem for. E não tenho aqui discriminação de cor política. São atividades muito exigentes, que exigem muita mobilização. Temos de ver os resultados e, mesmo os resultados, às vezes, podem ser prejudicados por situações conjunturais. Uma coisa é governar em tempos de crise, outra coisa é governar em termos de expansão económica. 

É tudo muito mais facilitado….

É mais facilitado e os erros não se veem tanto. Numa situação de crise, qualquer erro é imediatamente amplificado e é a situação que estamos a viver. Qualquer coisa que possa acontecer, uma palavra infeliz, uma ação de qualquer coisa tem uma amplificação brutal. Se estivéssemos todos bem, a crescer, vivíamos todos felizes e contentes. 

E perante esta incerteza corremos o risco de vir a ter um Orçamento retificativo?

Para já, julgo que o Orçamento vai provavelmente sofrer algumas modificações, em resultado de propostas. Aliás, o ministro das Finanças já disse isso e o próprio primeiro-ministro quer discutir os contributos que possam ser dados. Mas, acima de tudo, a grande avaliação do Orçamento será o seu confronto com a realidade. Percebe-se que quer introduzir confiança, mas os riscos são muito elevados. Não só por nós, mas pela conjuntura internacional.