A transparência pode esperar…

Costuma dizer-se que os tempos da Justiça e da política (ou dos media) não coincidem e obedecem a diferentes velocidades, sendo mais fácil mudar-se uma lei que afetou interesses instalados – ou criou engulhos ao bem-estar de um ator político -, do que confrontar os prevaricadores com as suas responsabilidades. 

Em Portugal há leis que envelhecem num ápice, ao verificar-se, por exemplo, que, quando aplicadas, incomodam, na prática, alguns respeitáveis atores políticos, apanhados no «emaranhado legislativo».

Em contrapartida, a Entidade da Transparência, organismo criado no papel há três anos, na dependência do Tribunal Constitucional, com o objetivo de fiscalizar os rendimentos dos políticos e as eventuais incompatibilidades e conflitos de interesses, continua por instalar, sem meios nem sítio para funcionar.

Ou seja, mais depressa se convoca o Parlamento para rever o tal ‘emaranhado legislativo’ (assim designado por um insigne jurisconsulto e professor de Direito, que o promulgou sem pestanejar, enquanto Presidente da República, admitindo que «se poderia ter ido mais longe»), do que se iniciam as obras de requalificação do edifício escolhido para albergar a Entidade da Transparência.

Há menos de um ano, perto do Natal, uma magistrada do Ministério Público, Maria José Morgado, recém-jubilada, reconhecia em entrevista que a «cultura de impunidade, nepotismo e amiguismo tem feito de Portugal um país pobre e atrasado» por causa da «morosidade mórbida» na Justiça. Sabia do que falava.

Esta conclusão de alguém que esteve por dentro do aparelho da Justiça, talvez explique as demoras do MP em certas diligências e os vagares dos tribunais perante processos mais complexos, adiados sucessivamente, pelas mais variadas e esconsas razões, desde expedientes processuais até à dança de juízes a quem são distribuídos.

Não faltam os casos mediáticos para ilustrar essa realidade, desde o ex-primeiro ministro José Sócrates ao ex-banqueiro Ricardo Salgado. O regime não tem pressa de julgá-los.

Costuma dizer-se que os tempos da Justiça e da política (ou dos media) não coincidem e obedecem a diferentes velocidades, sendo mais fácil mudar-se uma lei que afetou interesses instalados – ou criou engulhos ao bem-estar de um ator político -, do que confrontar os prevaricadores com as suas responsabilidades. 

Depois, para ‘compor o ramalhete’ e fingir que a máquina da Justiça não emperrou, reaparecem as buscas policiais, e lançam-se umas ‘lebres’ com aparato mediático, para ‘mostrar serviço’ e com o ‘picante’ adicional de abrangerem anteriores autarcas de Lisboa, juntamente com os atuais de Montalegre e Oeiras, visando, até, a própria sede da presidência do Conselho de Ministros. 

Ainda com as incompatibilidades em cima da mesa, e já subiram a cena os ajustes diretos, assinados por ex-vereadores socialistas, hoje ministros, como Fernando Medina e Duarte Cordeiro. Ou as suspeitas de ‘arranjinhos concursais’, englobando Isaltino Morais e ex-autarcas de Mafra e Odivelas. É de presumir que, esgotados os ecos mediáticos, regressem à gaveta, como tem acontecido com outros. 

Claro que por cada operação policial, os implicados declaram, invariavelmente, a sua completa disponibilidade para ‘colaborar com a Justiça’, enquanto ‘batem com a mão no peito’, jurando que agiram sempre no mais escrupuloso respeito pela lei e pelo interesse público. 

Sejam incompatibilidades ou ajustes diretos, chamem-se Pedro Nuno Santos, Ana Abrunhosa, Duarte Cordeiro ou Fernando Medina – e ex-ministros, como Siza Vieira ou Graça da Fonseca -, pressente-se logo que, se houver culpa, esta vai ‘morrer solteira’. 

Donde se deduz que, afinal, os ‘emaranhados legislativos’ podem dar muito dar jeito. No fundo, são eficazes biombos.

Se vier a saber-se que prescreveram mais alguns processos, após prolongada ‘hibernação’, já ninguém se admira.

A propósito: que será feito do recurso a pedir a nulidade da decisão instrutória de Ivo Rosa na Operação Marquês, entregue pelo MP na Relação, em setembro do ano passado, no qual os procuradores afirmam que o juiz fez uma análise ‘desequilibrada’, ‘formalista’, ‘superficial’ e ‘ingénua’ da prova que sustenta a acusação? 

Recorde-se que Ivo Rosa, atualmente sujeito a procedimento disciplinar, instaurado pelo CSM (e, por causa disso, com a promoção a desembargador congelada), decidiu arquivar, 171 dos 188 crimes que constavam da acusação da Operação Marquês e mandou para julgamento apenas cinco dos 28 arguidos.

Foi um desfecho com o qual não se conformaram os procuradores, mas cujo recurso se eclipsou na Relação. Decorrido um ano, estamos na mesma. Tal como a Entidade da Transparência, os tribunais também podem esperar….

Nota em rodapé – O secretário geral do PS, António Costa, decidiu exprimir o seu apoio, em vídeo, ao candidato Lula – amigo ‘de peito’ de Sócrates -, com um expressivo «Lula, conte comigo». Se, por acaso, as sondagens falharem e os brasileiros derem a vitória nas presidenciais a Bolsonaro, em que situação ficam o primeiro-ministro de Portugal e as relações entre os dois países?…