Adriano Moreira. Uma figura que ilustra a complexidade da História

Morreu aos 100 anos uma figura que se viu sempre entre as mais singulares da vida política portuguesa, um homem que esteve preso com Soares no Aljube, que viria a adaptar o luso-tropicalismo a ideologia oficiosa, ajudando a maquilhar o período final do colonialismo português enquanto ministro de Salazar. Gabava-se de ter dado uma resposta torta…

Às vezes a memória é toda a justiça que se pode e deve fazer por um homem, como pelas vidas tocadas pela sua ação. Num país em que a memória parece ela mesma flutuante, um náufrago apoiando-se em destroços e sujeito ao ímpeto das correntes, lembrar é uma forma de resistência. E um homem com a longevidade de Adriano Moreira terá gozado o beneplácito do esquecimento, sendo uma figura que, com o inegável cunho dos seus méritos intelectuais, soube traçar uma improvável trajetória, para um homem nascido numa aldeia da província e que viria a chegar a Lisboa entre o contingente de “emigrantes que vinham do norte”, colocando-se na esfera do poder. Diz-se que terá feito as pazes com a História, “depois de muitos desencontros com ela” (Público), mas será preciso tempo, como insistiu a historiadora Irene Pimentel, para “que se analise a complexidade de uma figura tão rica como ele foi, sem quaisquer rótulos ideológicos apressados e simplistas”. Adriano Moreira, que morreu no domingo com 100 anos e dois meses de idade, seria um protagonista espantoso para um romance histórico que quisesse penetrar nos elementos mais delicados e nas nuances do processo histórico português, desses pactos que se estabelecem na sombra, do que permaneceu imutável na herança e nos valores que se perpetuam, entre dois regimes aparentemente antagónicos. Mas seria preciso não deixar que o retrato emerja viciado, querendo extrair sentenças condenatórias ou diplomas laudatórios. Sem ter sido alguma vez uma figura de primeiro plano, Adriano foi um desses protagonistas discretos que não se oferece à facilidade de um exame desses em regime post-mortem e para fazer um balanço curial que permita serenar todos os ânimos. No seu espaço de crónica, Daniel Oliveira vincou que a História não se faz de heróis e vilões. Pode ir-se mais longe e dizer-se que esta só começa mesmo quando nos libertamos dessas ficções resvaladiças, que, na verdade, estão sempre de olho nos contos de fadas. São as histórias que estão de acordo com esse regime inábil do orgulho, o qual insiste sempre na proclamação de um protagonismo individual que quer impor-se contra a massa, esquecendo que nunca deixamos de fazer parte dela. Mas sempre que morre uma figura destas que exige mais da memória, cede-se aos modelos conformistas da grande dignidade, assumindo este atrativo profundo por figuras exemplares, ou seja, heróis e vilões. Adriano Moreira não foi uma coisa nem outra. O Presidente da República, deliciado como qualquer político com essa pose de parvenu dos que entendem fazer parte da galeria das figuras que assumem destaque contra a massa, no dia do centenário e no site da presidência, sublinhava que o que há de “verdadeiramente fascinante em Adriano Moreira é que, há muito, entrou na História, apesar de toda a sua vida ter sido feita de desencontros históricos. Chegou sempre cedo demais ou tarde demais a esses encontros”, escreveu Marcelo Rebelo de Sousa. Esta cantilena que enreda e ilustra por meio de um ilusionismo retórico que permite dizer tudo e o seu contrário está ao nível desse saber intermitente que configura a História como nos é transmitida, como se todos fôssemos agentes de um programa turístico nacional, permitindo-nos receber quem chegue de fora e entretecer esse discurso solvente e chegar à tragicómica esquizofrenia que alguns entendem ser necessária a qualquer resumo histórico. Das origens, em Grijó de Vale Benfeito, ao governo de Salazar, à rutura com o ditador e à liderança do CDS, no pós-25 de Abril, com uma passagem pelo Aljube, como preso político, ao lado de Mário Soares, Adriano Moreira o que ilustra como poucos é esse sentido de convergência e de assentimento que faz da sociedade portuguesa esse regime em que mesmo os conflitos e oposições não fazem mais do que mascarar o seu regime de corte. Nascido em 1922, naquela pequena aldeia em Macedo de Cavaleiros, no distrito de Bragança, Adriano José Alves Moreira contaria, muitos anos mais tarde, no seu livro de memórias, que os seus pais “emigraram” para a capital não tinha ele ainda dois anos, mas que a aldeia em Trás-os-Montes teve ainda assim um papel decisivo na sua ilustração da realidade, sendo ali que passava os meses de Verão, convivendo com a pobreza, desde logo a dos seus avós, sendo os maternos agricultores e os paternos moleiros. Era um mundo onde a História não se dissipava a cada novo ciclo, de tal modo que se recorda de ouvir os mais velhos falarem da I Guerra Mundial ou até das invasões francesas. Uma ida a Lisboa era ainda uma aventurosa empreitada, e o regresso obrigava sempre a uma viagem de 30 horas, sendo a parte final feita de burro, entre a estação de comboios e a povoação. Quanto ao que encontraram os seus pais ao chegar à capital do então império, deram com uma cidade espartilhada onde as pessoas viviam numa “espécie de colónias interiores”, organizadas por regiões. As memórias de Moreira vão assim entre dois mundos, do beco da Rua Estevam Pinto, em Campolide, onde morava com os pais, à aldeia, o que lhe