Cruzes, Credo, Canhoto. A exposição que encostou a Igreja Católica à parede

Ao longo dos anos, tem-se dedicado à criação de grandes figuras de animais, com materiais encontrados no rua, num comentário ao consumismo e materialismo. Recentemente, Bordalo II partilhou imagens de uma exposição temporária em algumas igrejas portuguesas, que teve como objetivo “chamar a atenção para o escândalo dos abusos sexuais a menores dentro da Igreja Católica”.

É conhecido como o homem que do lixo faz arte, ou que limpa o mundo através dela. Por isso, há quem lhe chame “o artista atrás do lixo” ou ainda “o artista ecológico”. Bordalo II usa desperdício que encontra na rua e dele faz nascer esculturas que nos mostram que “o lixo de uns é o tesouro de outros”. As suas obras mais conhecidas são habitualmente animais, coloridos, expressivos e de grandes dimensões que, por todo o país, ao mesmo tempo que dão cor à paisagem, confrontam a sociedade com o seu próprio consumismo e materialismo.

Segundo a National Geographic, o artista usa principalmente plástico, metal e materiais eletrónicos criando peças tridimensionais, com uma forte conotação ecológica, ambientalista e social. E com recurso a uma mistura de técnicas, cria as suas instalações, soldando, aparafusando e colando materiais “dependendo da natureza e do tamanho”.

No princípio do mês, Bordalo II surpreendeu com a exposição patente no Edu Hub, em Marvila que poderá ser visitada entre as 14 e as 20 horas até 11 de dezembro com entrada gratuita. Intitulada Evilution, a exposição traz obras inéditas do artista – que não são animais – e sobretudo novas experiências com madeiras e pedra. Aliás, nesta nova série de peças, não lhe interessou a diversidade de matérias-primas, mas sim o juntar o máximo de peças iguais, quase como píxeis.

Agora, a crítica é outra… Dois sinais de trânsito colados na porta de uma igreja alertam: é proibida a entrada a maiores de 18 anos e a crianças acompanhadas. Numa outra igreja há um crucifixo onde a figura de Cristo foi substituída por um Nenuco com uma grande coroa de arame. Noutra foi colocado um crucifixo coberto por bonecos de peluche coloridos de todas as formas. E, numa rua, um outro sinal de trânsito mostra um bispo que manipula duas marionetas que são crianças. Com a sua mais recente exposição, intitulada Cruzes, Credo, Canhoto, ao que parece, o artista quis encostar a Igreja Católica à parede. 

A voz de Bordalo Estas são as imagens que Bordalo II partilhou há dias nas suas redes sociais e que mostram instalações artísticas temporárias realizadas em diferentes igrejas nacionais com o objetivo de “chamar a atenção para o escândalo dos abusos sexuais a menores dentro da Igreja Católica”.

As obras em questão – que já não estão em exposição – inserem-se na série Provocative, que integra peças efémeras que o autor coloca no espaço público para chamar a atenção para algum tema da atualidade que considera pertinente, e surgem duas semanas depois da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa ter anunciado que já recebeu 424 testemunhos. Segundo o seu coordenador, Pedro Strecht, a maior parte dos crimes reportados já prescreveu: “Há 424 testemunhos recolhidos pelas diversas formas englobadas no trabalho da Comissão. Juntam-se a estes oito casos enviados pelas comissões diocesanas. O número mínimo de vítimas será muitíssimo maior do que as quatro centenas e os abusos compreendem todas as formas descritas na lei portuguesa”, afirmou numa conferência de imprensa realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
“Quantos predadores sexuais e molestadores de menores haverá escondidos atrás de cortinas douradas?

Aparentemente, nunca os suficientes para fazer a Igreja e os seus crentes tomar uma posição séria”, escreve Bordalo II na sua página de Instagram. “À semelhança do que acredito ser o dever da sociedade, também nós artistas temos que usar a nossa voz para defendermos aquilo que está certo e aqueles que não se conseguem defender”, continua, acrescentando que “temos que adotar uma atitude crítica, principalmente em temas tabu como este e ser parte ativa da mudança”, enfatizando a intervenção social que quer atingir com as suas obras, neste caso, em relação aos abusos sexuais na Igreja.

Além disso, em comunicado, frisa que “apesar do sucesso da carreira de um artista ser geralmente rumo a galerias, fundações, museus e coleções privadas, há um lado de intervenção social e atrevimento/provocação que não se deve perder”. “Se há momentos propícios para chamar a atenção, é um desperdício esconder-me e não fazer parte do discurso crítico e de mudança coletiva em relação a temas que nos são relevantes. É nestas alturas que o público está mais aberto a ver o que temos a dizer sobre o que se está a passar também”, explicou, sublinhado como “é importante manter este canal de expressão ativo, na rua, ainda que esteja neste momento com uma mostra, num formato mais convencional de exposição, também aberta ao público”.

Da pintura às grandes instalações Artur Bordalo nasceu em Lisboa em 1987. Já o seu nome artístico Bordalo II nasceu de uma homenagem ao seu avô, o pintor e artista plástico Real Bordalo, de forma a “promover uma continuidade e reinvenção do seu legado artístico”. Foi com ele e no seu ateliê que passou grande parte da juventude. “Real Bordalo tinha uma paixão incessante por aguarelas e óleos e retratou paisagens e cenas típicas da cidade, e as aventuras em torno do graffiti ilegal no submundo da cidade de Lisboa”, lê-se na pequena biografia.

Durante oito anos, o jovem aspirante a artista frequentou o curso de Pintura na Faculdade de Belas Artes de Lisboa e, apesar de não o ter concluído, acredita que esses anos lhe permitiram descobrir a escultura, a cerâmica, e ainda experimentar uma variedade de materiais que o distanciaram da pintura, “que o havia levado para lá em primeiro lugar”.

Bebendo de todas essas áreas e técnicas, escolheu o espaço público como galeria: “O espaço público tornar-se-ia o palco escolhido para as suas explorações da cor e da escala e a plataforma onde gradualmente transformou os seus hábitos e canalizou as suas experiências na construção e desenvolvimento do seu trabalho artístico, que hoje se centra no questionamento da sociedade materialista e gananciosa de do qual ele (também) faz parte”, explica o texto.
Segundo a sua página, desde 2012 que o artista já utilizou mais de 115 toneladas de materiais.