Crime de opinião

As opiniões do Presidente da República podem ser criticadas. O que está em causa, neste caso, é o tom inquisitorial com que as críticas foram feitas. Não se curou de saber se Marcelo tinha razão ou não. Partiu-se do princípio de que disse uma heresia e tinha de se desdizer, de pedir perdão.

Julgava-se que, com o 25 de Abril, o crime de opinião tinha acabado. As pessoas podiam dar as suas opiniões livremente, sem receio de serem perseguidas.

Mas – e com mágoa o digo – estamos hoje talvez pior do que no tempo da ditadura. Há pessoas perseguidas pelo que dizem. Os perseguidores já não são polícias, mas uma força socialmente mais poderosa: uma comunicação social implacável, que pode destruir uma reputação.

O exemplo mais recente foram umas declarações do Presidente da República sobre a pedofilia na Igreja portuguesa.
Marcelo Rebelo de Sousa disse que «400 casos» não lhe parecia um número «particularmente elevado», tendo em conta que «noutros países e com horizontes mais pequenos houve milhares de casos». O que foi dizer! Caíram-lhe em cima como cães raivosos, chamaram-lhe todos os nomes, intimaram-no a pedir desculpa.

É claro que as opiniões do Presidente da República podem ser criticadas. Eu próprio o tenho feito em várias ocasiões. Não é isso que está em causa. O que está em causa é o tom inquisitorial. É a ideia de que uns são portadores da verdade absoluta e quem diz coisa diferente comete um crime. Não se discutiu o que Marcelo disse. Não se curou de saber se tinha razão ou não. Partiu-se do princípio de que disse uma heresia e tinha de se desdizer, de pedir perdão.
Tinha de fazer um ato de contrição em público.

Onde chegámos! E as pessoas que participam nestes processos parecem já não perceber o que fazem. Assumem-se em juízes de um tribunal qualquer, condenam o herege e ditam a sentença. 

Sejamos sérios: Marcelo tinha ou não razão no que disse? 424 denúncias validadas é um número alto ou baixo tendo em conta o período abrangido – que vem dos anos 1950 até hoje, segundo parece – e considerando o que aconteceu noutros países? Em França, por exemplo, registaram-se 200 mil casos – o que, mesmo tendo em conta a diferença de população, é um valor incomensuravelmente maior. Cerca de 70 vezes mais.

Claro que pode sempre dizer-se o lugar-comum: «Mesmo que fosse só um já seria muito».

Mas isso é o domínio da retórica e não a realidade de um mundo imperfeito. 

Dado o número de anos abrangidos pelo estudo, e o número de sacerdotes em exercício neste período, a existência de 424 denúncias não pode considerar-se de modo nenhum exorbitante. 

Está fora de causa que um crime de pedofilia é um ato hediondo, e mais ainda quando é praticado por um padre. Mas não é honesto confundir a pedofilia com a Igreja. Há padres pedófilos, como há homens e mulheres pedófilos. Mas não é por isso que vamos dizer que a sociedade, no seu conjunto, é pedófila. 

Vi na afirmação de Marcelo, para além de dizer objetivamente o que pensava, uma intenção de proteger a Igreja portuguesa.
Mas foi talvez por isso que foi tão brutalmente atacado. O anticlericalismo em Portugal vem de longe, como vimos nos tempos sinistros da 1ª República, e está muito disseminado. Até porque, nos dias de hoje, a Igreja Católica é quase a única instituição que defende um conjunto de valores muito atacados à esquerda e mesmo em certas zonas da direita.
Defende a família, defende a inviolabilidade da vida humana e condena o aborto e a eutanásia, releva a importância da hierarquia, prega o respeito por princípios morais, etc. Assim, na denúncia da pedofilia misturam-se os que a repudiam genuinamente e os que aproveitam a onda para atacar a Igreja e os valores que representa. 

Veja-se a difusão gigantesca que tem qualquer notícia sobre um caso de pedofilia na Igreja – e o silêncio que cai sobre os casos que não se confirmam.

Acontece que, perante os ataques de que foi alvo, Marcelo reagiu da pior maneira. Veio explicar que disse o que disse porque, em função dos casos que ele pensa que existem, o número de 424 até lhe parece curto. 

É o que se chama virar o bico ao prego.

Num ápice, deixou de proteger a Igreja para atacar a Igreja – dizendo que até lhe parece existirem muito mais crimes praticados por padres do que aqueles que se apuraram. Os casos apurados serão apenas a ‘ponta do iceberg’. 

A emenda foi pior do que o soneto.

Para se defender, Marcelo Rebelo de Sousa enterrou mais a Igreja do que já estava. Juntou-se objetivamente ao coro dos anticlericais, dos pescadores de águas turvas, dos que exploram este caso com intenções políticas. 

E a sua intenção inicial de proteger a Igreja portuguesa era meritória. Não sou católico e portanto estou à vontade para o dizer. Mas a Igreja Católica, para além da defesa de valores em crise, desempenha ainda hoje um insubstituível papel na educação, com as suas escolas e universidades, na saúde, com os hospitais das misericórdias, na assistência social, na cultura.

O descrédito da Igreja em Portugal seria uma calamidade. 

O Presidente da República sai mal deste caso não pelo que disse antes, que era racional e objetivo, mas pelo que disse depois, que foi baseado numa ‘impressão’. Dizer que houve «muito mais casos» do que os 424 apurados, até pode ser verdade – mas não tem base objetiva. E pedir desculpa não faz qualquer sentido. Porventura ele tinha ofendido alguém ou atingido alguma vítima? Tinha desculpabilizado os agressores? Marcelo pediu desculpa a quem? Aos que o atacaram por dizer o que disse? Aos que interpretaram intencionalmente mal as suas palavras? 
Marcelo não tinha nada que pedir desculpa. Mas pode ser que este episódio refreie a sua tendência para falar sobre tudo e mais alguma coisa, às vezes com grande leveza. 

P.S. – Com a sua reconhecida malícia, António Costa aproveitou esta oportunidade para se pôr numa posição acima do PR. Ao fingir que defendia Marcelo, o primeiro-ministro colocou-se na posição do pai que sai em defesa do filho ofendido. Foi um golpe de mestre.