terá dado balanço para cumprir com o desejo dos pais, António e Leopoldina, que queriam ver os filhos realizar-se, completando estudos universitários. Se não foi fácil a vida enquanto estudante pobre, Moreira distinguiu-se no Liceu Passos Manuel e no Liceu do Carmo, indo e voltando a pé, como fez depois quando entrou na Faculdade de Direito. Não demoraria a tornar-se a impor o seu perfil enquanto intelectual e autor influente na sua área, assinando uma série de artigos científicos, livros e manuais que, nas décadas seguintes, mais do que lidos eram decorados pelos alunos nas universidades dos dois lados do Atlântico, sendo que, a seguir ao 25 de Abril, no período de autoexílio, Moreira deu aulas na Universidade Pontifícia Católica do Rio de Janeiro, tendo prosseguido ali a sua carreira enquanto autor de obras de referência. Um sinal de que não cortou o vínculo com as suas origens é a lápide que tem em seu nome pela ajuda que ofereceu à reconstrução da capela da terra, Grijó, isto depois de ter entregue o valor monetário que recebeu com o Prémio Abílio Lopes Rego, da Academia das Ciências de Lisboa, pela sua tese de doutoramento, intitulada “O Problema Prisional do Ultramar” (1954). Uma década antes, após ter-se licenciado, Moreira começou a exercer a advocacia, admitido como estagiário de uma figura do reviralho, Teófilo Carvalho dos Santos, que viria a ser deputado do PS e presidente da Assembleia da República, após a revolução dos cravos. É nessa altura que, em sinal da sua aproximação à oposição democrática, tendo assinado as listas do MUD, Moreira se viu envolvido no processo levantado pela família do general oposicionista Marques Godinho, que participara na Abrilada de 1947 e que, entretanto, morrera na prisão. Os familiares de Godinho acusavam o célebre ministro da Guerra de Salazar, Santos Costa, de ser responsável moral pela morte do general. E isto foi o que levou Moreira a ser acusado de “ofensa à dignidade do Estado” e detido por um período de dois meses no Aljube, onde conheceu Mário Soares. “Os pergaminhos oposicionistas de Adriano Moreira ficam por aqui”, vinca Filipe Luís, no perfil que lhe dedicou na Visão a propósito do centenário. Mas Moreira tinha, então, conseguido livrar-se da sua frágil condição económica, tendo por essa altura conseguido um cargo bem remunerado na delegação da General Electric em Lisboa, tendo chegado à vice-presidência do conselho de administração da sucursal portuguesa da multinacional. Pôde compaginar isto com a sua fulgurante carreira académica, tornando-se professor universitário e uma figura central no atual Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, que dirigiu e ajudou a reformar antes do 25 de Abril. Entre 1957 e 1959, Adriano Moreira fez parte da delegação portuguesa às Nações Unidas. Sendo católico e conservador, depois de se dissiparem as suas simpatias pela oposição, o que resistiu no plano intelectual e que lhe valeu sempre como orientação para o tão propalado “humanismo militante” que norteava as suas convicções foi a adesão às teses do luso-tropicalismo, originalmente propostas pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Assim, ao mesmo tempo que, nos anos 50, se ia aproximando do regime, Moreira tornou-se uma espécie de ideólogo que viu uma maneira de lavar a imagem da empresa colonial portuguesa, isto numa altura em que Salazar tinha de contender com os ares do tempo, prometendo eleições livres e algumas reformas que aliviassem a situação daqueles que, nas colónias, não só se viam expropriados das suas terras, como eram forçados ao trabalho, sendo, portanto, e para todos os efeitos, autênticos escravos. E se o Estado Novo foi sempre e sobretudo um regime que procurava suavizar hipocritamente a forma como eram esmagados direitos e liberdades, sabia fazer-se valer daqueles que se destacavam na academia, atraindo os espíritos esclarecidos e colocados na sua órbita, numa outra forma tendente a neutralizar qualquer tendência de oposição. Ora, Adriano Moreira, que, em 1956, publicava a obra Política Ultramarina e que, no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (nova designação da Escola Superior Colonial) vinha promovendo a consagração científica da “luso-tropicologia”, que se impôs como “a ideologia oficiosa do tardo-colonialismo português”, como nos diz o historiador Pedro Aires Oliveira, não estava a fazer outra coisa senão a indicar a Salazar como poderia segurar o regime colonial se cedesse nalguns aspetos. De facto, uns anos depois Salazar iria mesmo buscá-lo para o governo, nomeando-o, em março de 1960, como subsecretário de Estado da Administração Ultramarina. No ensaio que assinou no Público, no mês passado, Aires Oliveira recorda como, no âmbito do processo de saneamento que foi instaurado a Adriano Moreira pelo Ministério da Educação e Cultura a seguir ao 25 de Abril, o antigo ministro tentou demonstrar que a sua participação no governo de Salazar foi, acima de tudo, um compromisso de ordem patriótica, considerando que a defesa do império se confundia com o “interesse nacional”, e vincando que o seu intuito sempre foi a “defesa de uma justiça social que eliminasse todo o colonialismo interior”. Moreira pintou então a sua aproximação ao Estado Novo como uma espécie de sacrifício pessoal, a bem do país, e sinalizava como esta sua postura entrava em choque com a de outras figuras do regime, que se deixara capturar pelos “interesses de grupo”.

No breve retrato de Adriano Moreira proposto à circulação por Marcelo Rebelo de Sousa, que com aquele seu descaramento exultante de quem reescreve a História de uma penada veio agradecer em nome dos portugueses (“Os portugueses, pela minha voz, agradecem 100 anos de vida, 100 anos de obra, 100 anos de serviço a Portugal”), este surge como herói patriótico: “Académico, mestre de civis e militares, lutador pela liberdade e democracia, depois reformador impossível em ditadura, ainda assim revogando o Estatuto do Indigenato. Exilado, regressado, presidente de um partido político, vice-presidente da Assembleia da República, conselheiro de Estado”. Se Moreira contou sempre como uma das suas grandes conquistas aquela lei de 1961 que abolia o Estatuto dos Indígenas, defendendo uma “interpenetração de culturas” e a “igual dignidade das culturas” entre colonizadores e colonizados, e que supostamente garantiu que deixaria “de haver diferenciação em matéria de direitos políticos que resultam do estatuto cultural das pessoas, ou étnico ou religioso”, muitos contestam esta leitura. E, de qualquer modo, não houve qualquer menção da parte de Marcelo ao papel que Moreira teve na reabertura do Tarrafal, que recebe agora o nome eufemístico “Campo de Trabalho de Chão Bom”, sendo ali encarcerados os ativistas do nacionalismo angolano. Como lembrava Aires Oliveira, “tal medida viria a ser-lhe recordada, de forma constrangedora, quando, em 2011, a Universidade de Cabo Verde decidiu atribuir ao antigo ministro um doutoramento honoris causa”.

Entre as tantas reações que a notícia da morte de Adriano Moreira suscitou, merece destaque a do historiador José Neves, que assinalou a “forma a um tempo subtil e assertiva” como algumas pessoas à esquerda estavam a reagir nas redes sociais, “postando uma simples fotografia, de uma manifestação posterior ao 25 de Abril, na qual se destaca uma faixa que reza ‘Tarrafal nunca mais’.” Este historiador diz invejar “a elegância do gesto, que fere – e bem – a memória política do homem, sem necessidade de o amesquinhar pessoalmente”. Mas o aspeto mais curioso da sua intervenção vem a seguir, quando José Neves nota que esta reação seria desnecessária “se a elite da ditadura tivesse submetido o seu passado político a um mínimo de autocrítica”. Dessa elite, que ainda hoje nos governa, não se pode, como é óbvio, excluir o próprio Presidente da República. Mas é esta elite que continua sem fazer este exame, e, por essa razão, José Neves entende que isso torna, hoje, impossível, “a quem preze a democracia e abomine o racismo, prestar homenagem à vida de Adriano Moreira, por mais que a sua persona possa suscitar empatia”. O historiador e professor auxiliar no departamento de História da NOVA FCSH, lembra que “a leitura que o próprio Moreira fez do seu papel colonial não convence”, e acrescenta: “Nem a mim nem a tantos outros historiadores que sequer têm o seu coração à esquerda. Reformas como as relativas ao estatuto do indigenato dizem mais de uma vontade de conservar renovadamente o colonialismo e o racismo do que de os colocar em questão.” Sendo uma das mais lúcidas reações, por não se deixar embalar no regime de exaltação que tudo esquece e se contenta com uma versão redutora dos conflitos do passado, vale a pena citar o resto da intervenção: “Os créditos académicos de Adriano Moreira também não me comovem, devo confessar, mas isto sou eu que, sem ter grande estima pela instituição académica, ainda assim a imagino à luz de um ideal de liberdade em que a censura, a prisão e o exílio forçado não têm cabimento. Os meus colegas da Ciência Política e das Relações Internacionais que encontrem outro pai fundador para o seu brio disciplinar. Em suma, não me custa nada aceitar que Adriano Moreira se tenha tornado num democrata convicto ao longo dos últimos 50 anos. Tão pouco que a sua ideia de humanidade se tenha tornado incompatível com o racismo e o colonialismo. Mas a grande lição que nos teria dado, e não era preciso uma aula de cátedra para isso, versaria sobre a sua transformação cívica e não sobre a sua putativa coerência. Pedir isto ao próprio talvez fosse demais, mas é o mínimo que se pede a nós, cidadãos, e também aos historiadores.”

Quem também contestou a leitura que o próprio Adriano Moreira fez da sua participação no governo de Salazar, a qual ontem foi secundada por Marcelo Rebelo de Sousa, é o historiador Diogo Ramada Curto, que também não entende que os seis decretos do ministro Moreira (aprovados a 6 de setembro, dia dos seus anos) levaram a reformas que conduziram a uma “autonomia progressiva e irreversível”. Ramada Curto nota que, ao mesmo tempo que extingue o Indigenato, criava, por outro lado, a lei das regedorias, a qual “fixava as populações nativas e colocava os chefes nativos na posição de colaboradores do Estado colonial, criando aldeamentos e, na prática, campos de concentração, uma vez que as pessoas não podiam sair sem a autorização do regedor, que era o chefe indígena”. Assim, o historiador entende que Moreira não fez mais que tirar com uma mão e dar com a outra, concluindo que “há um excesso de empolamento do luso-tropicalismo e da ideia de reforma.”

Depois, é claro que é importante também reforçar a forma como se afastou do governo em rutura com Salazar, que lhe teria exigido que endurecesse as suas políticas. E para consagrar essa airosa saída, Moreira gostava de contar a resposta que deu ao presidente do Conselho, quando este recusou a sua proposta mudança: “Vossa excelência acaba de mudar de ministro.” Depois veio a democracia, Moreira foi saneado das funções oficiais e escolheu passar um tempo exilado no Brasil até que as coisas acalmassem, regressando, em 1980, para voltar à política activa. Foi candidato a deputado nas listas da Aliança Democrática, filiou-se no CDS, chegou à liderança em 1986, nas legislativas do ano seguinte não consegue mais do que 4,4% e o CDS fica conhecido como o “partido do táxi”, ficando-se por quatro deputados, sendo que, em 1976, tinha conseguido 42. Moreira continuou na Assembleia até 1995. Duas décadas depois, foi nomeado para o Conselho de Estado pelo CDS, onde ficou até 2019, já na Presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, que lhe concedeu as duas últimas condecorações.

No fim, e à direita, muitos despediram-se dele classificando-o como o último senador, o que é bem indicativo dessa ideia de que a sua imagem e percurso são indestrinçáveis da ideia de uma elite política, mesmo contando com as suas origens modestas, que, afinal, obrigam aqueles que se libertam delas a adotar esse perfume a que se referia Agustina ao caracterizar o tipo de morada onde vivia uma personagem sua, dizendo que “tresanda a dignidade desculpada de ser pobre pelo corpo da capela entre duas abas de habitação”. E como figura tão digna dessa corte que foi superando os diferentes regimes, não faltou, no fim, uma declaração muito emotiva da filha Isabel, deputada do PS, que nunca se cansou de reafirmar a sua ligação ao pai formado numa ordem oposta de referências. “Querido pai, meu amor, amor da minha vida”, começa a curta mensagem publicada por Isabel Moreira nas redes sociais. Umas linhas depois reforça: “Pai, meu amor, amor da minha vida, há dez anos escrevi-te uma carta a dizer deste amor que sempre fez do dia de hoje o dia que mais temi na vida e dez anos depois está tudo inteiro, está tudo intacto, nunca houve, entre nós, qualquer lacuna.” E, no fim, Isabel fala do seu “medo de seguir sem a tua validação assegurada”. E nesta declaração está tudo o que importa, o amor de uma filha pelo pai, uma cena boa para encerrar esta quinto ato, deixando a sua linhagem acolhida entre as boas famílias nas cortes de Lisboa, e só com um pequeno remorso, de que nos dá conta António Araújo, nas páginas do Expresso: o de nunca ter conseguido comprar o velho moinho que os seus avós paternos alugavam em Trás-os-Montes.